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Cardeal Ranjith:

Pela piedade litúrgica, contra a comunhão na mão.

 

O perfil do cardeal Malcolm Ranjith, do Sri Lanka, emerge, junto com o Prefeito do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica no Vaticano, Raymond Burke, como um cardeal de linha mais conservadora, sendo próximo dos tradicionalistas, especialmente no que diz respeito à Liturgia. O purpurado asiático já se manifestou contrário à comunhão na mão, ao escrever o prefácio do famoso livro de Dom Athanasius Schneider, “Dominus Est! – É o Senhor!” (cujo conteúdo já foi elogiado pelo cardeal Francis Arinze, ex-Prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos). Transcrevemos o texto do cardeal na introdução desta obra, a fim de ajudar os leitores a entender a urgente necessidade de tratarmos com respeito a Eucaristia, para superar a crise de fé contemporânea. Com a palavra, o cardeal Ranjith:

 

No livro do Apocalipse, São João narra que, tendo visto e ouvido o que lhe havia sido revelado, prostrou-se em adoração aos pés do Anjo de Deus (cf. Ap 22, 8). Prostrar-se ou ajoelhar-se ante a majestade da presença de Deus, em humilde adoração, era um hábito de reverência que Israel sempre praticava ante a presença do Senhor. Diz o primeiro livro dos Reis: “Quando Salomão acabou de dirigir ao Senhor esta oração e súplica, levantou-se diante do altar do Senhor, onde estava ajoelhado, de mãos erguidas para o céu. Pôs-se de pé e abençoou toda a assembleia de Israel” (I Rs 8, 54-55).

 

A postura da súplica do Rei é clara: ele estava de joelhos ante o altar.

 

A mesma tradição se encontra também no Novo Testamento, onde vemos Pedro ajoelhar-se diante de Jesus (Lc 5,8); Jairo ao lhe pedir que cure a sua filha (Lc 8, 41); o Samaritano quando volta para agradecer-Lhe, e Maria, irmã de Lázaro, para Lhe pedir a vida em favor de seu irmão (Jo 11, 32). A mesma atitude de se prostrar, devido ao assombro causado pela presença e revelação divinas, nota-se não raramente no livro do Apocalipse (Ap 5, 8.14 e 19, 4).

 

Estava intimamente relacionada com esta tradição a convicção de que o Templo Santo de Jerusalém era a casa de Deus e, portanto, era necessário nele se dispor em atitudes corporais que expressassem um profundo sentimento de humildade e de reverência na presença do Senhor.

 

Também na Igreja a convicção profunda de que, sob as espécies eucarísticas o Senhor está verdadeira e realmente presente, e o crescente costume de conservar a Santa Comunhão nos tabernáculos contribuiu para a prática de ajoelhar-se em atitude de humilde adoração do Senhor na Eucaristia.

 

Com efeito, a respeito da presença real de Cristo sob as espécies eucarísticas, o Concílio de Trento proclamou: “In almo sanctae Eucharistiae sacramento post panis et vini consecrationem Dominum nostrum Iesum Christum verum Deum atque hominem vere, realiter ac substantialiter sub specie illarum rerum sensibilium contineri” 1.

 

Além disso, Santo Tomás de Aquino já havia definido a Eucaristia latens Deitas (Santo Tomás de Aquino, Hinos). A fé, na presença real de Cristo sob as espécies eucarísticas, já pertencia então à essência da fé da Igreja Católica e era parte intrínseca da identidade católica. Era evidente que não se podia edificar a Igreja se esta fé fosse minimamente desprezada.

 

Portanto, a Eucaristia – pão transubstanciado em Corpo de Cristo e o vinho em Sangue de Cristo, Deus em meio a nós – devia ser acolhida com admiração, máxima reverência e atitude de humilde adoração.

 

O papa Bento XVI, recordando as palavras de Santo Agostinho “nemo autem illam carnem manducat, nisi prius adoraverit… peccemus non adorando” 2, ressalta que “receber a Eucaristia significa colocar-se em atitude de adoração dAquele que comungamos… somente na adoração pode maturar um acolhimento profundo e verdadeiro” (Sacramentum Caritatis, 66).

 

Seguindo esta tradição, torna-se claro que adotar gestos e atitudes do corpo e do espírito que facilitam o silêncio, o recolhimento, a humilde aceitação de nossa pobreza diante da infinita grandeza e santidade dAquele que nos vem ao encontro sob as espécies eucarísticas, torna-se coerente e indispensável. O melhor modo para exprimir nosso sentimento de reverência para com o Senhor Eucarístico era o de seguir o exemplo de Pedro que, como nos narra o Evangelho, lançou-se de joelhos ante o Senhor e disse “Senhor, afasta-te de mim, porque sou um pecador!” (Lc 5, 8).

 

Ora, nota-se que, em algumas igrejas, tal prática se torna cada vez mais rara e os responsáveis não só impõem aos fiéis receber de pé a Sagrada Eucaristia, mas tiraram mesmo todos os genuflexórios, obrigando os fiéis a permanecerem sentados ou em pé, até durante a elevação das espécies eucarísticas, apresentadas para a adoração.

 

É estranho que tais procedimentos tenham sido adotados em dioceses pelos responsáveis da liturgia e, nas igrejas, pelos párocos, sem uma consulta aos fiéis, por mínima que fosse, apesar de que hoje se fala mais do que nunca, em muitos ambientes, de democracia na Igreja.

 

Ao mesmo tempo, falando da Comunhão na mão, é necessário reconhecer que se trata de uma prática introduzida abusivamente e às pressas em alguns ambientes da Igreja imediatamente depois do Concílio, alterando a secular prática anterior e transformando-se em seguida em prática regular para toda a Igreja. Justificava-se tal mudança dizendo que refletia melhor o Evangelho ou a prática antiga da Igreja.

 

É verdade que se se recebe na língua, pode-se receber também na mão, uma vez que estes órgãos do corpo são iguais em dignidade. Alguns, para justificar tal prática, se referem às palavras de Jesus: “Tomai e comei” (Mc 14, 22; Mt 26, 26).

 

Quaisquer que sejam as razões para sustentar esta prática não podemos ignorar o que acontece, mundo afora, em todas as partes onde tal prática é realizada. Este gesto contribui para um gradual e crescente enfraquecimento da atitude de reverência para com as sagradas espécies eucarísticas. O costume anterior, ao contrário, preservava melhor este senso de reverência.

 

Àquela prática, ao invés, seguiu-se uma alarmante falta de recolhimento e um espírito de distração geral. Atualmente se veem pessoas que comungam e frequentemente voltam aos seus lugares como se nada de extraordinário tivesse acontecido. Veem-se mais distraídas ainda as crianças e adolescentes. Em muitos casos não se nota este senso de seriedade e silêncio interior que devem indicar a presença de Deus na alma.

 

Há, depois, abusos de quem leva para fora as sagradas espécies, para tê-las como recordação, de quem as vende ou, pior ainda, de quem as leva para as profanar em ritos satânicos. Tais situações já foram devidamente postas em relevo. Mesmo nas grandes concelebrações, também em Roma, várias vezes foram encontradas espécies sagradas caídas por terra.

 

Esta situação não nos leva apenas a refletir na grave perda de fé, mas também nos ultrajes e ofensas feitas ao Senhor, que se digna vir ao nosso encontro, querendo tornar-nos semelhantes a Ele, a fim de espelhar em nós a santidade de Deus.

 

O papa fala da necessidade de não só entendermos o verdadeiro e profundo significado da Eucaristia, como também de celebrá-la com dignidade e reverência. Diz que é necessário estarmos conscientes “dos gestos e posições, como, por exemplo, ajoelhar-se durante os momentos salientes da Oração Eucarística” (Sacramentum Caritatis, 65).

 

Além disso, tratando do recebimento da Sagrada Comunhão, convida todos para “que façam o possível para que o gesto, na sua simplicidade, corresponda ao seu valor de encontro pessoal com o Senhor Jesus no Sacramento” (Sacramentum Caritatis, 50).

 

Nesta perspectiva, é de apreciar o opúsculo escrito por S. Excia. Dom Athanasius Schneider, Bispo auxiliar de Karaganda, no Kazaquistão, sob o muito significativo título Dominus Est! – É o Senhor! Ele deseja dar uma contribuição à atual discussão sobre a Eucaristia, presença real e substancial de Cristo sob as espécies consagradas do Pão e do Vinho. (…) [E]le nos apresenta um ensaio histórico-teológico que esclarece como a prática de receber a Sagrada Comunhão na boca e de joelhos foi recebida e praticada pela Igreja durante um longo período de tempo.

 

Creio que chegou a hora de avaliar a prática acima mencionada, de reconsiderá-la e, se necessário, abandonar a atual, que de fato não foi indicada nem pela Sacrosanctum Concilium, nem pelos Padres Conciliares, mas foi aceita depois de ter sido introduzida abusivamente em alguns países.

 

Hoje, mais do que nunca, é necessário ajudar o fiel a renovar uma fé viva na presença real de Cristo sob as espécies eucarísticas, para reforçar, assim, a própria vida da Igreja, e defendê-la em meio às perigosas distorções da fé que tal situação continua criando.

 

As razões de tal medida devem ser não tanto acadêmicas quanto pastorais, espirituais como litúrgicas, numa palavra, aquilo que melhor edifica a fé. Dom Schneider mostra, neste sentido, uma louvável coragem, porque soube entender o significado das palavras de São Paulo: “mas que tudo seja para edificação” (I Cor 14, 26).

 

Malcolm Ranjith
Secretário da Congregação para o Culto Divino 
e da Disciplina dos Sacramentos

 

[Dom Athanasius Schneider. Dominus est. Riflessioni di um vescovo dell’Asia Centrale sulla sacra Communione. Trad. Nuno Manuel-Castello Branco Bastos e Nestor Fonseca da Silva. 3. ed. Raboni: Campinas. P. 7-14.]

 

1. “No sublime sacramento da santa Eucaristia, depois da consagração do pão e do vinho, nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, está contido verdadeira, real e substancialmente sob a aparência das coisas sensíveis” (DS 1636).

 

2. “Ninguém coma aquela Carne, se antes não a adorou. Pecamos se não a adoramos” (S. Agostinho, Enn. in Psalmos 89, 9; CCL 39, 1385).

 

Fonte: Ecclesia Una