A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Do amor do Filho de Deus em querer morrer por nós
1. “Eis aí o teu tempo, o tempo dos que amam... e te tornaste extremamente bela” (Ez 16, 8, 13). Quanto nós, os cristãos, somos devedores ao Senhor, por nos fazer nascer depois da vinda de Jesus Cristo! Nosso tempo não é mais o tempo do temor, como era o dos Hebreus, mas é o tempo do amor, havendo um Deus morrido por nossa salvação e para ser amado por nós. É artigo de fé que Jesus nos amou e por nosso amor se entregou à morte: “Cristo nos amou e se entregou a si mesmo por nós” (Ef 5,2).
E quem poderia fazer morrer um Deus onipotente se ele não quisesse de livre vontade dar a vida por nós? “Eu entrego a minha vida... Ninguém a tira de mim, mas eu a entrego por mim mesmo” (Jo 10,17-18). Por isso diz S. João que Jesus na sua morte deu-nos a última prova que podia dar-nos do seu amor: “Tendo-os amado, amou-os até ao fim” (Jo 13,1). Afirma um autor devoto que Jesus na sua morte nos deu a maior prova de seu amor, nada mais lhe restando depois disso a fazer para nos demonstrar quanto nos amava (Contens. 1. 10, d. 4, c. 1).
Meu amado Redentor, vós vos destes todo a mim por amor e eu por amor me dou todo a vós. Destes a vida por minha salvação, eu por vossa glória quero morrer quando e como vos aprouver. Vós não podíeis fazer mais para conquistar o meu amor e eu, ingrato, entreguei-vos por nada. Meu Jesus, arrependo-me disso de todo o coração: perdoai-me por vossa paixão e em prova do perdão concedei-me a graça de amar-vos. Sinto em mim um grande desejo de vos amar e tomo a resolução de ser todo vosso: vejo, porém, minha fraqueza, e vejo as traições que vos fiz: só vós podeis socorrer-me e tornar-me fiel. Ajudai-me, meu amor, fazei que vos ame e nada mais vos peço.
2. Diz o Beato Dionísio Cartusiano que a paixão de Jesus Cristo foi denominada um excesso: “E falavam do excesso que realizaria em Jerusalém” (Lc 9,31), porque foi excesso de piedade e de amor. Ó Deus, qual é o fiel que poderia viver sem amar Jesus Cristo, se meditasse a miúdo na sua paixão? As chagas de Jesus, diz S. Boaventura, são todas chagas de amor, são dardos e chamas que ferem até os corações mais duros e abrasam as almas mais frias.
O beato Henrique Suso, para melhor imprimir em seu coração o amor a Jesus crucificado, tomou uma vez um ferro cortante e gravou em seu peito o nome de seu amado Senhor, e estando assim banhado em sangue dirigiu-se à igreja e prostrando-se diante do crucifixo, disse-lhe: Ó Senhor, único amor de minha alma, vede o meu desejo, quereria escrever vosso nome dentro de meu coração, mas não posso. Vós, que tudo podeis, supri o que falta às minhas forças e imprimi no mais fundo do meu coração o vosso nome adorável, de tal maneira que não possa ser mais dela apagado nem o vosso nome, nem o vosso amor.
“O meu bem amado é cândido e rosado, eleito entre mil” (Ct 5,10). Ó meu Jesus, vós sois todo cândido por vossa ilibada inocência, mas, sobre essa cruz, estais todo vermelho pelas chagas sofridas por mim. Eu vos escolho pelo único objeto de meu amor. E a quem amarei senão a vós? Que objeto entre todos posso eu encontrar mais amável do que vós, meu Redentor, meu Deus, meu tudo? Eu vos amo, Senhor amabilíssimo, eu vos amo sobre todas as coisas. Fazei que eu vos ame com todos os meus afetos e sem reserva.
3. “Oh! se conhecesses o mistério da cruz”, disse S. André ao tirano. Ó tirano, queria ele dizer, se conhecesses o amor que Jesus Cristo te mostrou, querendo morrer sobre uma cruz para salvar-te, deixarias todos os teus bens e esperanças terrenas para te entregares inteiramente ao amor deste teu Salvador. O mesmo deve dizer-se aos fiéis que crêem na paixão de Jesus Cristo, mas nela não meditam. Ah, se todos os homens pensassem no amor que Jesus Cristo lhes testemunhou na sua morte, quem poderia deixar de amá-lo?
Diz o Apóstolo que nosso amado Redentor morreu por nós, para que com o amor que nos demonstrou na sua morte se fizesse senhor de nossos corações. “Para isso Cristo morreu e ressuscitou, para ser senhor tanto dos mortos como dos vivos. Quer, pois, morramos, quer vivamos, somos do Senhor” (Rm 14,9). Portanto, quer morramos, quer vivamos, é justo que sejamos todos de Jesus que a tanto custo nos salvou. Oh! que eu pudesse dizer, como o abrasado S. Inácio, mártir, que teve a sorte de dar a vida por Jesus Cristo: “Que venham sobre mim o fogo, a cruz, as feras, e toda a espécie de tormentos, contanto que goze de ti, ó Cristo” (Ep. ad Rom. c. V).
Ó meu caro senhor, morrestes para conquistar minha alma, e eu que fiz para vos adquirir, bem infinito? Ah, meu Jesus, quantas vezes eu vos perdi por um nada! Miserável! eu já sabia que com o meu pecado perdia a vossa graça, sabia que vos causava um grande desgosto e contudo eu o fiz. Consolo-me que tenho de tratar com uma bondade infinita, que se esquece das ofensas, mal um pecador delas se arrepende e a ama. Sim, meu Deus, eu me arrependo e vos amo. Perdoai-me e de hoje em diante dominai sobre este coração rebelde. Eu vo-lo entrego e a vós me dou inteiramente: dizei-me o que quereis, que eu quero fazer tudo. Sim, meu Senhor, quero amar-vos, quero contentar-vos em tudo: dai-me força e espero executá-lo.
4. Jesus com sua morte não cessou de nos amar; ama-nos ainda e procura-nos com o mesmo amor com que veio do céu à nossa procura e a morrer por nós. É célebre a fineza de amor que demonstrou o Redentor a S. Francisco Xavier, quando ele viajava. Durante uma tempestade, uma onda do mar havia-lhe roubado o crucifixo. Chegado o santo à praia, sentia-se triste e desejava recuperar a imagem de seu amado Senhor. E ei que vê um caranguejo vir ao seu encontro com o crucifixo alçado entre suas tenazes. Ele correu-lhe ao encalço e com lágrimas de ternura e amor o recebeu e estreitou ao peito. Oh! com que amor Jesus vai ao encontro da alma que busca. “Bom é o Senhor... para a alma que o busca” (Lm 3,25), isto é, para a alma que o busca com verdadeiro amor.
Poder-se-á pensar que possuem este amor aquelas que recusam as cruzes que o Senhor lhes envia? “Cristo não procurou agradar a si mesmo” (Rm 15,3). Cristo não buscou sua vontade e cômodos, diz Cornélio a Lápide, mas sacrificou tudo isso e sua própria vida por nossa salvação. Jesus, por amor de nós, não procurou prazeres terrenos, mas os sofrimentos e a morte, apesar de ser inocente. E nós que procuramos por amor de Jesus Cristo?
Um dia se queixava S. Pedro, mártir, estando encarcerado por uma injusta acusação que lhe fizeram, e dizia: Mas, Senhor, que mal fiz eu para sofrer esta perseguição? E o crucificado lhe respondeu: e eu que mal pratiquei para estar pregado nesta cruz? Ó meu Salvador, perguntais que mal fizestes? Muito nos amastes e por isso quisestes padecer tanto por nosso amor. E nós, que por nossos pecados merecíamos o inferno, recusaremos padecer o que nos enviardes para nosso bem? Vós sois todo amor, ó meu Jesus, para quem vos procura. Eu não busco vossas doçuras e consolações, busco só a vós e a vossa vontade; dai-me o vosso amor e depois tratai-me como vos aprouver.
Abraço todas as cruzes que me enviardes, pobreza, perseguições, enfermidades, dores: livrai-me unicamente do mal do pecado e em seguida sobrecarregai-me de todos os males. Tudo será pouco em comparação dos males que vós sofrestes por meu amor.
5. “Para remir o servo nem o Pai poupou o Filho, nem o Filho poupou-se a si mesmo”, diz S. Bernardo (Serm. de pass.). E depois de um tão grande amor para com os homens poderá haver alguém que não ame a esse Deus tão amante? Escreve o Apóstolo que Jesus morreu por nós todos, para que nós vivamos somente para ele e seu amor: Por todos morreu Cristo, para que os que vivem, não vivam mais para si, mas para aquele que morreu por eles (2Cor 5,15).
A maior parte dos homens, infelizmente, depois de um Deus haver morrido por eles, vive para os pecados, para o demônio e não para Jesus Cristo. Dizia Platão que o amor é o ímã do amor. E Sêneca afirmava: Ama, se queres ser amado. E como é que Jesus, que, morrendo pelos homens, pareceu enlouquecer de amor, na expressão de S. Cregório (Hom. 6), não conseguiu atrair a si os nossos corações depois de tantas provas de amor? Como é possível que amando-nos tanto não chegou a fazer-se amar de nós? Oh! se vos amassem todos os homens, ó Jesus meu amabilíssimo.
Sois um Deus digno de um amor infinito. Mas, meu pobre Senhor, permiti que assim vos chame, sois tão amável, fizestes e padecestes tanto para que os homens vos amassem, e quanto são os que vos amam? Vejo quase todos os homens aplicados em amar ou os parentes, ou os amigos, ou as riquezas, ou as honras, ou os prazeres, e mesmo os animais: mas quantos são os que vos amam, bem infinito? Ó Deus, são muito poucos, mas eu quero estar no número destes poucos, apesar de mísero pecador, que durante tanto tempo também vos ofendi, amando o lodo, separando-me de vós. Agora, porém, eu vos amo e vos estimo sobre todos os bens e só a vós quero amar. Perdoai-me, meu Jesus, e socorrei-me.
6. Ó cristão, diz S. Cipriano, Deus está contente contigo, chegando até a morrer para conquistar teu amor, e tu não estarás contente com Deus, visto que amas outros objetos, fora de teu Senhor? (Ap. Cont.) Ah, meu amado Jesus, eu não quero ter outro amor que não seja por vós: estou satisfeito convosco: renuncio a todos os outros afetos, o vosso amor só me basta. Sinto que me dizeis: “Põe-me como selo sobre o teu coração” (Ct 8,6). Sim, meu Jesus crucificado, eu vos ponho e peço-vos que vos ponhais a vós mesmo como um selo sobre o meu coração, para que fique fechado a todo outro afeto que não tenda para vós. No passado eu vos desgostei com outros amores, mas presentemente não há pena que mais me aflija como a recordação de haver com os meus pecados perdido o vosso amor, e no futuro “quem me separará do amor de Jesus Cristo?”
Não, meu amabilíssimo Senhor, depois de me haverdes feito conhecer o amor que me tivestes, não quero mais viver sem vos amar. Eu vos amo, meu amor crucificado, eu vos amo de todo o meu coração e vos entrego esta alma tão procurada e amada por vós. Pelos merecimentos de vossa morte, que tão atrozmente separou vossa bendita alma de vosso corpo, desprendei-me de todo o amor que possa impedir-me de ser todo vosso e de amar-vos de todo o meu coração. Maria, minha esperança, ajudai-me a amar unicamente o vosso dulcíssimo Filho, de tal maneira que eu possa repetir sempre, no decorrer de minha vida: Meu amor foi crucificado. Amém.
Oração de S. Boaventura
Ó Jesus, que por mim não perdoastes a vós mesmo, imprimi em mim a vossa paixão, a fim de que em toda parte para onde me volte veja as vossas chagas e não encontre outro repouso que em vós e em meditar os vossos sofrimentos. Amém.
Fonte: Livro A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. (Santo Afonso Maria de Ligório.)