A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Do amor que Jesus nos mostrou, deixando-se a si mesmo em comida antes de entregar-se à morte.
1. Sabendo Jesus que era chegada a sua hora de passar deste mundo ao Pai, tendo amado os seus, amou-os até ao fim (Jo 13,1). Nosso amantíssimo Redentor, na última noite de sua vida, sabendo que já era chegado o tempo suspirado de morrer por amor dos homens, não teve ânimo de nos deixar sós neste vale de lágrimas. E para não se separar de nós nem mesmo depois de sua morte, quis deixar-se-nos todo em alimento no Sacramento do altar. Com isto deu-nos a entender que, depois desse dom infinito, não tinha mais o que dar-nos para nos testemunhar o seu amor.
Cornélio e Lápide, com S. Crisóstomo e Teofilacto, explica segundo o texto grego a palavra até ao fim e escreve: É como se dissesse: amou-os com um amor supremo e sem limites. Jesus neste sacramento fez o último esforço de amor para o homem, como diz o Abade Guerrico (Serm. de Ascens.). Essa idéia foi ainda mais bem expressa pelo sagrado Concílio de Trento, que, falando do sacramento do altar, disse que nele nosso Salvador derramou, por assim dizer, todas as riquezas de seu amor para conosco. (Sess. 13, c.2).
Tinha, pois, razão S. Tomás d’Aquino de chamar este sacramento de sacramento de amor e o maior penhor de amor que um Deus nos podia dar (Op. 18, c. 25). E S. Bernardo o chamava amor dos amores. S. Maria Madalena de Pazzi dizia que uma alma depois de comungar pode exclamar: “Tudo está consumado”, já que o meu Deus, tendo-se dado todo a mim nesta comunhão, nada mais tem para comunicar-me.
Uma vez perguntou esta santa a uma de suas noviças em que havia pensado depois da comunhão? Respondeu-lhe a noviça: no amor de Jesus. Sim, replicou então a santa, quando se pensa no amor, não se pode ir mais avante, antes é preciso deter-se nele. O Salvador do mundo, que pretendeis dos homens, deixando-vos levar a dar-lhes como alimento o vosso próprio ser? E que mais vos resta dar-nos, depois deste sacramento para nos obrigar a vos amar?
Ah! Meu Deus amantíssimo, iluminai-me para que conheça qual foi o excesso de bondade que vos reduziu a vos fazerdes minha comida na santa comunhão. Se, pois, vos destes inteiramente a mim, é justo que eu também me dê todo a vós. Sim, Jesus, eu me dou todo a vós, vos amo acima de todos os bens e desejo receber-vos para vos amar ainda mais. Vinde, sim, vinde muitas vezes à minha alma e fazei-a toda vossa. Ah! se eu pudesse dizer que em verdade como S. Filipe Néri ao receber a comunhão em viático: “Eis aí o meu amor, eis aí o meu amor; dai-me o meu amor.”
2. “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue, permanece em mim e eu nele” (Jo 6,57). S. Dionísio Areopagita diz que o amor tende sempre à união com o objeto amado. E porque a comida se faz uma só coisa com quem a toma, por isso Nosso Senhor quis fazer-se comida, para que nós, recebendo-o na santa comunhão, nos tornássemos uma só coisa com ele: “Tomai e comei: isto é o meu corpo” (Mt 25,26).
Como se quisesse dizer, assevera S. João Crisóstomo: Comei-me, para que nos tornemos um só ser (Hom. 15 in Joan), alimenta-te de mim, ó homem, para que de mim e de ti se faça uma só coisa. Assim como dois pedaços de cera derretidos, diz S. Cirilo Alexandrino, se misturam e confundem, da mesma forma uma alma que comunga se une de tal maneira a Jesus que Jesus está nela e ela em Jesus.
Ó meu amado Redentor, exclama S. Lourenço Justiniano, como pudestes chegar e amar-vos tanto e de tal modo unir-vos a vós, que o vosso coração e do nosso não se fizesse senão um só coração? (De div. amor, c. 5). Tinha, pois, razão S. Francisco de Sales de dizer, falando da santa comunhão: O Salvador não pode ser considerado em nenhum outro mistério nem mais amável nem mais terno que neste, no qual se aniquila, por assim dizer, e se reduz a comida para penetrar em nossas almas e unir-se ao coração de seus fiéis.
E assim, diz S. João Crisóstomo, nós nos unimos e nos tornamos um corpo e uma carne com aquele em quem os anjos não ousam fixar seus olhares. Que pastor, ajunta o santo, alimenta suas ovelhas com seu próprio sangue? Mesmo as mães dão seus filhos a amas estranhas. Jesus, porém, nesse sacramento nos alimento com o seu próprio sangue e une-se a nós (Hom. 60). Em suma, ele quer fazer-se nosso alimento e uma mesma coisa conosco, porque nos amava ardentemente (Hom. 51).
Ó amor infinito, digno de um infinito amor, quando vos amarei, ó meu Jesus, como vós me amastes? Ó alimento divino, ó sacramento de amor, quando me atraireis todo a vós? Não podeis fazer mais para vos fazerdes amar por mim. Eu quero sempre começar a amar-vos, prometo-vos sempre, mas nunca o começo. Quero começar hoje a amar-vos deveras. Ajudai-me, inflamai-me, desprendei-me da terra e não permitais que eu continue a resistir a tantas finezas de vosso amor. Eu vos amo de todo o coração e por isso quero tudo abandonar para vos comprazer, minha vida, meu amor, meu tudo. Quero unir-me muitas vezes convosco neste sacramento, para desprender-me de tudo e amar somente a vós, meu Deus. Espero de vossa bondade poder executá-lo com o vosso auxílio.
3. Temos visto a Sabedoria como que enlouquecida pelo excesso de amor, diz S. Lourenço. E de fato não parece uma loucura de amor, pergunta S. Agostinho, um Deus dar-se em alimento às suas criaturas? (In ps. 33 en. 1). E que mais poderia dizer uma criatura a seu Criador?
S. Dionísio Areopagita diz que Deus, por causa da grandeza de seu amor, como que caiu fora de Si, pois, mesmo sendo Deus, se fez não só homem, mas até alimento dos homens (Liv. V de div. Nom. p. 4). Mas tal excesso, Senhor, não convinha à vossa Majestade! Responde por Jesus S. João Crisóstomo: o amor não procura razões quando quer fazer bem e manifestar-se ao objeto amado; vai, não para onde lhe convém, mas para onde o arrasta seu desejo (Sem. 147).
Ah! Meu Jesus, quanto me envergonho ao pensar que, podendo vos possuir, bem infinito, mais digno de amor que todos os outros bens e tão abrasado em amor por minha alma, eu me deixei levar a amar os bens vis e mesquinhos, pelos quais vos abandonei. Por favor, ó meu Deus, manifestai-me cada vez mais as grandezas de vossa bondade, para que eu me abrase sempre mais em amor por vós e mais me esforce para vos agradar.
Ah! Meu Senhor, que objeto mais belo, mais perfeito, mais santo, mais amável que vós posso encontrar para amar? Amo-vos, bondade infinita, amo-vos mais do que a mim mesmo e quero viver para vos amar e vós que mereceis todo o meu amor.
4. S. Paulo considera o tempo, em que Jesus nos presenteou com este sacramento, dádiva que ultrapassa todos os outros dons que um Deus nos podia fazer: (como afirma S. Clemente), o qual sendo onipotente, nada mais tinha depois disso para nos dar, como atesta S. Agostinho. O Apóstolo nota e diz: “O Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão e dando graças o partiu e disse: Tomai e comei, isto é o meu corpo, que será entregue por vós (1Cor 11,23).
Naquela mesma noite, pois, na qual os homens pensavam em preparar a Jesus tormentos e morte, o amante Redentor pensou em deixar-lhes a si mesmo no SS. Sacramento, dando a entender que seu amor era tão grande que, em vez de arrefecer com tantas injúrias, antes mais se acendeu e inflamou com isso.
Ah! Senhor amorosíssimo, como pudestes amar tanto os homens, querendo ficar com eles na terra como seu alimento, quando eles vos expulsavam com tanta ingratidão? Note-se, além disso, o imenso desejo que Jesus teve na sua vida de ver chegar aquela noite em que resolvera deixar-nos esse grande penhor de seu amor, declarando no momento de instituir este dulcíssimo sacramento: Desejei ardentemente comer esta páscoa convosco (Lc 22,15). Estas palavras denunciam o ardente desejo que tinha de unir-se conosco na comunhão, pelo grande amor que por nós sentia, diz S. Lourenço Justiniano.
E o mesmo desejo conserva Jesus ainda hoje por todas as almas que o amam. Não se encontra uma abelha, disse ele um dia a S. Mectildes, que se precipite com tanto ímpeto sobre as flores para lhes sugar o mel, como eu me dirijo à alma que me deseja, impelido pela violência de meu amor.
Ó Deus amabilíssimo, não podeis dar-me maiores provas de vosso amor. Agradeço-vos a vossa bondade. Atraí-me, ó meu Jesus, inteiramente a vós: fazei que vos ame de hoje em diante com todo o meu coração e com toda a ternura. Que os outros se contentem de amar-vos só com um amor apreciativo e predominante: sei que com isso vos contentais; eu só me contentarei quando vir que amo com maior ternura que a um amigo, um irmão, um pai e um esposo.
E onde poderei encontrar um amigo, um irmão, um pai, um esposo que tanto me ame, como vós me amastes, meu Criador, meu Redentor e meu Deus, que por mim destes o sangue e a vida e ainda a vós mesmo todo inteiro neste sacramento de amor? Amo-vos, pois, ó meu Jesus, com todos os meus afetos, amo-vos mais do que a mim mesmo. Ajudai-me a amar-vos e nada mais vos peço.
5. Diz S. Bernardo que Deus nos amou somente para ser amado por nós (In Cant. serm. 83). E por isso protestou nosso Salvador que ele veio à terra para fazer-se amar: Vim trazer fogo à terra! Oh! que belas chamas de santo amor não acendeu Jesus nas almas por meio deste diviníssimo sacramento.
Dizia o venerável S. Francisco Olímpio, teatino, que nenhuma coisa é tão apta para inflamar os nossos corações a amar o sumo bem como a santa comunhão. Hesíquio chamava a Jesus no SS. Sacramento o fogo divino e S. Catarina viu um dia nas mãos de um sacerdote a Jesus-Sacramento semelhante a uma fornalha de amor, admirando-se de não estar o mundo inteiro abrasado por ela.
Segundo o abade Ruperto E S. Gregório Nisseno, o altar é aquela adega onde a alma, esposa de Jesus, se inebria de amor por seu Senhor, de tal modo esquecida da terra que se abrasa docemente e enlanguesce de santa caridade. “Introduziu-me na cela vinária, diz a esposa dos Cânticos, e ordenou em mim a caridade. Conformai-me com flores e alentai-me com maçãs, porque desfaleço de amor” (Ct 2,4).
Ó amor de meu coração, Santíssimo Sacramento! Oh! se eu me recordasse sempre de vós e me esquecesse de tudo para amar a vós somente, sem interrupção e sem reserva. Ah! Meu Jesus, tanto batestes à porta de meu coração que afinal nele entrastes, como eu o espero. Já, porém, que nele entrastes, peço-vos expulseis dele todos os afetos que não tendem para vós. Tomai posse de tal modo de mim que eu possa doravante dizer em toda a verdade com o profeta: “Que tenho eu no céu e, fora de ti, que desejei sobre a terra?... Deus de meu coração e minha partilha, Deus para sempre” (Sl 72,25). Meu Deus, que desejo eu fora de vós nesta terra e no céu? Vós só sois e sempre sereis o único senhor de meu coração e de minha vontade e vós só haveis de ser toda a minha partilha, toda a minha riqueza nesta e na outra vida.
6. Ide, dizia o profeta Isaías, ide e publicai por toda parte as invenções amorosas de nosso Deus, para obrigar os homens a seu amor. “Tirareis água com alegria das fontes do Salvador e direis nesse dia: Louvai o Senhor e invocai o seu nome, fazei conhecidas aos povos as suas invenções” (Is 12,3).
E que invenções não achou o amor de Jesus para se fazer amar por nós! Na cruz quis ele abrir-nos nas suas chagas tantas fontes de graças que, para recebê-las, basta o pedi-las com confiança. E não contente com isso quis dar-se todo a nós no SS. Sacramento. Ó homem, exclama S. João Crisóstomo, por que és tão mesquinho e te mostras tão reservado no amor para com teu Deus, que sem reserva se deu inteiramente a ti?
É precisamente no SS. Sacramento, diz o Doutor Angélico, que Jesus nos dá tudo quanto é e quanto tem (Opusc. 63, c. 3). Eis o Deus imenso que o mundo não pode conter, ajunta S. Boaventura, tornado nosso prisioneiro e cativo, quando vem ao nosso peito na sagrada comunhão (In praep. Miss. c. 4). Por isso S. Bernardo, considerando, esta verdade, fora de si de amor, exclamava: O meu Jesus quis fazer-se hóspede inseparável de meu coração. E já que o meu Deus quis entregar-se inteiramente a mim para cativar-me o amor, é justo, concluía, que eu me empregue todo e inteiro em servi-lo e amá-lo.
Ah! Meu caro Jesus, dizei-me, que mais vos resta inventar para vos fazerdes amar? E eu continuarei a viver tão ingrato para convosco como o tenho sido até agora? Senhor, não o permitais. Vós dissestes que quem se alimenta de vossa carne na comunhão viverá por virtude de vossa graça: “Quem me comer viverá por mim” (Jo 6,58).
Visto, pois, que vos não dedignais vir a mim na sagrada comunhão, fazei que minha alma viva sempre da verdadeira vida da vossa graça. Arrependo-me, ó sumo bem, de havê-la desprezado na minha vida passada, mas vos agradeço o tempo que me dais para chorar as ofensas que vos fiz. Quero pôr em vós, no restante de minha vida, todo o meu amor e pretendo agradar-vos quanto em mim estiver.
Socorrei-me, ó meu Jesus, não me abandoneis. Salvai-me por vossos merecimentos, e minha salvação consista em amar-vos sempre nesta vida e na eternidade. Maria, minha Mãe, ajudai-me também vós.
Fonte: Livro A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. (Santo Afonso Maria de Ligório.)