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IMITAÇÃO DE CRISTO.

 

EXORTAÇÕES À VIDA INTERIOR

 

Como o amor-próprio afasta no máximo grau do sumo bem

 

1. Jesus: Filho, cumpre que dês tudo por tudo, sem reservar-te a ti mesmo. Fica sabendo que teu amor-próprio te prejudica mais que qualquer coisa do mundo. Cada objeto mais ou menos te prende, segundo o amor e afeto que lhe tens. Se teu amor for puro, simples e bem ordenado, de nenhuma coisa serás escravo. Não cobices o que não te é lícito possuir, nem possuas coisa alguma que te possa impedir a liberdade interior ou dela privar-te. É de estranhar que te não entregues a mim, do íntimo do teu coração, com tudo que possas ter ou desejar.

 

Por que te consomes em vã tristeza? Por que te afanas em cuidados supérfluos? Conforma-te com a minha vontade e nenhum dano sofrerás. Se buscares isto ou aquilo, se desejares estar aqui ou ali, por tua comodidade ou teu capricho, nunca estarás quieto, nem livre de cuidados, porque em todas as coisas há algum defeito, e em todo lugar quem te contrarie.

 

De nada te serve, pois, adquirir ou acumular bens exteriores, mas muito te aproveita desprezá-los e desarraigá-los do coração. Isso não se entende somente do dinheiro e das riquezas, senão também da ambição das honras, e do desejo de vãos louvores porque tudo isso passa com o mundo. Pouco resguarda o lugar, se falta o espírito de fervor; nem durará muito tempo aquela paz procurada fora, se faltar ao teu coração o verdadeiro fundamento. Isto é, se não se firmar em mim. Mudar tu podes, mas não melhorar, porque, chegada a ocasião, e aceitando-a, encontrarás de novo aquilo de que fugiste e pior ainda.

 

2.   Oração para implorar a limpeza do coração e sabedoria celestial:

 

3. Confirmai-me Senhor, pela graça do Espírito Santo. Confortai em mim o homem interior e livrai meu coração de todo cuidado inútil e de toda ansiedade, para que não me deixe seduzir pelos vários desejos das coisas terrenas, sejam vis ou preciosas, mas para que as considere todas como transitórias, e me lembre que eu mesmo sou passageiro, como elas: Pois nada há estável debaixo do sol, onde tudo é vaidade e aflição de espírito (Ecl 1,14). Como é sábio quem assim pensa!

 

4. Dai-me, Senhor, sabedoria celestial, para que aprenda a buscar-vos, e achar-vos, antes que tudo, a gostar-vos e amar-vos acima de tudo, e a compreender todas as coisas como são, segundo a ordem de vossa sabedoria. Dai-me prudência, para afastar-me do lisonjeiro, e paciência para suportar a quem me contraria. Porque é grande sabedoria não se deixar mover por todo sopro de palavras, nem prestar ouvidos aos traiçoeiros encantos da sereia; pois só deste modo prossegue a alma com segurança no caminho começado.

 

Contra as línguas maldizentes

 

1. Filho, não te aflijas se alguém fizer de ti mau conceito ou disser coisas que não gostas de ouvir. Pior ainda deves julgar de ti mesmo, e avaliar-te o mais imperfeito de todos. Se praticares a vida interior, pouco te importarás de palavras que voam. É grande prudência calar-se nas horas da tribulação, volver-se interiormente a mim, e não se perturbar com os juízos humanos.

 

2. Não faças depender tua paz da boca dos homens; porque, quer julguem bem, quer mal de ti, não serás por isso homem diferente. Onde está a verdadeira paz e a glória verdadeira? Porventura não está em mim? Quem não procura agradar aos homens, nem teme desagradar-lhes, esse gozará grande paz. É do amor desordenado e do vão temor que nascem o desassossego do coração e a distração dos sentidos.

 

 

Como, durante a tribulação, devemos invocar a Deus e bendizê-lo

 

1. A alma: Senhor, bendito seja para sempre o vosso nome! Pois quisestes que me sobreviesse esta tentação e este trabalho. Não lhes posso fugir, mas tenho necessidade de recorrer a vós, para que me ajudeis e tudo convertais em meu proveito. Eis-me, Senhor, na tribulação, com o coração aflito; e quanto me atormenta o presente sofrimento. Pois que direi eu agora, Pai amantíssimo? Apertado estou entre angústias: "Salvai-me nesta hora. Veio sobre mim este transe, só para que vós fôsseis glorificado (Jo 12,17), quando eu estivesse muito abatido e fosse por vós livrado". "Dignai-vos, Senhor, livrar-me" (Sl 39,14); pois, pobre de mim, que farei e aonde irei, sem nós? Daí-me, Senhor, paciência ainda por esta vez.

 

2. Socorrei-me, Deus meu, e não temerei, por mais que seja atribulado. E que direi em tamanha necessidade? Senhor, seja feita a vossa vontade. Bem mereço ser atribulado e angustiado. Convém-me sofrer, e oxalá seja com paciência, até que passe a tempestade e volte a bonança. Bastante poderosa é, entretanto, vossa mão onipotente para tirar-me esta tentação, e moderar-lhe a violência, a fim de que não sucumba de todo; assim como já tantas vezes tendes feito comigo, ó meu Deus e minha misericórdia. E quanto mais difícil para mim, tanto mais fácil para vós é esta mudança da destra do Altíssimo (Sl 76,11).

 

 

Como se há de pedir o auxílio divino e confiar para recuperar a graça

 

1. Jesus: Filho, eu sou o Senhor, que te conforta no dia da tribulação (Na 1,7). Vem a mim quando te achares aflito. O que mais te impede de receber a consolação é que tarde recorres à oração. Antes que ores com atenção, procuras consolar-te, recreando-te com vários divertimentos exteriores. Daqui vem que pouco proveito tiras de tudo, até que conheças que sou eu quem salva do perigo os que em mim esperam, e que fora de mim não há auxílio valioso, nem conselho útil, nem remédio durável. Uma vez, porém, que recobraste alento depois da tempestade, procura readquirir forças à luz das minhas misericórdias; pois estou perto, diz o Senhor, para tudo restaurar, não só com integridade, mas também com abundância e profusão.

 

2. Porventura há para mim alguma coisa dificultosa (Jr 32,37), ou sou semelhante àquelas que dizem e não fazem? Onde está a tua fé? Tem firmeza e segurança! Mostra-te corajoso e magnânimo, e a seu tempo te virá a consolação. Espera por mim, espera! Virei e te curarei. É tentação o que te atormenta, é temor vão o que te assusta. Que ganhas com a solicitude de um futuro contingente, senão que tenhas tristeza sobre tristeza? A cada dia basta seu fardo (Mt 6,34). Coisa vã e inútil é entristecer-se ou regozijar-se com as coisas futuras, que talvez nunca venham a realizar-se.

 

3. É próprio do homem deixar-se iludir por tais imaginações, mas é sinal de pouco ânimo ceder tão facilmente às sugestões do inimigo. A ele pouco importa se é por meios verdadeiros ou falsos que te seduz e engana, se é com amor dos bens presentes, ou com o temor dos males futuros que te deita a perder. "Não se perturbe, pois, teu coração, nem se amedronte" (Jo 14,27). Crê em mim, e tem confiança em minha misericórdia. Quando te julgas muito longe de mim, mais perto estou, às vezes, de ti. Quando pensas que está tudo quase perdido, muitas vezes está próxima a ocasião de granjeares maior merecimento. Nem tudo está perdido, por te acontecer alguma contrariedade. Não julgues pela impressão do momento, nem te aflijas com qualquer tribulação, venha donde vier, como se não houvesse esperança de remédio.

 

4. Não te julgues inteiramente desamparado, ainda quando, de tempos a tempos, te mando alguma tribulação ou te privo de alguma consolação desejada; porque é este o caminho por onde se vai ao reino dos céus. E isto, sem dúvida, convém mais a ti e a todos os meus servos, serdes exercitados nas adversidades, do que se tudo vos sucedesse à vossa vontade. Eu conheço os pensamentos escondidos, e sei que muito importa à tua salvação seres, às vezes, privado de toda consolação espiritual, para que não te exalte o bom progresso e te desvaneças do que não és. O que dei posso tirar, e dar de novo, quando me aprouver.

 

5. É sempre meu o que dou, e quando o tiro; não tomo coisa tua, pois "de mim procede qualquer dádiva boa de todo dom perfeito" (Tg 1,17). Se eu te enviar qualquer pena ou contrariedade, não te revoltes nem desfaleça teu coração; eu posso num momento aliviar-te e transformar tua mágoa em alegria. Todavia, procedendo eu assim para contigo, sou justo e digno de louvor.

 

6. Se refletires bem e julgares as coisas segundo a verdade, não deves afligir-te tanto com a adversidade, nem desanimar, mas, ao contrário, alegrar-te e dar-me graças. Até deve ser tua única alegria que eu te aflija com dores, sem poupar-te. Assim como meu Pai me amou, também eu vos amo a vós (Jo 15,19), disse eu a meus diletos discípulos, e, entretanto, não os enviei às delícias temporais, mas às grandes pelejas, não às honras, mas aos desprezos, não aos passatempos, mas sim a produzir fruto copioso na paciência. Meu filho, lembra-te bem destas palavras.

 

 

Do desprezo de toda criatura, para que se possa achar o Criador.

 

1. A alma: Senhor, muita graça ainda me é necessária para chegar a tal ponto, que nenhum homem nem criatura alguma me possa estorvar.Pois, enquanto me detém alguma coisa, não posso voar à vós livremente. Aspirava a esta liberdade o profeta, quando dizia: Quem me dera asas como a pomba, para poder voar e descansar! (Sl 54,7). Que há de mais sereno que o olhar singelo, e quem é mais livre que o homem sem desejo terrestre? Por isso importa elevares-te acima de todas as criaturas, e renunciares totalmente a ti mesmo, e naquele arroubo da alma perseverares e compreenderes que o Autor de todas as coisas não tem semelhança com as criaturas. E quem não estiver desprendido das criaturas, não poderá livremente atender às coisas divinas. Por isso se encontram tão poucos contemplativos, porque raros são os que sabem desapegar-se de todo das coisas perecedoras.

 

Para isso é mister graça poderosa, que levante a alma e a arrebate acima de si mesma. Enquanto o homem não for elevado em espírito, livre de todas as criaturas e todo unido a Deus, pouco vale quanto sabe e quanto possui. Imperfeito permanecerá por muito tempo e preso à terra quem algo estimar que não seja o único, imenso e terno Bem. Porque tudo que não é Deus é nulo, e deve ser tido em conta de nada. Há grande diferença entre a sabedoria de um homem iluminado e devoto e a ciência de um letrado e estudioso. Muito mais nobre é a doutrina que vem do céu, por inspiração divina, do que aquilo que o engenho humano adquire à custa de muito esforço.

 

2. Muitos há que desejam a vida contemplativa, mas não tratam de exercitar-se nas coisas que ela exige. O grande obstáculo é que se detêm nos sinais e coisas sensíveis, cuidando pouco da perfeita mortificação. Não sei o que é, nem que espírito nos move, nem que pretendemos nós que passamos por homens espirituais quando empregamos tanto trabalho e cuidado nas coisas vis e transitórias, ao passo que raras vezes nos recolhemos plenamente a considerar nosso interior.

 

3. Ai! Que, depois de curto recolhimento, logo nos dissipamos, sem ponderar nossas ações em rigoroso exame. Não reparamos para onde se inclinam nossos afetos, nem deploramos quão defeituoso é tudo em nós. Por ter corrompido toda a carne o seu caminho (Gn 6,12), veio o grande dilúvio. Estando, pois, corrompido o nosso afeto interior, forçosamente se há de corromper a ação que dele se segue, patenteando bem a fraqueza interior. Só do coração puro procede o fruto da boa vida.

 

4. Muitos indagam quanto fez uma pessoa, mas de quanta virtude foi animada nem tanto se cura. Com diligência investigam se alguém é forte, rico, formoso, hábil, bom escritor, bom cantor, bom artista; mas quão pobre seja de espírito, quão paciente e manso, quão piedoso e espiritual, disso não se faz caso. A natureza só considera o exterior do homem, mas a graça olha o interior. Aquela muitas vezes se engana, esta espera em Deus, para não ser iludida.

 

 

Da abnegação de si mesmo e abdicação de toda cobiça

 

1. Jesus: Filho, não podes gozar perfeita liberdade, enquanto não renunciares inteiramente a ti mesmo. Em escravidão vivem todos os ricos e egoístas, os cobiçosos, curiosos, que gostam de vaguear, buscando sempre as delícias dos sentidos e não as de Jesus Cristo, mas só imaginam o que não pode permanecer e só disso cogitam. Pois tudo que não vem de Deus perecerá. Conserva em teu coração esta breve e profunda sentença: Deixa tudo, e terás sossego. Pondera isto, e, quando o praticares, tudo entenderás.

 

2. A alma: Senhor, isto não é obra de um dia, nem brincadeira de criança, antes nesta breve palavra se compendia toda a perfeição religiosa.

 

3. Jesus: Filho, não deves recear, nem logo desanimar, ouvindo falar do caminho dos perfeitos, mas antes esforça-te por um estado mais perfeito, ou pelo menos almeja-o ardentemente. Oxalá fosses assim e tivesses chegado a tanto, que não te amasses a ti mesmo, mas estivesses inteiramente resignado à minha vontade e à daquele que te dei por diretor. Muito me agradarias, então, e toda a tua vida passaria em paz e alegria. Ainda tens que desprender-te de muitas coisas, e se não mas entregares inteiramente, não alcançarás o que me pedes. "Aconselho-te que me compres o ouro acrisolado, para te tornares rico" (Ap 3,18), isto é, a sabedoria celestial, que pisa aos pés todas as coisas terrenas. Despreza a sabedoria terrena, todo o humano contentamento e própria complacência.

 

4. Eu disse que deves buscar, em lugar das coisas nobres e preciosas, aquilo que, aos olhos do mundo, é vil e desprezível. Porque mui vil e desprezível, até quase esquecida, parece a verdadeira e celestial sabedoria, que não se tem em grande conta, nem trata de se engrandecer na terra. Muitos a louvam com a boca, mas afastam-se dela na vida; contudo é esta a pérola preciosa, conhecida de poucos. 

 

 

Da instabilidade do coração e que a intenção final se há de dirigir a Deus

 

1. Jesus: Filho, não te fies nos teus afetos atuais, que depressa em outros se mudarão. Enquanto viveres, estarás sujeito ao variável, ainda que não queiras; ora te acharás alegre, ora triste, ora sossegado ora perturbado, umas vezes fervoroso, outras tíbio, já diligente, já preguiçoso, agora sério, logo leviano. O sábio, porém, e instruído na vida espiritual, está acima desta inconstância, não cuidando dos seus sentimentos, nem de que parte sopra o vento da instabilidade, mas concentrando todo o esforço de sua alma no devido e almejado fim. Porque assim poderá permanecer sempre o mesmo e inabalável, dirigindo a mim, sem cessar, a mira de sua intenção, entre todas as vicissitudes que lhe sobrevierem.

 

2. Quanto mais pura for tua intenção, porém, tanto mais constante serás durante as diversas tempestades. Mas em muitos se escurece o olhar da pura intenção, porque depressa o volvem para qualquer objeto deleitável que se lhes depare. Poucos há inteiramente livres da pecha do egoísmo. Assim, os judeus foram um dia a Betânia, em casa de Maria e Marta, não só por amor de Jesus, mas também para verem a Lázaro (Jo 12,9). Cumpre, pois, purificar a intenção, para que seja simples e reta e se dirija a mim acima de tudo que há de permeio.

 

 

Como Deus é delicioso em tudo e sobretudo a quem o ama.

 

1. A alma: Vós sois meu Deus e meu tudo! Que mais quero eu e que dita maior posso desejar? Ó palavra suave e deliciosa! Mas só para quem ama a Deus, e não o mundo nem as suas coisas. Meu Deus e meu tudo! Para quem a entende basta esta palavra, e quem ama acha delicia em repeti-la a miúdo. Porque, quando estais presente tudo é aprazível, mas, se vos ausentais, tudo enfastia. Vós dais ao coração sossego, grande paz e jubilosa alegria. Vós fazeis que julguemos bem de todos e em tudo vos bendigamos; nem pode, sem vós, coisa alguma agradar-nos por muito tempo, mas, para ser agradável e saborosa, é necessário que lhe assista a vossa graça e a tempere o condimento da vossa sabedoria.

 

2. A quem saboreia vossa doçura, que coisa não lhe saberá bem? Mas a quem em vós não se deleita, que coisa lhe poderá ser gostosa? Diante da vossa sabedoria desaparecem os sábios do mundo e os amadores da carne, porque nos primeiros se acha muita vaidade, nos últimos, a morte; os que, porém, vos seguem pelo desprezo do mundo e pela mortificação da carne, esses são verdadeiramente sábios, porque trocam a vaidade pela verdade, e a carne pelo espírito. Esses acham gosto nas coisas de Deus, e tudo quanto se acha de bom nas criaturas, referem-no à glória do seu Criador. Diferente, porém, e mui diferente, é o gosto que se encontra em Deus e na criatura, na eternidade e no tempo, na luz incriada e na luz criada.

 

3. Ó luz eterna, superior a toda luz criada, lançai do alto um raio que penetre todo o íntimo do meu coração. Purificai, alegrai, iluminai e vivificai a minha alma com todas as suas potências, para que a vós se una em transportes de alegria. Oh! Quando virá aquela ditosa e almejada hora, em que haveis de saciar-me com a vossa presença, e ser-me tudo em todas as coisas? Enquanto isso não me for concedido, minha alegria não será perfeita. Mas ai! Que ainda vive em mim o homem velho, não de todo crucificado nem inteiramente morto. Ainda se revolta fortemente contra o espírito e move guerras interiores; nem consente em que reine tranqüilidade na alma.

 

4. Mas vós, que dominais a impetuosidade do mar e aplacais o furor das ondas, levantai-vos e socorrei-me! Dissipai os poderes que procuram guerras, esmagai-os com o vosso braço (Sl 88,10; Sl 43,26;Sl 67,31). Manifestai, Senhor, as vossas maravilhas, e seja glorificada a vossa destra (Eclo 36,7; Jd 9,11), pois não tenho outro refúgio senão em vós, meu Senhor e meu Deus!

 

 

Como nesta vida não há segurança contra a tentação.

 

1. Jesus: Filho, nunca estarás seguro nesta vida, mas, enquanto viveres, terás necessidade de armas espirituais. Andas cercado de inimigos, que à direita e à esquerda te acometem. Logo, se não te armares por todos os lados com o escudo da paciência, não estarás por muito tempo sem ferida. Demais, se não firmares em mim teu coração, com sincera vontade de sofrer tudo por meu amor, não poderás suportar tão renhido combate, nem alcançar a palma dos bem aventurados. Cumpre, pois, caminhar com ânimo varonil por entre todos os obstáculos, e rebater com a mão poderosa todos os empecilhos. Pois ao vencedor será dado o maná (Ap 2,17), e ao covarde aguarda muita miséria.

 

2. Se buscas descanso nesta vida, como chegarás ao descanso eterno? Não procures muito descanso, mas muita paciência. Busca a paz verdadeira do céu, não sobre a terra, não nos homens, nem nas demais criaturas, mas só em Deus. Deves, por amor de Deus, aceitar tudo de boa vontade, isto é, trabalhos e sofrimentos, tentações, vexames, ansiedades, doenças, injúrias, murmurações, repreensões, humilhações, afrontas, correções e desprezos. Tudo isto faz progredir na virtude, prova o novo soldado de Cristo e prepara a coroa celestial. Eu darei prêmio eterno por breve trabalho, e glória infinita por humilhação transitória.

 

3. Julgas que sempre há de ter consolações espirituais à medida de teus desejos? Nem sempre as tiveram os meus santos, passando ao contrário por muitas penas, várias tentações e grandes angústias. Mas eles suportaram tudo com paciência, mais confiados em Deus que em si, porque sabiam "que não têm proporção os sofrimentos desta vida com a futura glória" que os recompensa (Rm 8,18). Quereis obter logo o que tantos apenas conseguiram só depois de copiosas lágrimas e grandes trabalhos? Espera no Senhor, age varonilmente, e sê firme (Sl 26,14); não desanimes, não recues, mas expõe generosamente corpo e alma pela glória de Deus. Eu te recompensarei plenamente, e estarei contigo em toda tribulação (Sl 90,15) .

 

 

Contra os juízos dos homens

 

1. Jesus: Filho põe tua confiança em Deus e não temas os juízos humanos, enquanto tua consciência te der testemunho da tua piedade e inocência. É bom e salutar sofrer deste modo, nem isso será penoso ao coração humilde, que confia mais em Deus que em si mesmo. Muitos falam com demasia, e por isso não se lhes deve dar muito crédito. Mas também não é possível satisfazer a todos. Ainda que Paulo se empenhasse por agradar a todos no Senhor, fazendo-se tudo para todos (1Cor 9,22), contudo, fez pouco caso de ser julgado no tribunal dos homens (1Cor 4,3).

 

2. Fez todo o possível para a edificação e salvação dos outros, quanto dele dependia; contudo não pôde evitar ser julgado e desprezado por alguns; por isso pôs tudo nas mãos de Deus, que tudo conhecia, e defendeu-se com paciência e humildade contra as línguas maldizentes dos que inventavam maldades e mentiras e as espalhavam a seu bel-prazer. Todavia, uma vez ou outra, dava resposta, para que seu silêncio não fosse causa de se escandalizarem os fracos.

 

3. Quem és tu, que temes um homem mortal? (Is 51, 12). Hoje existe e amanhã já não aparece. Teme a Deus, e não temerás as ameaças dos homens. Que mal te pode fazer um homem com palavras e afrontas? Mais se prejudica a si mesmo do que a ti, e, seja quem for, não poderá escapar ao juízo de Deus. Põe os olhos em Deus, e não contendas com palavras de queixa. Se agora pareces sucumbir e padecer injúria não merecida, não fiques contrariado nem diminuas a tua coroa com a impaciência, mas antes levanta os olhos ao céu, para mim, que poderoso sou, para te livrar de toda confusão e injúria e dar a cada um conforme suas obras.

 

 

Da pura e completa renúncia de si mesmo para obter liberdade de coração

 

1. Jesus: Filho, deixa-te a ti, e achar-me-ás a mim. Despe tua vontade e teu amor-próprio, e sempre tirarás lucro. Porque, logo que te entregares a mim sem reservas, se te acrescentará a graça.

A alma: Senhor, em que devo renunciar-me, e quantas vezes?

 

Jesus: Sempre e a toda hora tanto no muito como no pouco. Nada excetuo, mas quero te achar despojado de tudo. De outra sorte, como poderás ser meu e eu teu, se não estiveres, exterior e interiormente, desapegado de toda vontade própria? Quanto mais prontamente isso fizeres, tanto melhor te acharás, e quanto mais pleno e sincero for teu sacrifício, tanto mais me agradarás e maior lucro terás.

 

Alguns há que se entregam a mim, mas com alguma reserva, porque não têm plena confiança em Deus, e por isso tratam de prover as próprias necessidades. Outros, a princípio, tudo oferecem, mas depois, combatidos pela tentação, volvem-se novamente às próprias comodidades, e eis por que quase não progridem nas virtudes. Estes nunca chegarão à verdadeira liberdade do coração puro, nem à graça de minha doce familiaridade, enquanto não renunciarem de todo a si mesmos, oferecendo-se em cotidiano sacrifício a Deus, sem o que não há nem pode haver união deliciosa comigo.

 

2. Muitas vezes te disse e agora te torno a dizer: deixa-te, renuncia a ti mesmo, e gozarás grande paz interior. Dá tudo por tudo, não busques, não reclames coisa alguma, persevera, pura e simplesmente, em mim, e me possuirás. Terás livre o coração e as trevas não te poderão oprimir. A isto te aplica, isto pede, isto deseja: ser despojado de todo amor próprio, para que possas seguir nu a Jesus desnudado, morrer a ti mesmo e viver eternamente. Então se dissiparão todas as vãs imaginações, penosas pertubações e supérfluos cuidados. Logo também desaparecerá o temor demasiado, e morrerá o amor desordenado.

 

 

Do bom procedimento exterior, e do recurso a Deus nos perigos

 

1. Jesus: Filho, nisto deves empenhar toda a diligência, que em todo lugar, ação ou ocupação exterior estejas interiormente livre e senhor de ti mesmo, dominando todas as coisas, e a nenhuma sujeito. Deves ser o senhor e diretor de tuas ações e não servo ou escravo; cumpre sejas livre e verdadeiro israelita, que chega à condição de liberdade dos filhos de Deus. Esses elevam-se acima das coisas presentes e contemplam as eternas; só de relance olham para as coisas transitórias, e têm a vista presa nas celestiais. Não se deixam atrair e prender pelas coisas temporais, mas servem-se delas conforme o fim para que foram ordenadas por Deus e destinadas pelo supremo Artífice, que nada deixou sem ordem nas suas criaturas.

 

2. Se, além disso, em qualquer acontecimento, não te demorares na aparência exterior, nem considerares com os olhos carnais o que vês e ouves, mas em qualquer negócio entrares logo com Moisés no tabernáculo e consultar o Senhor; ouvirás às vezes, a sua divina resposta, e sairás instruído a respeito de muitas coisas presentes e futuras. Sempre recorria Moisés ao tabernáculo para resolver suas dúvidas e dificuldades, valia-se da oração para triunfar dos perigos e das maldades dos homens. Do mesmo modo deves tu te refugiar no mais recôndito do teu coração, para, com mais instância, implorar o divino auxílio. Por isso - como está escrito - Josué e os filhos de Israel foram enganados pelos gabaonitas "porque não consultaram primeiro ao Senhor", mas, dando crédito demasiado às suas doces palavras, deixaram-se enganar por fingida piedade.

 

 

Que o homem não seja impaciente nos seus negócios

 

1. Jesus: Filho, confia-me sempre teus negócios, eu disporei tudo bem a seu tempo. Espera minha determinação, e disso tirarás proveito.

 

2. A alma: Senhor, de mui boa vontade vos confio todas as coisas, porque pouco adianta o meu cuidado. Oxalá não me perturbasse com os conhecimentos futuros, mas me oferecesse sem demora ao vosso beneplácito!

 

Jesus: Filho, muitas vezes procura o homem com ânsia uma coisa que deseja; logo, porém, que a alcança, muda de parecer, porque as afeições não persistem muito ao mesmo objeto, mas facilmente passam de um para outro. Pelo que, não é pouco renunciar-se o homem a si mesmo, ainda nas coisas pequenas.

 

3. O verdadeiro progresso do homem consiste na abnegação de si mesmo, e quem assim se abnegou, goza grande liberdade e segurança. Contudo, o antigo inimigo, o adversário de todo o bem não desiste da tentação, armando dia e noite perigosas ciladas, para ver se pode precipitar algum incauto no laço do seu engano. Vigiai e orai, diz o Senhor, para que não entreis em tentação (Mt 26, 41).

 

 

Que o homem por si mesmo nada tem de bom e de nada se pode gloriar

 

1. A alma: Senhor, que é o homem, para que vos lembreis dele, ou o filho do homem, para que o visiteis? (Sl 8,5). Por onde mereceu o homem que lhe deis a vossa graça? Como me posso queixar, se me desamparais, ou que posso justamente opor, se não me concedeis o que peço? Decerto, com verdade posso pensar e dizer: Senhor, nada sou, nada posso, nada de bom tenho de mim mesmo, mas falta-me tudo, e sempre pendo para o nada. E se vós não me ajudais e ensinais, fico de todo tíbio e relaxado.

 

Vós, porém, Senhor, sempre sois o mesmo e permaneceis eternamente bom, justo e santo, e boas são vossas obras todas, e justas e santas, e dispondes tudo com sabedoria. Mas eu, que sou mais inclinado à negligência que ao aproveitamento espiritual, não sei conservar-me no mesmo estado, porque mudo sete vezes por dia. Mas logo me vai melhor, quando vos apraz estender-me a mão para me socorrer; porque só vós, sem auxílio humano, me podeis ajudar e dar-me firmeza, de tal modo que jamais se mude meu rosto, mas só a vós se converta meu coração e em vós descanse.

 

2. Por isso, se eu soubesse rejeitar toda humana consolação, fosse por adquirir a devoção, fosse pela necessidade que me obriga a buscar-vos, então poderia com razão esperar a vossa graça e alegrar-me com o favor de uma nova consolação.

 

3. Graças vos sejam dadas, Senhor, porque de vós procede todo o bem que me sucede. Mas eu sou vaidade e nada, diante de vós, sou homem frágil e inconstante. De que posso, pois, gloriar-me, ou por que desejo ser estimado? Porventura do meu nada? Isso seria o cúmulo da vaidade. Verdadeiramente a vanglória é peste maligna e a pior das vaidades, porque nos aparta da glória verdadeira e nos priva da graça celestial. Porquanto, desde que o homem agrada a si, desagrada a vós, e quando aspira aos humanos louvores, perde as verdadeiras virtudes.

 

4. Glória verdadeira, porém, e alegria santa é gloriar-se cada um em vós e não em si, deleitar-se em vosso nome e não na sua própria virtude, não achar deleite em criatura alguma, senão por amor de vós. Seja louvado o vosso nome e não o meu; sejam glorificadas vossas obras e não as minhas; exaltado seja o vosso santo nome, e a mim nada se atribua dos louvores humanos. Vós sois minha glória e a alegria do meu coração. Em vós me gloriarei e exaltarei todo dia, mas, quanto à minha pessoa, de nada me ufano, a não ser das minhas fraquezas (2Cor 12,5).

 

5. Busquem os judeus a glória uns dos outros, eu busco aquela que vem só de Deus (Jo 5,44). Pois toda glória humana, toda glória temporal e toda grandeza mundana, comparada com a vossa eterna glória, não passa de vaidade e loucura. Ó verdade e misericórdia minha, Deus meu, Trindade bem-aventurada! A vós só seja dado louvor, honra, virtude e glória por todos os séculos.

 

 

Do desprezo de toda honra temporal

 

1. Jesus: Filho, não te entristeças por veres os outros honrados e exaltados, ao passo que tu és desprezado e humilhado. Ergue a mim o teu coração até ao céu, e não te entristecerá o desprezo humano na terra.

 

A alma: Senhor, vivemos na cegueira, e facilmente nos engana a vaidade. Se bem me examino, nunca recebi injúria de criatura alguma; não tenho, pois, motivo de justa queixa contra vós.

 

2. Mas, porque cometi tantos pecados, e tão graves, contra vós, é justo que contra mim se armem todas as criaturas. A mim, pois, com muita razão, cabe confusão e desprezo, a vós, porém, louvor, honra e glória. E enquanto não estiver disposto a querer de bom grado ser desprezado e abandonado de todas as criaturas, e ser tido absolutamente em nada, não haverá em mim paz e tranqüilidade interior, nem serei espiritualmente iluminado, nem perfeitamente unido a vós.

 

 

Como não se deve procurar a paz nos homens

 

1. Jesus: Filho se puseres tua paz em alguma pessoa, por conviver contigo e ser de teu parecer, achar-te-ás inconstante e embaraçado. Mas, se recorreres à verdade sempre viva e permanente, não te entristecerás pela ausência e morte de um amigo. Em mim se há de fundar o amor do amigo, e por mim se há de amar todo aquele que nesta vida te parecer bom e amável. Sem mim não vale nada, nem durará a amizade; nem é puro e verdadeiro o amor cujos laços eu não tenha dado. De tal modo deves estar morto para semelhantes afeições dos amigos que, quanto depender de ti, desejes viver sem relações humanas. Quanto mais se chegar o homem para Deus, tanto mais se afastará de todo alívio terreno. E tanto mais alto sobe para Deus, quanto mais baixo desce na sua estimação, e mais vil se reputa.

 

2. Mas quem a si mesmo se atribui algum bem impede que a graça venha à sua alma; porque a graça do Espírito Santo sempre busca o coração humilde. Se te souberas perfeitamente aniquilar e desprender de todo amor criado, então viria a ti com a abundância de minhas graças. Quando olhas para as criaturas, perdes a contemplação do Criador. Aprende a vencer-te em tudo por teu Criador, e então poderás chegar ao conhecimento divino. Qualquer coisa, por pequena que seja, se a amas e aprecias desordenadamente, mancha a alma e te separa do sumo bem.

 

 

Contra a vã ciência do século

 

1. Jesus: Não te deixes cativar pela elegância e sutileza dos dizeres humanos, porque o reino de Deus não consiste em palavras, mas na virtude (1Cor 2,4). Atende às minhas palavras, que inflamam o coração, iluminam o espírito, levam à compunção e produzem muitas consolações. Nunca leias minha palavra com o fim de pareceres mais douto ou sábio. Aplica-te a mortificar teus vícios, porque isso te traz mais proveito que o conhecimento das mais difíceis questões.

 

2. Por muito que estudes e aprendas, terás que referir tudo sempre ao único princípio. Sou eu que ensino ao homem a ciência, e dou aos pequeninos mais clara compreensão, do que os homens são capazes de ensinar. Aquele a quem eu ensinar, depressa será sábio e muito aproveitará espiritualmente. Ai daqueles que indagam dos homens muitas coisas curiosas, e tratam pouco dos meios de me servir. Tempo virá em que aparecerá o Mestre dos mestres, Cristo, Senhor dos anjos, para tomar lições de todos, isto é, para examinar a consciência de cada um. E com a lâmpada na mão perscrutará então Jerusalém, e revelará o segredo das trevas, fazendo calar as objeções das línguas humanas.

 

3. Eu sou o que levanta num instante o espírito humilde, de maneira que compreenda melhor as razões das verdades eternas, do que se houvera estudado dez anos nas escolas. Eu ensino sem ruído de palavras, sem confusão de opiniões, sem espalhafato, sem contenda de argumentos. Eu sou o que ensina a desprezar as coisas terrenas, a aborrecer as coisas presentes, a buscar e apreciar as eternas, a fugir às honras, sofrer as injúrias, pôr em mim toda esperança, a não desejar coisa alguma fora de mim e amar só a mim, com todo fervor, acima de tudo.

 

4. Alguns, amando-me inteiramente, aprenderam com isso coisas divinas e falavam coisas maravilhosas. Mais aproveitaram em deixar tudo, do que em estudar questões sutis. A uns, porém, falo coisas comuns, a outros, mais particulares; a alguns revelo-me docemente em sinais e figuras, a outros descubro os meus mistérios com muita luz. A mesma voz fala em todos os livros, mas não ensina a todos da mesma maneira; pois eu sou o que interiormente ensina a verdade, perscruta o coração, penetra os pensamentos. Inspira as ações, distribuindo a cada um segundo me apraz.

 

 

Que se não devem tomar a peito as coisas exteriores

 

1. Jesus: Filho, convém fazeres-te ignorante em muitas coisas, e reputares-te como que morto sobre a terra, para que todo o mundo te esteja crucificado. Importa também que te faças surdo a muitas coisas, cuidando antes do que serve à tua paz. Mais útil é desviares os olhos do que não te agrada e deixares a cada um seu parecer, do que entrares em discussões. Se estiveres bem com Deus e considerares seus juízos, não te será custoso dares-te por vencido.

 

2. A alma: Ah! Senhor, a que chegamos? Eis que choramos uma perda temporal, trabalhamos e corremos para ganhar mesquinho lucro, mas do dano espiritual nos esquecemos e mal nos lembramos, ou tarde. Olha-se muito pelo que pouco ou nada vale, e não se faz caso do que é sumamente necessário, porque o homem inteiramente se entrega às coisas exteriores, e, se prontamente não se recolher, nela descansa com prazer.

 

 

Que se não deve dar crédito a todos, e quão facilmente faltamos nas palavras

 

1. Socorrei-nos, Senhor, na tribulação, porque é vão o auxílio humano (Sl 59,3). Oh! Quantas vezes procurei em vão fidelidade, onde cuidava que a havia! Ah! Quantas vezes a encontrei onde menos a esperava! Vã é, pois, a esperança que se põe nos homens; em vós, meu Deus, está a salvação dos justos. Bendito sejais, Senhor meu Deus, em tudo que nos sucede. Nós somos fracos e inconstantes, facilmente nos enganamos e mudamos.

 

Que haverá tão cauteloso e vigilante em todas as coisas, que alguma vez não caia em perturbação ou engano? Mas aquele que em vós, Senhor, confia, e vos procura de coração sincero, não cai tão facilmente. E se vier a cair em alguma tribulação, de qualquer sorte que esteja embaraçado nela, prontamente será por vós libertado ou consolado, porquanto não desamparais para sempre a quem em vós espera. Raro é o amigo fiel que persevera em todas as tribulações de seu amigo. Vós, Senhor, sois o único amigo fidelíssimo e não se acha outro igual.

 

2. Oh! bem o soube aquela alma santa (Santa Águeda) que disse: "Meu coração está firmado e fundado em Cristo!" Se assim fora comigo, não me perturbaria tão facilmente o temor humano, nem me abalariam as flechas das más palavras. Quem pode prever tudo e precaver-se contra os males futuros? Se os males previstos já ferem tanto, quanto mais os imprevistos causarão feridas dolorosas! Mas por que motivo, sendo eu tão miserável, não me acautelei melhor? Por que tão facilmente dei créditos aos outros? Entretanto - somos homens e nada mais que homens fracos, ainda que muitos se julguem e chamem anjos. A quem hei de crer, Senhor? a quem senão a vós? Vós sois a verdade que não engana nem pode ser enganada. Ao passo que está escrito: "Todo homem é mentiroso (Sl 115,2), fraco, inconstante, inclinado a pecar, mormente em palavras, de sorte que mal se deve logo acreditar o que, à primeira vista, parece verdadeiro".

 

3. Quão prudentemente nos aconselhastes que nos acautelássemos dos homens, e nos dissestes que "os inimigos do homem são os que com ele moram" (Mt 10,36), que não devemos dar crédito se alguém nos disser: Aqui está Cristo! Ou está acolá! À minha custa aprendi esta verdade, e queira Deus que me sirva de maior cautela e não para dar provas de maior insensatez! Toma cuidado, diz-me alguém, e guarda para ti o que te digo. E enquanto me calo e guardo segredo, não pode guardar silêncio aquele que me pediu segredo, senão logo descobre a si e a mim e lá se vai. De homens tais, palradores e desacautelados, livrai-me, Senhor, para que não caia em suas mãos nem cometa semelhantes faltas. Ponde em minha boca palavras sérias e sinceras, e apartai de mim o embuste da língua. A todo custo devo evitar o que não quero aturar dos outros.

 

4. Oh! Como é bom, para viver em paz, calar dos outros, não crer tudo indiferentemente, nem repeti-lo logo a outrem; abrir-se a poucos e buscar sempre a vós, o perscrutador do coração; não se mover com qualquer sopro de palavra, mas desejar que todas as coisas exteriores e interiores se façam conforme o beneplácito da vossa vontade. Que meio seguro para conservar a divina graça, fugir do que cai na vista dos homens, e não desejar o que possa granjear-nos a admiração dos homens, antes procurar, com toda solicitude, o que serve para emenda da vida e fervor da alma! A quantos prejudicou a virtude divulgada e prematuramente elogiada! Quanto proveito, porém, traz conservar a graça do silêncio, durante esta vida tão frágil, que não é mais que contínua tentação e peleja!

 

 

Da confiança que havemos de ter em Deus quando se nos dizem palavras afrontosas

 

1. Jesus: Filho conserva-te firme e espera em mim, pois palavras são palavras; ferem os ares, mas não quebram a pedra. Se és culpado, trata logo de emendar-te; se a consciência de nada de acusa, faze o propósito de sofrer isso de boa vontade, por amor de Deus. Não é muito sofreres, às vezes, más palavras, já que me não podes ainda suportar mais pesados golpes. E por que razão te ferem tão leves coisas senão porque és ainda carnal e fazes ainda mais caso dos homens do que convém? Temes ser desprezado, e por isso não queres ser repreendido de tuas faltas e procuras defender-te com desculpas.

 

2. Mas examina-te melhor e verá que vive ainda em ti o mundo e o vão desejo de agradar aos homens. Pois, já que foges de ser abatido e confundido por causa dos teus defeitos, mostras claramente que não és verdadeiramente humilde, nem inteiramente morto ao mundo, e que o mundo não está de todo crucificado para ti (Gl 6,14). Mas ouve a minha palavra e não farás caso de dez mil palavras humanas. Mesmo que dissessem contra ti quanto pode inventar a mais negra malícia, que mal te faria, se o deixasses passar, não fazendo mais caso daquilo que duma palha? Porventura poderia arrancar-te um só cabelo?

 

3. Mas quem não domina o coração, nem tem a Deus, diante dos olhos, facilmente fica aborrecido com uma palavra de repreensão. Aquele, porém, que confia em mim, e não se aferra à sua própria opinião, viverá sem temor dos homens. Eu sou o juiz e conheço todos os segredos, sei como se passou tudo, quem fez a injúria e quem a sofre. De mim saiu esta palavra, por minha permissão te sucedeu isso, "para que fossem revelados os pensamentos de muitos corações" (Lc 2,35). Julgarei o culpado e o inocente: primeiro, porém, quis provar ambos por oculto juízo.

 

4. Engana, muitas vezes, o testemunho dos homens; meu juízo é verdadeiro e não será revogado. As mais das vezes é oculto e poucos lhe conhecem todas as particularidades, mas nunca erra, nem pode errar, posto que pareça menos reto aos olhos dos néscios. A mim, pois, deves recorrer em todo juízo e não te ater ao teu próprio parecer. Pois o justo não se perturbará, seja o que for que lhe suceda, por permissão de Deus. Não se afligirá com as palavras que contra ele disserem injustamente. Mas também não se encherá de vã alegria, quando outros o justificarem com razões. Ele pondera que "eu sou o perscrutador dos corações e dos rins" (Sl 7,10), e não julgo segundo o exterior e as aparências humanas. Porque muitas vezes é culpável a meus olhos o que é tido por louvável na opinião dos homens.

 

5. A alma: Senhor, "Deus, juiz justo, forte e paciente" (Sl 7,12), que conheceis a fraqueza e malícia dos homens, sede minha fortaleza e toda a minha confiança, porque não me basta a consciência da própria força. Vós sabeis o que eu não sei, por isso devia ter recebido qualquer repreensão com humildade e mansidão. Perdoai-me, portanto, por todas as vezes que assim o não o fiz, e dai-me de novo mais graça para sofrer. Portanto, mais valiosa me é vossa abundante misericórdia para alcançar o perdão dos pecados do que minha pretensa justiça em defesa do que está oculto na consciência. E mesmo que ela de nada me acuse, nem por isso sou justificado; porque sem a vossa misericórdia "nenhum vivente haverá justo a vossos olhos" (Sl 142,2).

 

 

Que todas as coisas graves se devem suportar para ganhar a vida eterna.

 

1. Jesus: Filho não te deixes quebrantar pelos trabalhos empreendidos por meu amor, nem desanimes nas tribulações; mas em tudo que te suceder, te consolem e fortifiquem minhas promessas. Sou assaz poderoso para te recompensar além de todo limite e medida. Não lidarás aqui muito tempo, nem sempre estarás acabrunhado de dores. Espera um pouco e verás em breve o fim de teus males. Hora virá em que cessará todo trabalho e inquietação. É de pouco valor e duração o que passa com o tempo.

 

2. Faze o que podes fazer, trabalha fielmente em minha vinha, e "eu serei tua recompensa" (Gn 15,1). Escreve, lê, canta, geme, cala, ora e sofre varonilmente toda adversidade; a vida eterna é digna dessas e outras maiores pelejas. Virá a paz um dia que o Senhor sabe, e não haverá mais nem dia nem noite, como no presente, mas luz perpétua, claridade infinita, paz firme e seguro repouso. Não dirás então: Quem me livrará deste corpo de morte? (Rm 7,24), nem exclamarás: Ai de mim, que se tem prolongado o meu desterro! (Sl 119,5). Porque a morte será destruída e a salvação será eterna; livre de toda ansiedade gozarás deliciosa alegria, em meio de agradável e brilhante companhia.

 

3. Oh! se visses as coroas imarcescíveis dos santos no céu, e a glória em que já exultam aqueles que outrora, aos olhos do mundo, eram desprezados e reputados quase indignos da vida; com certeza, logo te humilharias até ao pó e desejarias antes obedecer a todos que a um só a mandar. Nem cobiçarias os dias felizes desta vida, mas antes te alegrarias de ser atribulado por amor de Deus, e considerarias grande vantagem o ser tido por nada entre os homens.

 

4. Oh! Se achasses gosto nessas coisas e elas penetrassem profundamente no coração, como poderias ousar proferir uma só queixa? Porventura haverá pena que não se deva sofrer pela vida eterna? Certo que não é pouco perder ou ganhar o reino de Deus. Ergue, pois, os olhos ao céu. Eis-me aqui com todos os meus santos; eles, que neste mundo sustentaram grandes combates, ora se rejubilam, ora estão consolados e estão seguros, ora gozam o repouso e permanecerão para sempre comigo no reino de meu Pai.

 

 

Do dia da eternidade e das angústias desta vida

 

1. Ó mansão beatíssima da celestial cidade! Ó dia claríssimo da eternidade, que a noite não obscurece, mas a Verdade soberana sempre ilumina; dia sempre festivo, sempre seguro, que nunca muda no contrário! Oh! se já amanhecera aquele dia e acabaram todas as coisas temporais! Para os santos, sim, brilha este dia com o fulgor de sua perpétua claridade; para nós, peregrinos da terra, só de longe se mostra e como por espelho.

 

2. Sabem os cidadãos do céu quão ditoso é aquele dia; sentem os desterrados filhos de Eva quão triste e amargo é este da vida presente. Os dias deste tempo são curtos e maus, cheios de dores e angústias. Neles se vê o homem manchado de muitos pecados, enredado de muitas paixões, angustiado de muitos temores, inquietado com muitos cuidados, distraído com muitas curiosidades, emaranhado em muitas vaidades, cercado de muitos erros, oprimido de muitos trabalhos, acossado por tentações, enervado pelas delícias, atormentado pela penúria.

 

3. Oh! Quando virá o fim de todos estes males? Quando me verei livre da triste escravidão dos vícios? Quando me lembrarei somente de vós, Senhor? Quando em vós plenamente me alegrarei? Quando viverei em perfeita liberdade, sem nenhum impedimento, sem aflição da alma e do corpo? Quando gozarei a paz sólida, imperturbável e segura, paz interna e externa, paz de toda parte estável? Ó bom Jesus, quando estarei diante de vós para nos ver? Quando contemplarei a glória do vosso reino? Quando me sereis tudo em todas as coisas? Oh! Quando estarei convosco no reino que preparastes desde toda a eternidade para os que vos amam? Pobre e desterrado estou, em terra de inimigos, onde há guerras contínuas e misérias extremas!

 

4. Consolai-me no meu desterro, mitigai-me a dor, para vós se dirige todo o meu desejo. Tudo quanto o mundo oferece de consolo é para mim tormento. Desejo gozar-vos intimamente, mas não o consigo. Desejo aplicar-me às coisas do céu, mas as coisas temporais e as paixões imortificadas me abatem. Com o espírito desejava elevar-me acima de todas as coisas, mas a carne me obriga a sujeitar-me a elas contra a minha vontade. Assim eu, homem desgraçado, pelejo comigo e "sou a mim mesmo pesado" (Jó 7,20), pois o espírito aspira às alturas, mas a carne às baixezas.

 

5. Oh! Quanto padeço interiormente, quando, ao meditar nas coisas celestiais, logo uma multidão de idéias carnais vêm perturbar-me a oração! Deus meu, em vossa ira, não vos aparteis de vosso servo! (Sl 26,9). Lançai os vossos raios e dissipai estes pensamentos! (Sl 143,6). Despedi vossas flechas, e se desfarão todos esses fantasmas do inimigo. Concentrai e recolhei em vós meus sentidos; fazei-me esquecer todas as coisas do mundo; concedei-me a graça de logo rebater e desprezar todas as imaginações do pecado. Socorrei-me, Verdade eterna, para que nenhuma vaidade me possa seduzir. Vinde, doçura celestial, e diante de vós fuja toda impureza.

 

Perdoai-me também e relevai-me, pela vossa misericórdia, todas as vezes que, na oração, penso em outra coisa, fora de vós. Confesso sinceramente que costumo ser muito distraído. Pois muitas vezes não estou onde tenho o corpo, mas onde me levam os pensamentos. Estou onde está o meu pensamento, e meu pensamento está, de ordinário, onde está o que amo. Ocorre-me com facilidade o que naturalmente me deleita ou por costume me agrada.

 

6. Por isso vós, Verdade eterna, dissestes claramente: Onde está teu tesouro, aí se acha também teu coração (Mt 6,21). Se amo o céu, gosto de pensar nas coisas celestiais. Se amo o mundo, alegro-me com seus deleites e entristeço-me com suas adversidades. Se amo a carne, com gosto me ocupo dos pensamentos carnais. Se amo o espírito, deleita-me o pensar nas coisas espirituais. Porque, seja qual for o objeto do meu amor, dele falo e ouço falar com gosto e trago comigo a sua imagem. Mas bem-aventurado o homem que por amor de vós, Senhor, abre mão de todas as criaturas, faz violência à natureza e crucifica a concupiscência da carne com o fervor do espírito, para, de consciência serena, oferecer-vos uma oração pura e, desprendido interior e exteriormente de tudo que é terreno, merecer entrar no coro dos anjos.

 

 

Do desejo da vida eterna e quantos bens estão prometidos aos que combatem

 

1. Jesus: Filho, quando sentires que o céu te inspira saudades da bem-aventurança e o desejo de deixar o tabernáculo do corpo para contemplar minha glória sem sombra de mudanças, alarga o teu coração e recebe esta santa inspiração com todo afeto. Dá muitas graças à Bondade soberana, que usa de tanta liberdade para contigo, com tanta clemência te visita, tanto te anima, tão poderosamente te levanta, para que teu próprio peso não te arraste para as coisas terrenas. Pois isto não te vem por teus pensamentos ou esforços, mas só pela mercê da graça celeste e do beneplácito divino para que te adiantes nas virtudes, sobretudo na humildade, e te prepares para futuras pelejas; para que te entregues a mim com todo o afeto do teu coração e me sirvas com ardente amor.

 

2. Filho, muitas vezes arde o fogo, mas não sobe a chama sem fumo. Assim também os desejos de alguns se abrasam pelas coisas celestiais, e, contudo, não estão livres da tentação e dos afetos carnais. Por isso não fazem unicamente pela glória de Deus o que, aliás, com tanto desejo lhe pedem. Tal é também muitas vezes teu desejo, que manifestastes com tanta ansiedade; pois não é puro nem perfeito o que está contaminado de algum interesse próprio.

 

3. Pede-me, não o que te é agradável e cômodo, senão o que a mim me é aceito e honroso; pois, se julgares retamente, deves preferir minha lei a todos os teus desejos e cumpri-la. Conheço teus desejos e ouvi teus freqüentes gemidos. Quiseras já agora estar na gloriosa liberdade dos filhos de Deus, já te deleita o pensamento da morada eterna, na pátria celestial repleta de gozo; - mas não é ainda chegada essa hora, outro é o tempo atual, tempo de guerra, trabalho e provação. Desejas gozar a plenitude do Sumo Bem, mas por enquanto ainda não o podes conseguir. Sou eu esse Bem supremo; espera-me, diz o Senhor, até que venha o reino de Deus.

 

4. Hás de passar ainda por muitas provações na terra e ser exercitado em muitas coisas. Consolações se te darão de vez em quando, mas plena satisfação não podes receber. Esforça-te, pois, e tem coragem, para fazer e sofrer o que repugna à natureza. Importa que te revistas do homem novo e te transformes em outro homem. Cumpre-te fazer muitas vezes o que não queres e deixar o que queres. O que agrada aos outros terá bom sucesso; o que te agrada não se fará. O que os outros dizem está atendido; o que tu dizes será desprezado. Pedirão os outros e receberão; tu pedirás, e não alcançarás.

 

Serão grandes os outros na boca dos homens; mas de ti nem se dirá palavra. Os outros serão encarregados de diversas comissões, e tu não serás julgado capaz de coisa alguma. Com isto se contristará, às vezes, a natureza; mas muito ganharás, se o sofreres calado. Nessas e noutras coisas semelhantes costuma ser aprovado o servo fiel do Senhor, para ver como sabe negar-se e mortificar em tudo. Dificilmente haverá coisa em que mais te seja preciso morrer a ti mesmo, do que em ver e sofrer o que é contrário à tua vontade, mormente quando te mandam fazer coisas que te parecem inúteis ou desarrazoadas. E porque não ousas resistir à autoridade do superior, sob cujo governo estás, duro te parece andar à vontade de outrem e deixar de todo o teu próprio parecer.

 

5. Mas considera, filho, o fruto destes trabalhos, o fim breve e o prêmio excessivamente grande, e não te serão molestos, mas acharás neles consolo para teus sofrimentos. Pois, por um pequeno desejo que agora sacrificas, tua vontade será sempre satisfeita no céu onde acharás tudo que quiseres, tudo o que podes desejar. Ali possuirás todo o bem, sem medo de o perder. Ali tua vontade, sempre unida com a minha, nada desejará fora de mim, nada que te seja próprio. Ali ninguém te fará oposição ou de ti se queixará, ninguém te causará estorvo ou contrariedades; antes, tudo quanto desejares já estará presente, para preencher e satisfazer plenamente todos os teus desejos. Ali te darei a glória pela injúria padecida, uma túnica de honra pela tristeza, e, pela escolha do ínfimo lugar, um trono em meu reino para sempre. Ali brilhará o fruto da obediência, alegrar-se-á a austera penitência e será gloriosamente coroada a sujeição humilde.

 

6. Sujeita-te, pois, agora, humildemente à vontade de todos, sem te importar quem foi que tal disse ou mandou. Mas cuida muito em acolher de bom grado qualquer pedido ou aceno, seja de teu superior, ou embora de teu igual ou inferior, e trata de o cumprir com sincera vontade. Busque um isto, outro aquilo; glorie-se este numa coisa, aquele em outra, e receba mil louvores; tu, porém, não te deleites numa nem noutra coisa, mas só no desprezo de ti mesmo e na minha vontade e glória. Este deve ser o teu desejo: que tanto na vida como na morte Deus seja sempre por ti glorificado.

 

 

Como o homem angustiado se deve entregar nas mãos de Deus

 

1. Senhor Deus, Pai santo! Bendito sejais agora e sempre; porque como quisestes assim se fez, e bom é quanto fazeis. Alegre-se em vós o vosso servo, não em si, nem em algum outro, porque só vós sois a verdadeira alegria, vós a minha esperança e coroa; só vós, Senhor, minha delícia e glória. Que tem vosso servo, senão o que de vós recebeu, ainda sem o merecer? Vosso é tudo o que destes e fizestes. Pobre sou e vivo em trabalho desde a juventude (Sl 87,16), e minha alma se entristece algumas vezes até às lágrimas, e outras se perturba pelos sofrimentos que a ameaçam.

 

Desejo a alegria da paz, suplico a paz de vossos filhos, a que apascentais na luz da consolação. Se vós me derdes a paz, se vós me infundirdes santa alegria, será a alma de vosso servo cheia de júbilo, entoando devotamente vossos louvores. Mas se vos afastardes, como muitas vezes fazeis, não poderá ele trilhar o caminho dos vossos mandamentos, mas antes se prostará de joelhos, para bater no peito, porque não lhe vai como nos dias passados, "quando resplandecia vossa luz sobre sua cabeça" (Gn 31,2), e encontrava refúgio contra as tentações violentas debaixo da sombra de vossas asas.

 

2. Pai justo e sempre digno de louvor! Chegada é a hora em que será provado o vosso servo. Pai amoroso! Justo é que nesta hora sofra alguma coisa o vosso servo por vosso amor. Pai sempre adorável, chegou a hora que de toda a eternidade prevíeis havia de vir, que por pouco tempo sucumba vosso servo exteriormente, mas vivendo interiormente sempre unido a vós. Por pouco tempo seja desprezado e humilhado, abatido diante dos homens e oprimido de sofrimentos e enfermidades, para que ressuscite convosco na aurora de uma nova luz e seja glorificado no céu. Pai santo! foi esta vossa ordem e vontade, fez-se o que ordenastes.

 

3. Pois é uma graça que concedeis ao vosso amigo: o sofrer e penar neste mundo por vosso amor, quantas vezes e de quem o permitireis. Sem o vosso desígnio, sem a vossa providência, ou sem causa, nada acontece na terra. É bom para mim, Senhor, que me tenhais humilhado para que aprenda vossos justos juízos (Sl 118,71), e deponha toda a soberba e toda presunção. Proveitoso é para mim "ter o rosto coberto de confusão" (Sl 68,8), para que busque a consolação em vós e não nos homens. Também aprendi por este meio a temer vossos insondáveis juízos; pois afligis o justo com o ímpio, mas sempre com eqüidade e justiça.

 

4. Graças vos dou, Senhor, que não poupastes minhas maldades, antes me castigais com duros açoites, enviando-me dores e afligindo-me exterior e interiormente de angústias. De tudo quanto existe debaixo do sol, nada há capaz de me consolar, senão vós, Senhor meu Deus, médico celestial das almas, que feris e sanais, pondes em grandes tormentos e deles livrais (1Rs 2,6; Tb 13,2). Vosso castigo está sobre mim, e vossa disciplina me ensinará (Sl 17,36).

 

5. Pai querido, em vossas mãos estou e me inclino debaixo da vara de vossa correção. Feri-me as costas e o pescoço, para que sujeite minha vontade teimosa à vossa. Fazei-me discípulo devoto e humilde, como sabeis fazer, para que obedeça ao vosso menor aceno. Entrego-me, com tudo que é meu, à vossa correção; pois é melhor ser castigado neste mundo que no outro.

 

Vós sabeis tudo e todas as coisas e nada se vos esconde da consciência humana. Vós sabeis o futuro antes que se realize, e não precisais de quem vos ensine ou advirta das coisas que se fazem na terra. Vós sabeis o que serve para meu progresso e quanto vale a tribulação, para limpar a ferrugem dos vícios.

 

Disponde de mim segundo o vosso beneplácito e não olheis para a minha vida pecaminosa, de ninguém melhor e mais claramente conhecida do que de vós. Concedei-me, Senhor, que eu saiba o que devo saber, ame o que devo amar; fazei-me louvar o que mais vos agrada, estimar o que vós apreciais, desprezar o que a vossos olhos é abjeto. Não me deixeis julgar pelas aparências exteriores, nem criticar pelo que ouço de homens inexperientes, mas dai-me o discernimento certo das coisas visíveis e das espirituais, e sobretudo, o desejo de conhecer sempre vossa vontade.

 

Enganam-se, freqüentemente, os homens em seus juízos, e não menos se enganam os mundanos, porque só amam as coisas visíveis. Porventura ficará melhor o homem porque outro o louva? O mentiroso engana ao mentiroso, o vaidoso ao vaidoso, o cego ao cego, o doente ao doente, em lhe fazendo elogios; e na verdade, antes o confunde em lhe tecendo vãos louvores. Porque, quanto cada um é aos olhos de Deus, tanto é e nada mais, diz o humilde S. Francisco.

 

 

Que devemos praticar as obras humildes quando somos incapazes para as mais altas

 

1. Jesus: Filho, não podes conservar-te sempre no desejo fervoroso de todas as virtudes, nem perseverar no mais alto grau de contemplação; mas às vezes te é necessário, por causa de tua natureza viciada, descer a coisas humildes e carregar, em que te pese, o fardo desta vida corruptível. Enquanto viveres neste corpo mortal, sentirás tédio e angústias do coração. Convém, pois, que na carne gemas muitas vezes debaixo do seu peso, porque não podes ocupar-te dos exercícios espirituais e da contemplação das coisas divinas, sem interrupção.

 

2. Então te convém recorrer a humildes ocupações exteriores e recrear-te nas boas obras; esperar, com firme confiança, minha vinda e visita celestial; levar com paciência o teu desterro e secura de espírito, até que de novo venha a visitar-te e te livre de todas as penas. Porque eu te farei esquecer os trabalhos e gozar do sossego interior. Abrir-te-ei o jardim delicioso das Sagradas Escrituras, para que, com o coração dilatado, comeces a correr pelo caminho dos meus mandamentos. E então dirás: Não têm proporção as penas desta vida com a futura glória que se nos há de revelar (Rm 8,18).

 

 

Que o homem se não repute digno de consolação, mas merecedor de castigo

 

1. A alma: Senhor, eu não sou digno da vossa consolação, nem de visita alguma espiritual, e por isso me tratais com justiça, quando me deixais pobre e desconsolado. Porque, mesmo que pudesse derramar um mar de lágrimas, ainda assim não seria digno de vossa consolação. Outra coisa não mereço, pois, senão ser flagelado e punido por tantas ofensas e tão graves delitos que cometi.

 

Assim, portanto bem considerado tudo, não sou digno nem da menor consolação. Vós, porém, Deus clemente e misericordioso, que não quereis que pereçam vossas obras, para manifestar as riquezas de vossa bondade nos vasos de misericórdia, vos dignais de consolar vosso servo, sem merecimento algum, de todo sobre-humano. Porque vossas consolações não são como as consolações humanas.

 

2. Que fiz eu, Senhor, para que me désseis alguma consolação celestial? Não me lembra ter feito bem algum, mas antes fui sempre inclinado a pecados, e tardio na emenda. É esta a verdade, não há negá-lo. Se dissesse outra coisa, vós estaríeis contra mim e não haveria quem me defendesse. Que outra coisa mereci pelos meus pecados, senão o inferno e o fogo eterno? Confesso com sinceridade que sou digno de todo escárnio e desprezo, e que não mereço ser contado no número de vossos servos. E ainda que ouça isso muito a contragosto, por amor à verdade, acusarei contra mim os meus pecados, para alcançar mais facilmente a vossa misericórdia.

 

Que direi eu, coberto de culpa e confusão? Não posso abrir a boca senão para dizer esta palavra: Pequei, Senhor, pequei; tende piedade de mim, perdoai-me! Deixai-me um pouco de tempo para desafogar a minha dor, antes de descer para a terra tenebrosa, coberta das sombras da morte ( Jó 10,20-21). Que mais exigis do culpado e mísero pecador senão que se humilhe e tenha contrição dos seus pecados? Pela contrição sincera e humilde do coração nasce a esperança do perdão, reconcilia-se a consciência perturbada, recupera-se a graça perdida, preserva-se o homem da ira futura, em ósculo santo une-se Deus à alma arrependida.

 

A humilde contrição dos pecados é para vós, Senhor, sacrifício muito aceito, que rescende mais suave em vossa presença do que o perfume do incenso. É este também o precioso bálsamo que quisestes ver derramado em vosso pés sagrados, pois nunca desprezastes o coração contrito e humilhado (Sl 50, 19). Lá se encontra o refúgio contra o furor do inimigo, ali se emendam e lavam as manchas algures contraídas.

 

Que a graça de Deus não se comunica aos que gostam das coisas terrenas

 

1. Jesus: Filho, preciosa é a minha graça; não sofre mistura de coisas estranhas, nem de consolações terrenas. Cumpre, pois, remover todos os impedimentos da graça, se desejas que te seja infundida. Busca lugar retirado, gosta de viver só contigo, e não procures conversa com os outros, mas a Deus dirige tua oração fervorosa, para que te conserve na compunção de espírito e pureza da consciência. Avalia em nada o mundo todo; antepõe o serviço de Deus a todas as coisas exteriores. Pois não podes há um tempo tratar comigo e deleitar-te nas coisas transitórias. Cumpre apartares-te dos conhecidos e amigos, e desprenderes teu coração de toda consolação temporal. Assim exorta também instantemente o apóstolo São Pedro que os fiéis cristãos vivam neste mundo como estrangeiros e peregrinos (1Pd 2,11).

 

Oh! Quanta confiança terá aquele moribundo que não tem afeição a coisa alguma do mundo. Mas desprender assim o coração de tudo, não o compreende o espírito ainda enfermo, bem como o homem carnal não conhece a liberdade do homem interior. Entretanto, se quiser ser verdadeiramente espiritual, cumpre-lhe renunciar aos estranhos como aos parentes e de ninguém mais se guardar do que de si mesmo. Se te venceres perfeitamente a ti mesmo, tudo o mais sujeitarás com facilidade. Pois a perfeita vitória é triunfar de si mesmo. Porque aquele que se domina a tal ponto, que os sentidos obedeçam à razão e a razão lhe obedeça em todas as coisas, este é realmente vencedor de si mesmo e senhor do mundo.

 

2. Se aspiras a galgar estas alturas, cumpre-te começar varonilmente e pôr o machado à raiz, para que arranque e cortes o secreto e desordenado apego que tens a ti mesmo, e a todo bem particular e sensível. Deste vício do amor excessivo e desordenado que o homem tem a si mesmo provém quase tudo que radicalmente se há de vencer; vencido este e subjugado, logo haverá grande paz e tranqüilidade estável. Mas já que poucos tratam de morrer a si mesmos e desapegar-se de si, por isso ficam presos em si mesmos e não se podem erguer em espírito acima de si. A quem, todavia, deseja livremente seguir-me, cumpre-lhe mortificar todos os seus maus e desordenados afetos, e não se prender, com amor apaixonado, a criatura alguma.

 

 

Dos diversos movimentos da natureza e da graça

 

1. Jesus: Filho, observa com diligência os movimentos da natureza e da graça: pois são muito opostos uns aos outros e tão sutis que só a custo podem ser discernidos, mesmo por um homem espiritual e interiormente iluminado. Todos, sim, desejam o bem e intentam algum bem nas suas palavras e obras; por isso se enganam muitos com a aparência do bem. A natureza é astuta; a muitos atrai, enreda e engana, e não tem outra coisa em mira senão a si mesma. Mas a graça anda com simplicidade, evita a menor aparência do mal, não usa de enganos, e tudo faz puramente por Deus, no qual descansa como em seu último fim.

 

A natureza tem horror à mortificação, não quer ser oprimida, nem vencida, nem sujeita, nem submeter-se voluntariamente a outrem. A graça, porém, aplica-se à mortificação própria, resiste à sensualidade, quer estar sujeita, deseja ser vencida e não quer usar da própria liberdade: gosta de estar sob a disciplina, não cobiça dominar sobre outrem, mas quer viver, ficar e permanecer sempre debaixo da mão de Deus, sempre pronta, por amor de Deus, a se curvar humildemente a toda criatura humana.

 

A natureza trabalha por seu próprio interesse e só atenta no lucro que de outrem lhe pode advir. A graça, porém, pondera não o que lhe seja útil ou cômodo, mas o que a muitos seja proveitoso. A natureza gosta de receber honras e homenagens; a graça, porém, refere fielmente a Deus toda honra e glória.

 

2. A natureza teme a confusão e desprezo; mas a graça alegra-se de sofrer injúrias pelo nome de Jesus. A natureza aprecia a ociosidade e o bem estar do corpo; a graça, porém, não pode estar ociosa e abraça com prazer o trabalho. A natureza gosta de possuir coisas esquisitas e lindas e aborrece as vis e grosseiras; mas a graça se compraz nas simples e modestas, não despreza as ásperas, nem recusa vertir-se de hábito velho. A natureza cuida dos bens temporais, alegra-se por um lucro pequeno, entristece-se por um prejuízo e irrita-se com uma palavrinha injuriosa. A graça, porém, cuida das coisas eternas, não se apega às temporais, não se perturba com a sua perda, nem se ofende com palavras ásperas; porquanto pôs o seu tesouro e sua glória no céu onde nada perece.

 

3. A natureza é cobiçosa, antes quer receber do que dar; gosta de ter coisas próprias e particulares. Mas a graça é generosa e liberal, foge de singularidades, contenta-se com pouco e considera "maior felicidade o dar que o receber" (At 20,35). A natureza inclina-se para as criaturas, para a própria carne, para as vaidades e passatempos. Mas a graça nos conduz a Deus e às virtudes, renuncia às criaturas, foge do mundo, detesta os apetites carnais, restringe as vagueações e peja-se de aparecer em público. A natureza gosta de ter qualquer consolação exterior com que deleite os sentidos. A graça, porém, só em Deus procura seu consolo e se delicia no sumo bem, mais que em todas as coisas visíveis.

 

4. A natureza tudo faz para seu próprio interesse e proveito, nada sabe fazer de graça, mas espera sempre, pelo bem que faz, receber outro tanto ou melhor em elogios ou favores e deseja que se faça grande caso de seus efeitos e dons. A graça, porém, não busca nenhuma coisa temporal, nem deseja outro prêmio, senão Deus só, e do temporal não deseja mais do que quanto lhe possa servir para conseguir a vida eterna.

 

5. A natureza preza-se de muitos amigos e parentes, ufana-se de sua posição elevada e linhagem ilustre, procura agradar aos poderosos, lisonjeia os ricos, aplaude os seus iguais. A graça, porém, ama os próprios inimigos, não se gaba do grande número de seus amigos, não faz caso de posição e nobreza, se lhes não vê unida maior virtude. Favorece mais ao pobre que ao rico, tem mais compaixão do inocente do que do poderoso, alegra-se com o sincero, e não com o mentiroso. Estimula sempre os bons e maiores progressos, para que se assemelhem, pelas virtudes, ao Filho de Deus. A natureza logo se queixa da penúria e do trabalho. A graça sofre com paciência a pobreza.

 

6. A natureza atribui tudo a si, em proveito seu peleja a porfia. A graça, porém, atribui tudo a Deus, de quem tudo dimana como de sua origem; nenhum bem atribui a si com arrogante presunção, não questiona, nem prefere a sua opinião à dos outros, mas em todo juízo e parecer se sujeita à sabedoria eterna e ao divino exame. A natureza deseja saber segredos e ouvir novidades, quer exibir-se em público e experimentar muitas coisas pelos sentidos; deseja ser conhecida e fazer aquilo donde lhe resultem louvor e admiração.

 

A graça não cuida de novidades e curiosidades, porque tudo isso nasce da corrupção antiga, pois nada há de novo e estável sobre a terra. Ensina, pois, a refrear os sentidos, a evitar a vã complacência e ostentação, a ocultar humildemente o que provoque admiração e louvor, busca em todas as coisas e ciências proveito espiritual e a honra e glória de Deus. Não quer que a louvem, nem às suas obras, mas que Deus seja bendito em seus dons, que ele prodigaliza a todos por mera bondade.

 

7. A graça é uma luz sobrenatural e um dom especial de Deus; é propriamente o sinal dos escolhidos e o penhor da salvação eterna, pois eleva o homem das coisas terrenas ao amor das celestiais, e de carnal o torna espiritual. Quanto mais, pois, é oprimida e dominada a natureza, tanto maior graça é infundida, e tanto mais cada dia é renovado o homem interior, conforme a imagem de Deus.

 

 

Da corrupção da natureza e da eficácia da graça divina

 

1. A alma: Senhor, meu Deus, que me criastes à vossa imagem e semelhança, concedei-me a graça que declarastes ser tão importante e necessária para a salvação: que eu vença minha péssima natureza, que me arrasta ao pecado e à perdição. Porque sinto em minha carne a lei do pecado, que é contrária à lei do espírito e me cativa, querendo me levar a obedecer, em muitas coisas, à sensualidade; nem poderei resistir às paixões, se não me assistir vossa santíssima graça, e me inflamar o coração.

 

2. É necessária vossa graça, e grande graça, para vencer a natureza, propensa sempre ao mal desde a infância. Porque, viciada pelo primeiro homem, Adão, e corrompida pelo pecado, transmite a todos os homens a pena desta mancha, de sorte que a mesma natureza, por vós criada boa e reta, agora deve ser considerada como enferma e enfraquecida pela corrupção, visto que seus movimentos, abandonados a si mesmos, a arrastam ao mal e às coisas baixas, Porque a módica força que lhe ficou é como uma centelha oculta debaixo da cinza. Esta centelha é a razão natural, que, embora envolta em densas trevas, discerne ainda o bem do mal, a verdade do erro, mas não é capaz de fazer tudo que aprova, já que não possui a plena luz da verdade, nem a primitiva pureza de seus afetos.

 

3. Daí vem, ó meu Deus, que "segundo o homem interior me deleito em vossa lei" (Rm 7, 22), sabendo que vosso mandato é bom, justo e santo, que reprova todo mal e ensina que se deve fugir ao pecado. Segundo a carne, porém, estou escravizado à lei do pecado, pois obedeço mais à sensualidade que à razão. Daí vem que "tenho vontade de fazer o bem, mas não sei realizá-lo" (Rm 7, 18). Por isso faço muitos bons propósitos, mas faltando-me vossa graça que auxilie minha fraqueza, com o menor obstáculo desfaleço e desisto. Assim sucede que bem conheço o caminho da perfeição e vejo claramente o que devo fazer. Entretanto, oprimido com o peso da corrupção, não me elevo ao que é mais perfeito.

 

Oh! Como me é necessária, Senhor, vossa graça, para começar, continuar e completar o bem. Porque sem ela nada posso fazer, mas tudo posso em vós, se me confortar vossa graça, Ó graça verdadeiramente celestial, sem a qual nada valem os próprios merecimentos, nem apreço merecem os dons naturais! Nada valem diante de vós, Senhor, as artes e a riqueza, a formosura e a fortaleza, o engenho e a eloqüência - sem a graça. Porque os dons da natureza são comuns aos bons e aos maus; mas a graça ou caridade é peculiar dos escolhidos, porque os torna dignos da vida eterna. Tão excelente é esta graça, que nem o dom da profecia, nem o poder de fazer milagres, nem a mais alta contemplação tem valor algum sem ela. Nem mesmo a fé, nem a esperança, nem as outras virtudes vos agradam, sem a graça e sem a caridade.

 

Ó graça beatíssima, que fazes rico de virtudes o pobre de espírito e tornas humilde de coração o rico dos bens de fortunas: vem, desce sobre mim e enche minha alma de tua consolação, para que não desfaleça, de cansaço e aridez, meu espírito. Suplico-vos, Senhor, que eu ache graça em vossos olhos, porque me basta a vossa graça, embora me falte tudo que deseja a natureza. Ainda que seja tentado e vexado com muitas tribulações, nada temerei, enquanto estiver comigo a vossa graça. Ela é a minha fortaleza, me dá conselho e amparo. Ela é mais poderosa que todos os inimigos e mais sábia que todos os sábios.

 

Ela é a mestra da verdade e da disciplina, a luz do coração e o alívio nas tribulações; ela afugenta a tristeza, dissipa o temor, nutre a devoção, gera santas lágrimas. Que sou eu sem a graça, senão um lenho seco e um tronco inútil, que se atira ao fogo? Previna-me, pois, Senhor, a vossa graça e me acompanhe sempre e me conserve continuamente na prática das boas obras, por Jesus Cristo, vosso Filho. Amém.

 

 

Que devemos renunciar a nós mesmos e seguir a Cristo pela cruz

 

1. Jesus: Quanto mais saíres de ti mesmo, tanto mais poderás chegar-te a mim. Assim como o não desejar coisa alguma exterior produz paz interior, assim o desprendimento interior de si mesmo causa a união com Deus. Quero que aprendas a perfeita abnegação de ti mesmo, submetendo-te, sem resistência e sem queixa, à minha vontade. Segue-me, eu sou o caminho, a verdade e a vida (Jo 14,6). Sem caminho não se anda, sem verdade não se conhece, sem vida não se vive. Eu sou o caminho que deves seguir, a verdade que deves crer, a vida que deves esperar. Eu sou o caminho seguro, a verdade infalível, a vida interminável. Eu sou o caminho direito, a verdade suprema, a vida verdadeira, a vida ditosa, a vida incriada. Se perseverares no meu caminho, conhecerás a verdade, e a verdade te livrará (Jo 8,32), e alcançarás a vida eterna.

 

2. Se queres entrar na vida, guarda os mandamentos (Mt 19,17). Se queres conhecer a verdade, crê em mim. Se queres ser perfeito, vende tudo (Mt 19,21). Se queres ser meu discípulo, renuncia a ti mesmo. Se queres possuir a vida bem aventurada, despreza a presente. Se queres ser exaltado no céu, humilha-te na terra. Se queres reinar comigo, carrega comigo a cruz, porque só os servos da cruz acham o caminho da bem-aventurança e da luz verdadeira.

 

3. A alma: Senhor, Jesus Cristo! Porque vossa vida foi tão oprimida e desprezada no mundo, concedei-me o imitar-vos com o desprezo do mundo. Pois o servo não é maior que seu senhor, nem o discípulo mais do que o mestre (Mt 10,24). Trabalhe vosso servo por conformar-me à vossa vida, porque nela está a minha salvação e a verdadeira santidade. Tudo quanto fora dela leio ou ouço não me pode recrear ou deleitar plenamente.

 

4. Jesus: Filho, pois que sabes e lês todas estas coisas, bem-aventurado serás se as puseres em prática. Quem conhece os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama; também eu o amarei e me manifestarei a ele (Jo 14,21), e o farei assentar comigo no reino de meu Pai.

 

A alma: Senhor Jesus! Faça-se em mim segundo vossa palavra e promessa, e seja-me dado merecê-lo. Recebi a cruz, da vossa mão a recebi; hei de carregá-la, carregar até à morte, como vós ma impusestes. Na verdade, a vida do bom religioso é uma cruz, mas o conduz ao Paraíso. O começo está feito; não posso voltar atrás sem desistir.

 

5. Eia, irmãos! Marchemos unidos, Jesus está conosco, por Jesus abraçamos a cruz, por Jesus queremos nela perseverar. Ele, que é nosso chefe e guia, será também nosso auxílio. Eis o nosso Rei, que marcha à nossa frente, Ele por nós combaterá. Varonilmente queremos segui-lo, ninguém se espante; estejamos prontos para morrer, com denodo, no combate, e não manchemos nossa glória, desertando da cruz.

 

 

Que o homem não se desanime em demasia, quando cai em algumas faltas

 

1. Jesus: Filho, mais me agradam a paciência e humildade nos reveses que a muita consolação e fervor nas prosperidades. Por que te entristece uma coisinha que contra ti disseram? Ainda que fosse maior, não te devias ter perturbado. Deixa passar isso agora, não é novidade; não é a primeira vez, nem será a última, se muito tempo viveres. Mas valoroso és, enquanto te não sucede alguma adversidade. Sabes até dar bons conselhos e acalentar os outros com tuas palavras; mas quando bate, de improviso, à tua porta a tribulação, logo te falta conselho e fortaleza. Considera tua grande fraqueza, que tantas vezes experimentas nas pequenas coisas; todavia, é para tua salvação que isso e semelhantes coisas acontecem.

 

2. Procura esquecer isso como melhor souberes, e, se te impressionou, não te abale nem te perturbe muito tempo. Sofre ao menos com paciência o que não podes sofrer com alegria. Ainda que te custe ouvir esta ou aquela palavra e te sintas indignado, modera-te, e não deixes escapar da tua boca alguma expressão despropositada, com que os pequenos se poderiam escandalizar. Logo se acalmará a tempestade em teu coração, e a dor se converterá em doçura, com a volta da graça. Eu ainda vivo, diz o Senhor, pronto para te ajudar e consolar, mais do que nunca, se em mim confiares e me invocares com fervor.

 

3. Sê mais corajoso, e prepara-te para suportar coisas maiores. Nem tudo está perdido por te sentires a miúdo tribulado e gravemente tentado. Homem és e não Deus; carne és e não anjo. Como poderás tu perseverar sempre no mesmo estado de virtude, se tal não pôde o anjo no céu, nem o primeiro homem no paraíso? Eu sou que levanto os aflitos e os salvo, elevo à minha divindade os que conhecem as suas fraquezas.

 

4. A alma: Senhor, bendita seja a vossa palavra, mais doce na minha boca que um favo de mel (Sl 18,11; Sl 118,103). Que seria de mim em tantas tribulações e angústias, se vós me não confortásseis com vossas santas palavras? Contanto que chegue afinal ao porto de salvação, que importa o que e quanto tiver sofrido? Concedei-me bom fim, ditoso trânsito deste mundo. Lembrai-vos de mim, meu Deus, e conduzi-me pelo caminho reto ao vosso reino! Amém.

 

 

Que não devemos escrutar as coisas mais altas e os ocultos juízos de Deus

 

1. Jesus: Filho, guarda-te de disputar sobre assuntos altos e os ocultos juízos de Deus; não queiras investigar por que este é deixado em tal estado, aquele elevado a tanta graça, este tão oprimido, aquele tão exaltado. Isso excede o alcance humano, e não há raciocínio nem discussão que possam escrutar os desígnios de Deus. Quando, pois, o inimigo te sugere tais pensamentos, ou os curiosos questionarem sobre eles, responde com o profeta: Justo sois, Senhor, e justo é o vosso juízo (Sl 118,37), ou, também: Os juízos do Senhor são verdadeiros e justificados em si mesmos (Sl 19, 10). Meus juízos devem se temer, e não discutir, porque são incompreensíveis ao entendimento humano.

 

2. Não queiras também inquirir ou disputar sobre os méritos dos santos, qual seja o mais santo ou o maior no reino dos céus. Daí nascem muitas controvérsias e contendas inúteis, que nutrem a soberba e a vanglória, donde procedem invejas e discórdias, porque este prefere soberbamente um santo, aquele quer dar a preeminência a outro. Querer saber e investigar tais coisas não traz proveito algum, antes desagrada aos santos, porque "eu não sou Deus de discórdia e sim da paz" (1Cor 14,33), e esta paz consiste antes na verdadeira humildade que na própria exaltação.

 

3. Alguns, por um zelo de predileção, se afeiçoam mais a este ou àquele santo, mas este afeto é antes humano que divino. Sou eu que fiz todos os santos; eu lhes dei a graça, eu lhes outorguei a glória. Eu sei os merecimentos de cada um, eu os preveni com as bênçãos da minha doçura (Sl 20,4). Eu conheci os meus amados antes dos séculos, eu os escolhi do mundo, e não eles a mim. Eu os chamei por minha graça e os atraí por minha misericórdia: eu os fiz passar por várias provações. Eu os inundei de maravilhosas consolações, dei-lhes a perseverança e coroei a sua paciência.

 

4. Eu conheço o primeiro e o último e abraço a todos com inestimável amor. Eu devo ser louvado em todos os meus santos, bendito sobre todas as coisas e honrado em cada um deles, que eu tão gloriosamente exaltei e predestinei, sem prévio merecimento algum de sua parte. Quem desprezar, pois, um dos menores dos meus deixa também de honrar o maior, porque fui eu que fiz o pequeno e o grande. E quem menospreza a todos os mais que estão no reino dos céus. Porquanto todos são um belo veículo da caridade; todos têm o mesmo parecer, o mesmo querer, e se amam mutuamente com o mesmo amor.

 

5. Além disso, - o que é mais sublime ainda - eles me amam mais a mim que a si e seus merecimentos. Porque, arrebatados acima de si mesmos e desprendidos de todo amor-próprio, se transformaram inteiramente no meu amor, no qual descansam com sumo gozo. Nada há que os possa desviar ou deprimir, porque, repletos da eterna verdade, ardem no fogo inestinguível da caridade. Calem-se, pois, os homens carnais e sensuais, e não discutam sobre o estado dos santos, porque não sabem amar senão seus próprios gozos. Eles diminuem ou acrescentam conforme a sua inclinação, e não como agrada à eterna Verdade.

 

6. Em muitos é isso ignorância, mormente naqueles que, pouco iluminados, raramente sabem amar um santo com amor puramente espiritual. Leva-os ainda muito a natural afeição e a amizade humana, que os inclina a este ou àquela, e, como se portam nas coisas terrenas, assim se lhes afiguram também as celestiais. Há, porém, incomparável distância entre o que pensam os imperfeitos e o que alcançam os homens espirituais pela revelação superior.

 

7. Guarda-te, pois, filho, de discorrer curiosamente sobre coisas que excedem teu entendimento; cuida antes e trata de seres ainda o ínfimo no reino de Deus. E dado que alguém soubesse quem seja deles o mais santo ou o maior no reino dos céus, que lhe aproveitaria esse conhecimento, se dele não tomasse motivo de humilhar-se diante de mim e louvar mais fervorosamente o meu nome? Muito mais agrada a Deus quem cuida na grandeza dos seus pecados, na escassez das virtudes e na grande distância que o separa da perfeição dos santos, do que aquele que disputa sobre a maior ou menor glória deles. Melhor é implorar os santos com devotas orações e lágrimas, suplicar-lhes com humildade de coração sua gloriosa intercessão, que perscrutar, com vã curiosidade, seus segredos.

 

8. Os santos estão bem contentes e satisfeitos; oxalá também os homens soubessem estar contentes e refrear suas vãs palavras. Não se gloriam dos próprios merecimentos, pois nenhum bem atribuem a si mesmos, mas tudo referem a mim que lhes dei tudo por infinita caridade. Tão cheios estão do amor da divindade e de abundantíssima alegria, que nada falta à sua glória, nem pode faltar à sua bem-aventurança. Quanto mais elevados estão os santos na glória, tanto mais humildes são em si mesmos e mais perto de mim e de mim amados. Por isso lês na Escritura que depunham suas coroas diante de Deus e se prostavam diante do Cordeiro e adoravam aquele que vive nos séculos dos séculos (Ap 4,10).

 

9. Muitos perguntam qual seja o maior no reino de Deus e não sabem se serão dignos de ser contados entre os menores. Grande coisa é ser ainda o menor no céu, onde todos são grandes, porque serão chamados filhos de Deus, e, na verdade, o são. O menor valerá por mil, e o pecador de cem anos morrerá (Is 60,22; Is 65,20). Pois, quando os discípulos perguntaram quem era o maior no reino dos céus, receberam esta resposta: Se vos não converterdes e vos tornardes como crianças, não entrareis no reino dos céus (Mt 18,3-4).

 

10. Ai daqueles que recusam humilhar-se espontaneamente com os pequenos; porque é baixa a porta do reino celeste e não lhes dará entrada. Ai também dos ricos, que têm neste mundo suas consolações, porque, quando os pobres entrarem no reino de Deus, eles ficarão de fora, chorando. Regozijai-vos, humildes, e "exultai, pobres, porque vosso é o reino de Deus" (Lc 6,20) contanto que andeis no caminho da verdade.

 

 

Que só em Deus devemos firmar toda esperança e confiança

 

1. A alma: Senhor, que confiança posso eu ter nesta vida ou qual é minha maior consolação de tudo quanto existe debaixo do sol? Não o sois vós, Senhor, Deus meu, cuja misericórdia é infinita? Onde me achei bem sem vós, ou quando passei mal, estando vós presente? Antes quero ser pobre por vós, que rico sem vós. Prefiro peregrinar convosco na terra, que sem vós possuir o céu. Onde vós estais, aí está o céu; e lá existe a morte e o inferno, onde vós não estais. Vós sois o alvo de meus desejos, por isso por vós devo gemer, clamar e orar.

 

Em ninguém, finalmente, posso plenamente confiar que me dê auxílio oportuno em minhas necessidades, senão em vós só, meu Deus. Vós sois minha esperança, vós minha confiança, vós meu consolador fidelíssimo em todas as coisas. Todos buscam os seus interesses; vós, porém, só tendes em vista minha salvação e aproveitamento, e tudo converteis em bem para mim. Ainda quando me sujeitais a várias tentações e adversidades, tudo isso ordenais para meu proveito, pois de mil modos costumais provar os vossos amigos. E nessas provações não menos vos devo amar e louvar, como se me enchêsseis de celestiais consolações.

 

2. Em vós, portanto, Senhor meu Deus, é que ponho toda a minha esperança e refúgio; a vós entrego todas as minhas tribulações e angústias; porque tudo quanto vejo fora de vós acho fraco e inconstante. Nada me aproveitam os muitos amigos, nem me poderão ajudar os homens, nem os prudentes conselheiros me darão conselho útil, nem os livros dos sábios me poderão consolar, nem qualquer tesouro precioso me poderá salvar, nem algum retiro delicioso me proteger, se vós mesmo não me assistis, ajudais, confortais, consolais, instruís e defendeis.

 

3. Pois tudo que parece próprio para alcançar a paz e a felicidade nada é sem vós, nem pode trazer-nos a verdadeira felicidade. Vós sois, pois, o remate de todos os bens, a plenitude da vida, o abismo da ciência; esperar em vós acima de tudo é a maior das consolações dos vossos servos. A ti, Senhor, levanto os meus olhos, em vós confio, Deus meu, Pai de misericórdia! Abençoai e santificai minha alma com a bênção celestial para que seja vossa santa morada, o trono de vossa eterna glória, e nada se encontre nesse tempo da vossa divindade que possa ofender os olhos de vossa majestade. Olhai para mim segundo a grandeza de vossa bondade e a multidão de vossas misericórdias e ouvi a oração do vosso pobre servo desterrado tão longe, na sombria região da morte. Protegei e conservai a alma do vosso mísero servo entre os muitos perigos desta vida corruptível, e com a assistência de vossa graça guiai-o pelo caminho da paz à pátria da perpétua claridade. Amém.