PENITENCIARIA APOSTÓLICA
Entrevista do Bispo regente do
Tribunal da Penitenciaria Apostólica do Vaticano,
D. Gianfranco Girotti – Sobre “As novas formas de pecado social”.
A notícia que correu mundo nos últimos dias, sobre uma "nova lista" de pecados mortais/capitais baseia-se numa entrevista do Bispo regente do Tribunal da Penitenciaria Apostólica, D. Gianfranco Girotti, ao jornal do Vaticano L’Osservatore Romano. Não se trata, como foi noticiado, de um decreto do Vaticano, mas de uma peça do jornalista Nicola Gori, que leva como título “As novas formas do pecado social”.
O Papa Pio XII, (1939 a 1958) havia dito: O maior pecado do século é ter perdido a consciência do pecado; do que é pecado. (Pio XII, Radiomensagem ao Congresso Catequístico Nacional dos Estados Unidos em Boston (26 de Outubro de 1946): Discorsi e Radiomessaggi, VIII (1946), 288.)
Texto integral da entrevista ao Bispo Gianfranco Girotti publicada no jornal L’Osservatore Romano
L’Osservatore Romano (OR) – A Penitenciaria Apostólica parece um objeto misterioso para opinião pública, bem como para uma boa parte dos fiéis.
D. Gianfranco Girotti (GG) - O que afirma vai, de fato, ao encontro da realidade. Apesar de ser, hoje em dia, o organismo mais antigo da Cúria Romana – após a supressão da Dataria, em 1967, e da Chancelaria, em 1973 – é pouco conhecido, mesmo por grande parte do clero. O motivo talvez se possa encontrar no fato de a sua atividade fugir da visibilidade que está mais ligada às missões dos outros dicastérios. A Penitenciaria Apostólica, entre os dicastérios da Cúria Romana, é aquela que desenvolve, de maneira direta, uma atividade propriamente espiritual, mais consoante com a missão fundamental da Igreja que consistes na salus animarum.
É o órgão universal e exclusivo do Pontífice em matéria de foro interno. Recorre-se ao foro interno não só para os pecados, as censuras e irregularidades, mas de forma geral para situações ocultas, como por exemplo dispensas, sanações, convalidações de atos nulos que derivam de circunstâncias ocultas. Examina e resolve, por outro lado, os casos de consciência que lhe são propostos. Resolve dúvidas em matéria moral ou jurídica, quando se trata de circunstâncias ocultas ou de fatos individuais concretos.
OR – Qual é o valor das vossas respostas?
GG - Trata-se de um valor propriamente de autoridade – segundos os casos, de preceito ou de liberação – apenas para circunstâncias reais e singulares que são propostas e não para os outros casos, mas que pode estender-se às outras respostas como critério de prudência. Isto é, as orientações doutrinais e disciplinares incluídas nas próprias soluções podem ser aplicadas com prudência pelo sacerdote que fez o recurso, por analogia, num âmbito mais alargado, mas em nenhum caso é permitido divulgar estas respostas.
OR – Ainda tem sentido um organismo como a Penitenciaria a partir do momento em que parece criar problemas a nível ecumênico?
GG - Parece-me difícil perceber as razões e os motivos objetivos deste suposto mal-estar que a Penitenciaria Apostólica criaria no plano ecumênico. Se se quer fazer referência ao erro historiográfico a respeito do perdão, que no Renascimento não facilitou, por certo, a correta discussão ecumênica, bastaria confrontar-se com a recente e rica documentação de estudiosos acima de qualquer suspeita, que fazem emergir muito honestamente as funções deste dicastério, tido como a verdadeira “fonte de graça”, privado de qualquer interesse.
OR – A atenção ao pecado parte de uma sensibilidade às exigências da sociedade moderna ou move-se na base das referências ao tempo passado?
GG - A referência é sempre a violação da aliança com Deus e com os irmãos e os reflexos sociais do pecado. Se ontem o pecado tinha uma dimensão sobretudo individualista, hoje ele tem uma valência, uma ressonância, mais do que individual, sobretudo social, por causa do grande fenômeno da globalização. Com efeito, a atenção ao pecado apresenta-se hoje com mais urgência do que ontem, até porque os seus reflexos são cada vez mais amplos e mais destrutivos.
OR – A Penitenciaria ainda tem utilidade?
GG - Sem dúvida. Numa época caracterizada pelas imagens e pela publicidade, na qual tudo se torna público, um dicastério como a Penitenciaria Apostólica, atento ao mundo interior, na sua vertente mais delicada e menos visível, é, penso, um instrumento muito precioso no quadro articulado da vida da Igreja.
OR – Que questões chamam mais a vossa atenção?
GG - São aquelas que, pela sua gravidade, têm uma absolvição reservada para a Santa Sé: a absolvição do cúmplice em pecado contra o VI mandamento (cânone 1378); a profanação sacrílega do Santíssimo Sacramento da Eucaristia (cânone 1367); a violação direta do segredo sacramental (cânone 1388, 1); a dispensa da irregularidade ad recipiendos Ordines contraída por ter procurado um aborto (cânone 1041, 4); a dispensa da irregularidade ad exercendos Ordines (cânone 1044 1).
OR – Como interpreta o espanto que a opinião pública sente perante tantas situações de escândalo e pecado na Igreja?
GG - Não se deve desvalorizar a gravidade objetiva de uma série de fenômenos que foram recentemente denunciados e que levam consigo as implicações da fragilidade humana e institucional da Igreja. A esse respeito, contudo, não se pode deixar de constatar como a Igreja, preocupada pelo grave dano infligido, reagiu e continua a reagir com intervenções rigorosas e iniciativas para tutelar a imagem da própria Igreja e o bem do povo de Deus. Não obstante, é preciso denunciar a enfatização que lhes foi dada pelos meios de comunicação social, que num quadro de mundanização, lançam o descrédito sobre a Igreja.
OR – Muitas vezes a indulgência da Igreja e o perdão cristão não são compreendidos pelas pessoas. Porquê?
GG - Hoje parece que a penitência é acolhida como abertura de si ao outro na solução dos problemas que se impõem à atenção dentro de uma faixa social, na qual se exprime a própria existência, oferecendo o seu contributo de esclarecimento, de apoio a quem está em dificuldade. A penitência, assim, vem hoje acolhida sobretudo numa dimensão social, a partir do momento que as relações sociais se enfraqueceram e complicaram, ao mesmo tempo, por causa da globalização.
OR – Quais são, para si, os novos pecados?
GG - Há muitas áreas dentro das quais, hoje em dia, vemos atitudes pecaminosas a respeito dos direitos individuais e sociais. Acima de tudo na área da bioética, dentro da qual não podemos deixar de denunciar algumas violações dos direitos fundamentais da natureza humana, através de experiências, manipulações genéticas, cujo êxito é difícil vislumbrar e ter sob controlo.
Uma outra área, propriamente social, é a área da droga, através da qual se enfraquece a psique e se obscurecer a inteligência, deixando muitos jovens fora do circuito eclesial. Mais ainda: a área das desigualdades sociais e econômicas, nas quais os mais pobres ficam cada vez mais pobres e os ricos cada vez mais ricos, alimentando uma insustentável injustiça social; a área da ecologia, que se reveste hoje de um interesse relevante.
OR – O recurso freqüente às indulgências não incentiva a uma mentalidade mágica em relação à culpa e à pena?
GG - Para não cair numa tal visão perigosa e falseada, considero antes de tudo que seja absolutamente necessário conhecer e compreender a reta doutrina da prática das indulgências, entendida pela Igreja como expressão significativa da misericórdia de Deus, que vem ao encontro dos seus filhos para ajudá-los a satisfazer penas devidas pelos seus pecados, “mas também e sobretudo para levá-los a uma maior fervor de caridade”.
A Igreja é movida, em primeiro lugar, pelo desejo de educar, mais do que pela repetição de fórmulas e de práticas, no espírito de oração e de penitência e no exercício das virtudes teologais. A reforma do servo de Deus Paulo VI, levada a cabo com a Constituição Apostólica Indulgentiarum doctrina de 1 de Janeiro de 1967, elimina, de algum modo,aquilo que poderia induzir os fiéis para uma mentalidade mágica. Tal doutrina expõe claramente os pressupostos teológicos das indulgências, trata da solidariedade em vigor entre os homens em Adão e em Cristo, da comunhão dos santos, do tesouro da Igreja, que consiste nas expiações e nos méritos de Cristo, da Bem-Aventurada Virgem Maria e dos Santos, que estão à disposição dos fiéis.
As indulgências, de fato – é sublinhado – não podem ser adquiridas sem uma sincera conversão e sem a união com Deus, ao que se acrescenta a realização das obras prescritas.
OR – Não lhe parece que as condições para obter a indulgência sejam leves?
GG - Se, juntamente com as condições impostas habitualmente – confissão sacramental não além de 15 ou 20 dias antes ou depois, comunhão eucarística e oração segundo as intenções do Santo Padre – se pensa que para obter a indulgência é pedido um grau de máxima pureza e sinais de ardente caridade, cujo sucesso é difícil para a nossa fragilidade, então considero que quanto é estabelecido não se deva minimizar.
OR – Existem pecados que vós não podeis absolver?
GG - A Penitenciaria é a longa manus do Papa no exercício do poder das chaves. Portanto, para realizar as funções que lhe estão confiadas no foro interno, possui todas as faculdades necessárias, tendo como única exceção aquelas que o Pontífice tenha declarado explicitamente ao Cardeal Penitenciário querer reservar para si. Pode, por conseguinte, realizar, no âmbito do foro interno, todos os atos de competência dos restantes dicastérios da Cúria Romana.
OR – Sobre o aborto há a sensação difusa de que a Igreja não tenha em consideração a difícil situação das mulheres.
GG - Parece-me que uma tal preocupação não tenha em consideração a atitude que a Igreja, ao contrário, constantemente manifesta em salvaguardar e tutelar a dignidade e os direitos da mulher. São, de fato, múltiplas as iniciativas que organismos católicos e movimentos eclesiais, com empenho corajoso e inteligente, não cessam de promover, com o fim de contrariar as atuais tendências culturais e sociais contra a mulher, ajudando, de maneira eficaz, as grávidas, trabalhando para a educação dos seus filhos lançados ao mundo pela imprevidência e facilitando mesmo a adoção.
(© L'Osservatore Romano - 9 Marzo 2008)