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EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS PARA CRIANÇAS.

 

Educação espiritual infantil do Fr. Manuel Sancho.

Biografia do autor.

 

Quem é que não ouviu falar do Padre Sancho? Figura sobejamente conhecida no mundo das letras não menos do que no mundo das almas. Espírito infantil pelo seu caráter verdadeiramente de criança, esse espírito acha-se impresso em todos os seus escritos. Estilo fácil, ameno, cintilante o seu, muito pessoal, revela a sua alma grande de apóstolo da pena.

 

Nasceu em Castellote (Teruel, Espanha), a 19 de Janeiro de 1874.

 

Seus pais, ricos em virtude mais do que em bens de fortuna, deram-lhe, pródigos, a caudal de sua piedade singela e prática. Vendo despontar nele grandes dotes de vir­tude, entregaram ao Senhor tão preciosa prenda.

 

No Baixo Aragão ergue-se o afamado convento do Olivar. A ordem da Mercê, a que ele pertence, tem-no em grande estima, assim pela sua antiguidade como pelas suas muitas recordações. Agradável soledade aquela, que eleva a alma às coisas celestiais.

 

Com razão costumava ele repetir nos seus últimos anos: “Vivendo aqui, está-se perto do céu”.

 

Às portas do antigo Mosteiro veio a bater o honrado oleiro conduzindo pela mão “Sanchinho” quando este contava apenas onze anos. Ali ficou este pelo ano de 1885, sendo seu mestre o P. José Ferrada, e logo se manifestou o talento extraordinário do postulante. Com tão hábil mestre, ele fez rápidos progressos, sobretudo na ciência dos Santos. A caridade e a humildade, suas virtudes favoritas, juntamente com a obediência, formaram os sólidos fundamentos da sua santidade futura.

 

Cursou brilhantemente os seus estudos, alternando-os com a composição dos seus primeiros escritos. Nestes já se revela excelente escritor. A sua inspiração musical despertava-se igualmente, plasmando-a ele nas suas zarzuelas.

 

Uma vez sacerdote, foi destinado ao Colégio de Lérida. Dedicou-se com grande proveito à formação da juventude. Aqui começou a manifestar-se guia perito de espíritos. Nomeado por vários triênios Definidor Provincial, foi transferido para Barcelona, onde se entregou de todo à direção das almas.

 

Não deixou de lado as suas afeições literárias. A sua obra “Contos e fantasias” deu-o a conhecer como um dos estilistas mais amenos e atilados. Foi aumentando a sua galeria de obras teatrais, e estas tiveram grande aceitação nos teatros católicos. Publicou um Catecismo em exemplos, em três volumes, e revelou-se hábil Diretor da infância na sua obra “Exercícios Espirituais para crianças”. Temos a grande satisfação de poder-vos oferecer novamente esta obra, notavelmente aumentada pelo próprio autor. O P. Arintero, comentando este livro, admira-se, e diz que “acredita o P. Sancho como um apóstolo e habilíssimo diretor da infância, o qual com facilidade prodigiosa a conduz pela via purgativa, e, introduzindo-a na via iluminativa, a dispõe para a via unitiva”.

 

Impossível, em tão breve resenha, classificar a sua enorme produção literária. Grande pena é que hajam perecido entre as chamas da revolução obras suas inéditas de incalculável valor literário. Entre elas, doze manuais de missões...

 

Nós, que com ele convivemos nos seus úl­timos anos, pudemos verificar os seus progressos extraordinários nos caminhos da san­tidade. As suas palavras inflamadas iam sem­pre acompanhadas da sua vida verdadeiramente exemplar. Ir evangelizar infiéis era o seu anelo mais vivo. Essas ânsias missio­nárias ele sabia comunicá-las em todas as suas conversas. Salvar almas!

 

Nestas nobilíssimas preocupações surpreendeu-o o dia 18 de Julho de 1936. Desejos de martírio enchiam-lhe a alma. Eu mesmo, numa das suas conversas íntimas, ouvi-o dizer, ao comentar a morte do Padre Pro no México:

 

“Graça tão grande peço-a ao Senhor todos os dias na Santa Missa; essa é a morte dos meus desejos, morrer fuzilado por amor de Cristo”. Deus atendeu aos seus desejos. As milícias vermelhas já inundavam todo o Baixo Aragão como uma onda infernal de sangue e de fogo. Àquele retiro chegaram também os violentos abalos do vendaval. A última expedição já estava disposta para se pôr a salvo. Mas já era tarde. Entre eles, o P. Comendador e o P. Sancho. Custava-lhes tanto arrancar-se daquele lugar! Os milicianos surpreendem-nos, eles confessam o seu caráter sacerdotal, e... uma descarga de fuzilaria abre-lhes o caminho do triunfo, enquanto seus corpos caem a prumo. Ao mesmo tempo o grito martirial de “Viva Cristo-Rei!” sobe-lhes vibrante dos feridos peitos, enchendo os espaços.

 

Advertência. — Estes Exercícios estão feitos para uma semana, dois pela manhã e outros dois à tarde. Se o turno de Exercícios abrange menos de uma semana, escolham-se as explicações que pareçam mais importantes, e que, para a criança, serão sem dúvida as mais práticas.

 

 

 

 

EXORTAÇÃO PREPARATÓRIA

 

1. Necessidade e importância dos Exercícios.

2. Jesus nos chama. Como a criança responderá ao chamado de Jesus.

3. O que quer dizer "dias de retiro”, e como os praticará a criança.

4. Exemplo.

 

1. — Um menino tinha de ir morar numa cidade e não sabia o caminho. Já lho estavam ensinando, mas ele ouvia distraído e respondia: “Irei de qualquer modo”. O caminho era difícil e escabroso, com veredas e atalhos que levavam a despenhadeiros. Ademais, nos matagais que beiravam o caminho havia cada lobo e cada raposa! Era horrível aquele caminho. Mas, com os bons conselhos que ao pequeno davam os que lhe queriam bem, ele teria evitado dificuldades, atravessando barrancos, saindo incólume de lobos e de perigos, e teria finalmente chegado à cidade onde o esperavam seus boníssimos pais. Mas qual! o pequeno estava distraído nos seus brinquedos e não atendia a razões... Assim, às cegas, empreendeu o caminho, e os lobos o comeram.
 

Trago-vos esta parábola, meus filhos, porque isto, nem mais nem menos, é o que agora acontece com a exortação que vos dirijo. Estais fazendo uma viagem, a viagem para a eternidade. No fim está o céu... Mas ai! que também pode estar o inferno! E eis-me aqui diante de vós disposto a assinalar-vos os perigos deste caminho da vida, e como haveis de fugir deles, seguindo sempre pela senda direita, até topardes com a porta do céu que a morte vos abrirá de par em par.

 

Estes dias de Exercícios são para isto: para que conheçais esta senda e fujais dos abismos que a beiram, e dos lobos que dentro dos matagais vos espreitam de olhos acesos... Esses lobos são os pecados; o reto caminho é a virtude. Cristo caminha na frente, servindo-vos de guia, e dá-se a vós em forma de pão, para que o comais e recupereis forças para continuar caminhando até o fim... Oh! que bela ocupação a vossa nestes dias de Exercícios! Aprender o caminho do céu, resolver-vos a caminhar por ele, transformando vossa vida frívola numa vida bem santinha, comungando muito desde agora e espantando os lobos do caminho, que é espantar os pecados pela confissão! Oh! como é importante tudo isto, meus filhinhos!

 

Muitas práticas e sermões já tereis ouvido; já vos terão falado de Santo Antônio, de S. Pedro, de S. Raimundo, de S. Macário, de muitos outros santos; dos dias festivos, da blasfêmia; de coisas elevadas talvez, tão elevadas que as perdíeis de vista e vos distraíeis, ou então dormíeis ante a monótona toada, ou mesmo brincáveis uns com os outros ... Isto é mau, está claro; mas quem é capaz de deter a vossa imaginação, ou de chamar a vossa atenção para coisas que vos parecem pesadas e na realidade não o são? Isto que vos vou dizer não serão práticas altas e difíceis, próprias para gente mais atenta e de mais peso; serão exemplos e comparações do caminho do céu e de Jesus tão bom, e dos lobos dos pecados que querem tragar-vos, e de coisas muito boas e muito bonitas... e, sobretudo, importantíssimas. Olhai se não são importantes já que, se as considerardes e praticardes, vos salvareis e entrareis no céu de roldão, e, se não as praticardes, caireis sem remédio no inferno.

 

2. — Além disto, pensai em que não sou eu, porém Jesus Cristo, quem vos chama a dedicardes estes dias de Exercícios a pensar nas vossas almas, limpando-as por meio de uma boa confissão, dando-lhes alimento por meio de uma comunhão santa, e começando a trilhar o reto caminho da salvação.

 

Imaginai o Menino Jesus que vai por um caminho, subindo, subindo até o céu. Já vistes essas estampas que representam o caminho do céu? É um caminho muito íngreme, sempre para cima, penoso, sempre. Por ele sobem meninos e meninas: sois vós; anjos os acompanham: são os vossos anjos da guarda. No cume há uma cruz rodeada de um nimbo de resplendores. Por cima, o céu belíssimo. Pois bem: como esse, é o vosso caminho. Jesus Menino caminha adiante de vós, e é Jesus, pois sou seu ministro, quem me envia para que vos diga em Seu nome: “Vinde, meus filhos, vinde a mim nestes dias de Exercícios. Pensai o mais possível em mim; não vos distraiais borboleteando pelas coisas impertinentes da terra; fazei uma boa confissão e comunhão, e começai a viver santamente”. Como vedes, é Jesus quem me encarrega de vos dizer estas coisas. Ficai, pois, atentos.

 

Já sei que estais dizendo nos vossos corações: “Sim, Padre, sim, nestes dias vamos ficar quietos e pensar, como o sr. nos diz, nessas coisas espirituais. Ai! quanto custa! Mas havemos de fazê-lo, sim, havemos de fazê-lo. Vamos refletir uns momentos e muitos momentos nestas coisas boas que o sr. nos vai dizer, examinando as nossas consciências e tomando resoluções eficazes”. Louvado seja Deus! Se puserdes em prática estes pensamentos, ides fazer excelentes Exercícios.

 

3. — Que quer dizer dias de Exercícios Espirituais?

 

Havia uma vez uma menina que estava passeando por um jardim bonito, onde se criavam em gaiolas douradas mil espécies de pintados passarinhos. Todos eram dela e o jardim também, com tudo o que dentro dele se encerrava: peixes de cores e cisnes nos tanques; montanhas russas, pistas para patinar, mesas de pingue-pongue, engenhosos balanços de bonecas, chalezinhos maravilhosos cercados de arvoredo entremeados de rosais... Tudo, tudo era dela. Mas a menina passeava indiferente pelo meio daquelas riquezas, sozinha, séria, com um livro na mão, suspirando e olhando para o céu. De vez em quando puxava um lápis e apontava num caderninho: “Farei uma boa confissão, obedecerei a meus pais; estudarei, e não responderei quando me corrigirem. Amarei muito a Jesus e a Maria; comungarei todos os dias, e desde já começo a ser santa”. Como? dir-me-eis, como é possível que no meio de tão agradáveis distrações a menina pensasse em coisas tão sérias? Sim, meus filhos, pensava em coisas tão sérias porque estava fazendo Exercícios. Vejo que não estais muito convencidos com esta razão, e que, se vos encontrásseis num jardim semelhante, por mais Exercícios que fizésseis, vós os meninos vos iríeis ao jogo de pingue-pongue, e vós as meninas iríeis balançar vossas bonecas. Todavia, se fizésseis os Exercícios como eles devem ser feitos, como os fazia aquela menina, não vos distrairíeis com essas puerilidades. Mas então, como era que a menina fazia os Exercícios? Ao ver-se no meio de tanta distração, essa menina dizia consigo: “Tudo isto há de passar; tudo isto há de morrer. Eu também hei de morrer. E para onde irei? Para o céu ou para o inferno? Se for boa, irei para o céu; se for má, irei para o inferno. Mas quero ir para o céu; pois então serei santa” E puxava o livrinho e apontava: “Serei santa”. E como serei santa? Imitando a Jesus, que a tal ponto me amou que morreu por mim. E puxava o crucifixo e dava-lhe um beijo. E anotava no livrinho: “Amarei a Jesus e imitá-lO-ei nas suas virtudes”. Para isso, dizia ela, hei de começar por fazer uma boa confissão. E pensava nos seus pecados para os confessar bem e para mudar completamente aquela vida tola em outra santa. E rogava e pensava, e tornava a rogar e a pensar e a prometer...

 

Como era sábia essa menina! E como fazia bem os Exercícios! Assim fareis também vós. Embora passeis pelo meio das pessoas, embora tenhais que caminhar estes dias pelo jardim enganoso do mundo, embora vejais outros pequenos e pequenas brincarem, vós pensareis dentro de vós mesmos: “Não; não queremos brinquedos nem distrações. Nestes dias havemos de fazer uns Exercícios bem feitos, pensando em salvar nossas almas, em preparar-nos para nos confessarmos bem, e comungar com muita devoção, e empreender uma santa vida, como fazia aquela menina do jardim”. E, se quiserdes fazer como fazia a menina sábia, podeis anotar isso num caderninho.. . Mas estou receando que, em vez de anotardes coisas de santidade, pinteis algum cachorrinho chinês com coleira... Melhor será que deixeis o caderninho para a menina sábia, ou para algum menino ou menina séria que pense como ela. O principal é que me presteis atenção, que não deixeis de vir ao exercício nenhum dia, e que das exortações tireis grandes desejos de vos fazerdes santos. Como! Acaso vos parece que não podeis fazer-vos santos desde já? Ouvi um exemplo.

 

4. — Havia, num pequeno povoado da Catalunha chamado Portell, um menino, assim da vossa idade, que se chamava Raimundo. Por ter sido milagroso o seu nascimento, davam-lhe o sobrenome de Nonato, isto é, não nascido, e foi admirável a vida dele já desde pequenino. Sabeis por quê? Porque ele fazia muito bem os Exercícios Espirituais, visto meditar e ruminar profundamente as verdades que nestes dias vos vou propor. Seu pai o pôs como pastorzinho de gado, e o menino, obediente e submisso, filho de boa família como era, obedecia e se calava, e, atrás do seu rebanho, por silvedos e brenhas, meditava nos benefícios divinos e no amor de Jesus e de sua Santa Mãe. E cresceu tanto no amor deles, que mereceu que a Virgem lhe aparecesse com o Menino Jesus nos braços, e ambos trataram o pastorzinho com familiaridade requintada, como quem diz de tu a tu. Que vos parece? Vamos a ver se um de vós, pensando nestes dias em Jesus e em Maria, e fazendo propósitos de santidade, merece favor semelhante, e se sucede que, embora Jesus e Maria não vos apareçam em forma material, ao menos sintais a presença deles interiormente e converseis familiarmente com eles, tratando-os de tu a tu, como a vossos pais e irmãozinhos.

 

Depois, o santo menino Raimundo Nonato foi crescendo em santidade, e, alguns dias, enquanto ele estava entretido em doces co­lóquios com Jesus e Maria, um anjo guarda­va o rebanho para ele.

 

Não quero contar-vos mais sobre esse prodigioso menino. Só vos direi que mais tar­de ele se fez religioso da Mercê, acudindo ao convite da Virgem Maria, que o queria para Seu filho. Redimindo cativos e derra­mando caridade pelo mundo, ele morreu santamente, merecendo, ao morrer, que Jesus Cristo lhe aparecesse, administrando-lhe por suas próprias mãos o santo viático. Sabeis os milagres que S. Raimundo Nonato faz a cada momento, e o santo que ele é, tão grande que, por mais que eu vos diga sobre ele, sempre ficarei aquém. Pois bem, toda essa santidade estava fundamentada naquela vida de oração que ele levava desde criança. Por que então vós outros, nestes dias, não orais e pensais em coisas santas como fazia esse santo? Leio em vossos rostinhos que sim, que o fareis, e que não ficarão frustrados os meus desejos. Pedi-o à Virgem Maria, nossa piedosa Mãe; pedi-o tomando por intercessor esse santo menino Raimundo Nonato, e, com estas orações e ótimos desejos, não duvido que fareis uns bons Exercícios.

 

Para que o vento não carregue os vossos propósitos de fazer bem estes dias de Exercícios, recorrei à Virgem Maria, nossa piedosa Mãe. Tomemo-la por intercessora junto a Seu Filho, para que façais uns bons Exercícios. Quero que em todos os atos destes dias vos lembreis d’Ela, como a criança se lembra sempre de sua Mãe, e que nas mãos d’Ela ponhais os vossos propósitos e orações, pois, pondo-os assim ao cuidado de tão bom Mãe, sem dúvida saireis dos Exercícios fervorosos e com desejos de santidade. Dizei-lhe comigo: “Minha Mãe, nas vossas mãos pomos estes Exercícios: fazei que eles sejam frutuosos, e supri, ó Mãe, as nossas distrações e deficiências”.

 

Recorrei também, com o mesmo fim, ao bom S. José, pois ele tem muito prestígio no céu e consegue tudo quanto quer.

 

Para terminar, animados de tão louváveis intenções, rezai comigo à Virgem três Ave-Marias. 

 

 

I. FIM DO HOMEM

 

 

1. Qual é o fim ou destino da criança.  

2. Deus é a nossa recompensa.

3. Motivos para se resolver a servir a Deus:

    a) por ser Ele nosso Criador;

    b) porque nos conserva.

4. Finalidade das criaturas.

 

1. — Coisa difícil, meus filhos, é apoderar-se alguém da vossa imaginação, como é difícil alguém apoderar-se de um cachorrinho revoltoso ou de uma enguia escorregadia. É tão sério o que vos quero dizer, e vós sois tão inquietos e buliçosos! Mas, se considerardes que é importantíssimo o que vos quero dizer, mais importante do que todos os brinquedos do mundo, mais importante do que...

 

Mas, já que falo de brinquedos, suponde um brinquedo, grande, um castelo que vai ser vosso. Tem pelo menos dois metros de altura por um de largura. Soberbo castelo! É de papelão forte e tem porta que abre e fecha, e canhõezinhos que parecem canhões de verdade, e até soldados de chumbo que, por molas engenhosas, sobem e descem pelos muros do castelo. Não é verdade que é muito bonito esse brinquedo, e não me estais muito atentos ouvindo como o descrevo?

 

Vós, meninas, que não sois belicosas como estes homenzinhos principiantes, desejais outro brinquedo: desejais, por exemplo, uma casa de papelão, grande como o castelo, com capacidade para meterdes a mão dentro dela e arrumardes dentro a cama das bonecas e as cadeirinhas de celuloide, e uma cadeira de balanço para quando a boneca quiser balançar-se, e um espanadorzinho pendurado a um prego, e pequenas peças de roupa. Que brinquedo precioso!

 

Se alguém dissesse a qualquer um de vós: “Olha, menino, tu vais ganhar o castelo, tu menina, vais ganhar a casinha, se por um mês seguido trabalhares e cumprires bem as tuas obrigações e estudares com cuidado as tuas lições”; estou certo de que responderíeis a essa pessoa: “Sim, senhor; com muito gosto. Estudarei, serei um bom menino, uma boa menina, e me esmerarei em cumprir tudo bem, contanto que ganhe o brinquedo”. E não duvido que, apesar da vossa volubilidade, cumpriríeis a promessa.

 

Pois bem, vou falar-vos de uma coisa mil vezes mais bela do que o brinquedo, de uma coisa que vos interessa grandemente, a única coisa verdadeiramente interessante da vida. Se estivestes atentos à descrição que vos fiz do brinquedo, quanto mais atentos devereis estar ao que vos vou dizer!

 

Quero falar-vos sobre o fim ou destino do homem, sobre o fim da criança, fim que será, não a posse de um brinquedo, porém a posse e gozo do próprio Deus no céu, mediante o cumprimento dos seus deveres neste mundo. E, assim como a criança promete trinta dias de comportamento exemplar para alcançar a posse do brinquedo, assim haveis de prometer ser bons toda a vossa vida, para alcançardes a posse da glória.

 

Qual é o fim do homem? Qual é o fim da criança? Eu já o disse, e di-lo também o catecismo: “Para que fim o homem foi criado?” pergunta o catecismo. E responde: “O homem foi criado para amar e servir a Deus nesta vida, e depois vê-lO e gozá-lO na outra”. Eis aí o vosso fim: “amar e servir a Deus nesta vida e depois vê-lO e gozá-lO no céu”. Não é o vosso fim brincar, nem tão pouco divertir-se, nem pensar nas Batuecas enquanto eu vos explico os vossos deveres, não; o vosso fim é servir a Deus, para gozá-lO depois no céu. O vosso fim é ir pontualmente à escola, porque Deus o manda; é obedecer a vossos pais, não brigar uns com os outros, não dizendo palavras más nem fazendo travessuras de maior monta... Enfim, não pecando, porque Deus o proíbe; vós, as meninas, cumprindo as vossas obrigações caseiras, e todos praticando os mandamentos de Nosso Senhor.

 

Suponde um menino que o pai manda a um mestre carpinteiro para aprender carpintaria. Eis já está ele na oficina. Qual é o fim dele ao entrar na carpintaria? Para que é que ali vai todos os dias? Para apren­der o ofício de carpinteiro. Mas vamos a ver o que o menino faz na sua oficina. Em vez de pegar a garlopa ou a plaina e aplainar tábuas, pega de um lápis e, na tábua mais limpa e alisada, pinta bonecos. Depois, quando se cansa de desenhar mostrengos, amontoa aparas, puxa-as para a rua, faz com elas uma fogueira e convida outros meninos para saltarem por cima dela. O mestre carpinteiro repreende-o, mas o aprendiz torna a fazer das suas. E assim todos os dias. Ao cabo de um ano, o pai quer saber o que seu filho aprendeu, mas, como o menino só fez bonecos, não entende coisa alguma de carpintaria. — “Para que foi que eu te trouxe para aqui?” — pergunta-lhe o pai, irritado. — Para aprender a ser carpinteiro. — E que tens aprendido? — Não se aborreça, papai. “Aprendi a pintar bonecos”. Ao ouvir esta néscia saída, o pai dá-lhe uma tunda   soberana e obriga-o a trabalhar até aprender o ofício.

 

Do mesmo modo, Deus Nosso Senhor pôs o menino neste mundo não para brincar, nem para brigar com seus iguais, nem para fazer outras malícias: Deus pôs o menino neste mundo para que ele O sirva e Lhe obedeça, como aquele pai pôs o filho na carpintaria para que ele servisse e obedecesse ao mestre carpinteiro; mas, se o menino, em vez de cumprir a vontade de Deus servin­do-O, dedica-se a seguir os seus caprichos, e passa a vida fazendo travessuras, desobedecendo, brigando, mentindo... no fim da vida Deus virá pedir-lhe contas e lhe dirá: “Menino perverso, em que foi que ocupaste o tempo que eu te dei?” — “Senhor, em brincar, em brigar com meus companheiros, em dizer palavrões, em me esconder para não ir à missa, em desobedecer aos meus superiores e em cometer outros pecados”. Então Deus lhe dará um castigo terrível, o castigo do inferno. Que mal terrível, meus filhos! E tudo por quê? Por não haver sabido alcançar o nosso fim último, que é servir a Deus neste mundo, para depois gozá-lO no outro.

 

Quero insistir neste ponto, porque é in­teressantíssimo, e receio que o esqueçais. Pa­ra gravá-lo bem na vossa memória, ouvi uma parábola.

 

Havia um menino cujo pai tinha uma horta e, na horta, algumas colméias das quais saíam muitíssimas abelhas, que se espalhavam pela horta em busca do néctar das flores. O menino, que gostava muito de mel, estava um dia olhando uma abelha que, afanosa, trabalhava numa flor, introduzindo-lhe no cálice a sua trombina para sugar o néctar delicioso.

 

— Lindo inseto! — murmurou o menino.

— Deus te criou para fazeres mel e eu comê-lo.

— E tu, para que foi que Deus te criou? perguntou-lhe por trás dele seu pai, que se aproximara sem ser notado. O menino calou-se, pois não se lembrou disto que agora vos estou explicando. Deus te criou para Ele. Ouve-me bem, meu filho: Deus fez as abelhas para fazerem mel para ti, e fez a ti para que faças boas obras para Ele.

 

Ouvi-me bem, vós, meus filhos. Deus fez o mundo para vós e vós para Ele. Que fim nobre! Sois para Deus. Afanai-vos, pois, e trabalhai no cumprimento dos vossos deveres, que será fabricar na colméia da Igreja mel de boas obras, dignas de serem apresentadas à mesa de Deus na glória eterna.

 

2. — Além disto, Deus é a vossa recompensa. Já vistes os trabalhadores como trabalham, com que afã, com que afinco? Por que assim trabalham? Pela recompensa que esperam. Depois do trabalho, estendem com dignidade a mão calosa, e lhes são dadas algumas notas ou moedas que significam bem-estar, alimento, roupa. Se a esses trabalhadores, em vez de lhes prometerem poucas moedas ou notas por dia, lhes prometessem uma diária cada vez maior, e, ao cabo de alguns anos, lhes dessem grandes propriedades que formassem um condado, e o título de conde por conseguinte, com que ânimo não trabalhariam eles! quantos sacrifícios não se imporiam para alcançarem tamanha ventura!

 

Pois bem: ao homem, à criança, Deus promete maior salário por servirem a Ele do que o diabo o promete aos seus, e promete no fim o reino dos céus, que é a posse do próprio Deus em eterno amplexo; e promete-o se O servirmos como bons trabalhadores da virtude. E, assim como aos operários de que vos falei o amo promete, além do condado final, maior salário cada dia, assim também Deus dá graças continuadas a quem O serve, as quais são salários adiantados para a vida eterna. Haverá quem se negue a servir a Deus nesta vida, já que há de gozar na outra, além de receber de antemão, na vida presente, riquezas espirituais, que são graças e virtudes? É preciso, pois, que sirvais a Deus nesta vida porque no fim dela virá o prêmio, o céu.

 

Durante o vosso curso de estudos, ficais de olhos vermelhos estudando, e, custe o que custar, aprendeis cada dia as vossas lições. Por quê? Porque no fim do curso...

 

Olhai aquela mesa onde está a presidência da cerimônia de distribuição dos prêmios. Preside o professor ou o Padre Diretor, e, com ele, pessoas de destaque. Os alunos trazem roupas alinhadas, novinhas. Há um pouco de música e declamação de versos. Boa coisa! E que significa tanto aparato? É uma distribuição de prêmios: ganharam-nos os alunos com a sua aplicação. Vede como coroam um com uma coroa de louros, outro com a faixa de mérito, outros com medalhas de diversas classes, outros com livros de contos, etc.! São os prêmios ou recompensas que eles recebem pelo seu tra­balho durante o curso.

 

Pois bem, meus filhos, a vida é o tempo de curso, o tempo de trabalhar e de fazer méritos para a glória. Chegará a morte e, depois da morte, o exame final do curso. Estarão na presidência Deus e a SS. Virgem e S. José e os anjos e santos. E Deus dirá ao menino: — “Que fizeste?” E o menino responderá: “Meu Jesus, fui um pouco mau, porém me arrependi; aproveitei aquela exortação que aquele Padre nos dirigiu, quando nos dizia que Vós sois o nosso fim, e me confessei bem depois daqueles Exercícios; e cumpri meus deveres, sendo obediente e estudioso, e fui puro como um anjo. — “Eu, dirá a menina boa, te amei, meu Deus, e comunguei todo dia, e me corrigi dos meus defeitos”.

 

Então Jesus dirá:

 

Vinde, benditos de meu Pai, vinde, meninos, vinde, meninas, possuir o reino que vos está preparado desde a eternidade. — E o menino bom e a menina boa entrarão na posse de Deus, que é o seu fim, que é a sua recompensa.

 

Mas, se Deus é a vossa recompensa, como então desde agora não prometeis entregar-Vos de todo ao Seu serviço? Sim, meios filhos, desde agora ides ser todos de Deus, vosso fim e vossa recompensa.

 

3. — Se o vosso fim é Deus, deveis resolver-vos a servi-lO, e isto por várias razões.

 

a) Em primeiro lugar, Deus vos criou, e, como vosso Criador, tem direito a que O sirvais e Lhe obedeçais. Há vinte anos, nenhum de vós existia, e Deus disse: “Quero que exista fulaninho; quero dar vida a tal menina”. E deu-vos a vossos pais e vos trouxe ao mundo. De modo que tudo quanto sois, por Deus o sois: se viveis, por Deus viveis. Poder-me-eis dizer: “Sim, mas nossos pais nos têm criado e nos mantêm”. 

 

Perfeitamente, mas quem foi que criou e manteve vossos pais? — Os pais deles, dir-me-eis, e àqueles pais outros pais, e assim sucessivamente. Mas, afinal, havemos de chegar ao primeiro homem, chamado Adão, e à primeira mulher, chamada Eva, que não tiveram pais, mas saíram imediatamente das mãos do Onipotente. Logo, todos os pais foram criados por Deus, pois vêm de Adão e Eva, que foram criados por Deus. Ademais, Deus cria diretamente a alma de cada um de nós. Além disto, Deus podia matar-vos pequeninos ou impedir que viésseis ao mundo... Logo, também vós fostes criados diretamente por Deus, pois Ele vos deu o necessário para que vivêsseis. Considerando isto, como é possível que haja uma criança tão perversa que diga: “Não quero servir a Deus, não quero ser completamente d’Ele?” Já sei que vós não direis isto, porque, embora às vezes sejais revoltosos e travessos, não sois tão maus que digais ou façais semelhantes desatinos. Não quererdes servir ao Nosso Criador! Não pertencerdes ao bom Deus que vos tirou do nada! Não, isto não pode ser.

 

Já vistes alguma vez como a galinha tira seus pintinhos? Primeiro põe uma boa porção de ovos; depois, bem colocados sobre palha, ela se deita em cima deles e choca-os dias e dias. Assim a vereis sem se arredar dos seus queridos ovos que hão de converter-se em pintos; e tão afeiçoada está ela a aquecê-los e a vivificá-los, que, se não a tirarem de cima deles, ela não se moverá dali e talvez morra de fome, pois nem de comer se lembra. Finalmente, chega um bom dia em que já os pintinhos se formaram com o calor da mamãe-galinha, e, dentro do ovo, eles começaram a picar a casca: abrem um buraquinho, põem para fora o biquinho, empurram a casca com a cabeça, abre-se o seu cárcere, e eles saem ao mundo piando, cheios de vida... É de ver então como mãe-galinha sacode e arrasta as asas! Como os chama! Como os abriga! Como os alimenta!... Que diríeis, pois, se vísseis os pintinhos, em vez de rodearem a mamãe, e acariciá-la com o biquinho, e se lhe meterem por debaixo das asas, deitarem a correr e abandonarem-na, desatendendo aos seus cacarejos maternais?

 

Pois bem, meus filhos, assim como os pintinhos saem para a vida de debaixo das asas das galinhas, assim também vós saís para a vida das mãos de Deus. Ele dá a vida a vosso pai e aos vossos antepassados e a vós mesmos, como a galinha dá a vida a seus pintinhos; Ele vos tirou do não ser para o ser, e lançou-vos no mundo para que O sirvais e ameis. Que ingratidão seria a vossa se deitásseis a correr atrás das vossas paixões e caprichos, como os pintos maus de que vos falei, em vez de vos acolherdes sob as asas do vosso Criador, debaixo da Sua obediência e dos Seus santos mandamentos! Ai! que dor a da galinha se visse desaparecer seus filhotes! Que desespero! Que gritos chamando-os! — E que vozes, que an­gústia do nosso Deus, que sofrimentos, se Ele sofrer pudera, vendo que os homens, que as crianças se negam a segui-lO pelo caminho da cruz, se negam a obedecer-Lhe, são maus, são insubordinados! O próprio Jesus Cristo, nosso Deus humanado, quando andava no meio dos homens, dizia-lhes, e diz-nos ainda do Sacrário: “Meus filhos, crianças que ouvis o sacerdote, quantas vezes eu quis reunir-vos debaixo das minhas asas, como a galinha reúne os seus pintinhos, e não quisestes!” Muito ingratos seríeis se não vos resolvêsseis a servir a Deus Nosso Senhor.

 

Mas como foi que Deus vos criou? Porque há várias maneiras de criar. Os montes, as águas, as estrelas, as nuvens, as plantas, os animais, Deus também os criou, por assim dizer, para criaturas secundárias. Explica-se que as criasse como criaturas secundárias, porque elas não O amam, nem têm para isso alma racional. Mas o homem, a criança, Deus criou-os como criaturas privilegiadas saídas do Seu coração de pai, para amarem, para serem amadas. O corpo do homem Ele o fez de barro; a alma, Ele a fez com um sopro da Sua boca: “Inspiravit in faciem ejus spiraculum vitae”. Assim cria Ele as nossas almas com um suspiro de amor, e, é claro, pede-nos amor.

 

Desta especial criação de Deus segue-se, para nós, que, de modo muito distinto das demais criaturas, nós temos nosso Criador. Elas, as pedras, as plantas, os animais, não podem amar, porque para isso não têm nem entendimento nem vontade. São criadas por Deus, é verdade, e cumprem a vontade do seu Criador sem o saberem, seguindo as leis naturais que Deus lhes impõe. Têm o seu fim nisso, em cumprir essas leis sendo cada uma o que é, e fazendo o que fazem, para este mundo. Por isso não apetecem nada mais. Dai a um cavalo a sua ração e ele é feliz. Não vê nem quer mais do que isso; nem peca, nem pratica a virtude. Não sabe nem quer saber disso: aqui na terra morre, e tudo se acaba para ele.

 

A um homem, a uma criança, acontece coisa mui diversa. Como Deus lhe deu alma, esta, apenas se dá conta da vida, suspira pela felicidade imensa, que só em Deus está; quer o seu fim, que é só o seu Criador, e acha n’Ele a sua ventura por toda a eternidade. Se se apartar deste fim, será eternamente desditosa: é o castigo de Deus. Que criação diferente a do homem e a do animal! Como é diferente o fim dos dois! Assim, Deus paga a cada um conforme este seu fim se cumpra ou não se cumpra.

 

Vede numa fazenda que afã de vida laboriosa. Estão ali os filhos do amo, uns mancebos robustos e alegres; há mulas, vacas, galinhas, cordeiros... Todos servem ao dono da fazenda. Todos ali nasceram. Todos cumprem a vontade dele, cada qual à sua maneira. As mulas aram, as galinhas põem ovos, dão leite as vacas, carne e lã os cordeiros ... O amo dá-lhes boas rações de aveia, cevada e feno. Os animais não querem outra coisa; estão contentes; já têm cumprido o seu fim.

 

Os filhos também trabalham fazendo com amor a vontade de seu amado pai. A eles, que dará este? A eles dará suas riquezas, sua casa, suas propriedades. Ele próprio se lhes dá porque os ama; eles são parte dele. — Oh! para meus filhos, tudo, tudo — diz o pai, orgulhoso de tais filhos.

 

Mas ele tem outro filho endiabrado, ruim, perverso. A este ele mantém encarcerado, O pai está pesarosíssimo, mas diz: — Não, não, ele não sairá do calabouço enquanto não me amar, cumprindo a minha vontade: então será como os outros.

 

Vede nesta parábola como Deus é de modo especial nosso criador, e como nós somos filhos do Seu coração, pois Ele nos criou para Seu amor, para que, diferentemente das de­mais criaturas, O amemos e O gozemos eter­namente no céu. E, assim como os moços bons da fazenda serviam a seu pai e senhor com tanta vontade, e de maneira mui diferente daquela como o serviam os animais domésticos, muito melhor havemos nós de servir a Deus, nosso fim, nosso bem, nossa felicidade eterna. Ai daquele que, como filho díscolo da fazenda, se aparta do seu fim, de Deus e da Sua lei, para servir aos seus caprichos! Pior do que àquele filho mau lhe aconteceria, pois, em vez de cair na prisão da fazenda, ele cairia no inferno. Deveis, pois, servir a Deus, nosso fim último, porque Ele é nosso amante criador.

 

b) Mas Deus não só os criou, como também os conserva atualmente. Vós que me ou­vis e eu que vos falo dependemos de tal maneira de Deus, que, se Ele nos largasse da Sua mão, nós morreríamos, ou, melhor dizendo, voltaríamos ao nada de onde saímos. Algum de vós já terá segurado na mão um passarinho: sentíeis que o coraçãozinho dele palpitava agitado; na vossa mão estava a vida dele, pois só com apertardes um pouco os dedos o teríeis matado. Pois bem: Deus pode tirar-nos a vida do mesmo modo. Se o pássaro se voltasse contra aquele que o segura na mão, que deveria este fazer com ele? Matá-lo, como aos pintos que abandonaram a galinha. Deus, em cujas mãos está a nossa vida, em vez de matar-nos quando O ofendemos, espera que nos convertamos, e nos chama como a galinha chama os seus pintinhos. Como Deus é bom!
 

Mas esperai, ainda não se esgotaram as Suas bondades. Se a providência de Deus se reduzisse somente a não nos tirar a vida, isso já seria um favor muito grande; mas Ele não só não no-la tira, mas no-la conserva, contribuindo para isso todas as criaturas, de modo maravilhoso. O ar que nos dá fôlego é criatura de Deus: sem ar, nós morreríamos asfixiados. E, mesmo se Deus não nos tirasse o ar, mas nos tirasse o sol, esse grande incubador da vida, nós morreríamos de frio.

 

Tão grande e absoluta é a nossa dependência de Deus, que nem um só fôlego do nosso alento é absolutamente nosso, pois Deus no-lo pode negar, morrendo nós imediatamente. A nossa saúde, a nossa ciência, o nosso corpo e a nossa alma, tudo quanto somos e temos é de Deus. Vede se não devemos ser-lhe agradecidos; vede se não devemos entregar-lhe o nosso coração, o nosso ser, como ao nosso único fim. E, todavia, há tantos ingratos para com Deus nosso bom pai!

 

Como é bonita uma horta cheia de frutas e de hortaliças! Quantas vezes não vos tereis regalado de gosto contemplando os frutos maduros pendentes das árvores! Pois tudo isso é dom de Deus, para que vivamos. O que comeis, o que vestis, o sol, a aura vivificante, a água, as forças todas da natureza, são criaturas que Deus nos dá para conservarmos a nossa existência. Tudo, tudo é d’EIe. Mas os homens são tão irracionais, que, vivendo neste mundo que Deus sustenta com a Sua mão, não se lembram d’Ele, nem mais nem menos como se Ele não passasse de um bom Senhor que habita lá longe, num rincão da glória... Que ingratos!

 

Já não levantastes alguma vez os olhos ao céu numa noite serena? Que belo é ver essa abóbada azul marchetada de milhões de ponto luminosos! Quanta estrela! Que esteira de luz tamisada parece a Via Láctea! Tudo aquilo qual poeira luminosa são milhões de mundos!... Pois tudo isso foi Deus quem fez, como rodinhas e engrenagens desta grande máquina do Universo, e tudo isso para bem do homem. Não é verdade que, se há um homem, se há uma criança que não se lembra de elevar seu coração a Deus, merece andar de quatro patas?

 

Porquanto deveis saber que, nos países onde se criam os porcos no mato, vai com eles o porqueiro ou pastor de porcos, o qual, para saciar a gulodice desses simpáticos animaizinhos, sobe aos carvalhos e, com uma vara, sacode os ramos, e as bolotas caem em abundância. Os porcos que estão debaixo comem e grunhem, grunhem e comem; rangem os dentes ocupados, engolem, arredonda-se-lhes a pança, e nunca lhes ocorre erguer os olhos para dirigirem um olhar de gratidão a quem lhes atira as bolotas. Assim são os homens, assim são as crianças que neste mundo comem e grunhem, grunhem e comem, sem nunca se lembrarem de levantar os olhos ao céu, sem nunca se lembrarem de dizer: “Graças, meu Deus!”

 

Pois bem, meus filhos, por este outro benefício da conservação estais obrigados a seguir o vosso fim último, e este deve ser ou­tro dos motivos que inclinem o vosso coração a entregar-se a Deus por completo. Vede que Ele vos criou, vede que Ele vos conserva com amorosa Providência, vede que Ele vos chama para que O sirvais.

 

Se acaso as vossas más inclinações, exaltadas por tentações diabólicas, vos incitarem a fazerdes obras más, deveis dizer: “Não, não quero pecar contra Deus, meu fim último; não quero ser-Lhe ingrato, à semelhança daqueles animais imundos; não quero andar de quatro patas, não quero ser um porquinho que, grunhindo e comendo e brincando, me esqueça do meu fim último, que é Deus. Sou uma criança que Deus pôs neste mundo para servi-lO, e que Ele agora traz a estes Exercícios para que eu aprenda os meus deveres da boca do Padre Diretor, que é ministro de Deus”. Oh! meus filhos, que alegria a minha se conseguir isto de vós!

 

4. — Mas, se Deus pôs neste mundo cada um de nós para Ele, para que então terá criado as outras criaturas? Tudo isso que vos rodeia, coisas e pessoas, esse belo céu, esses prados risonhos, árvores, animais, homens... enfim, todas as criaturas distintas de vós, que relação devem ter para com cada um de vós?

 

A relação que as criaturas devem ter pa­ra convosco; ou, melhor dizendo, o fim de cada criatura em relação a vós é servir-vos de meio para a consecução do vosso fim último, Deus. Tudo aquilo de que nos ser­vimos neste mundo, riquezas, honras, desprezos, talento, doença, saúde... havemos de servir-nos destas coisas na medida em que nos conduzirem a Deus, e privar-nos delas na medida em que de Deus nos afastarem. A consequência disto será que todas as coisas que nos agradam e as que nos desagradam, a vida longa ou curta, a pobreza ou a riqueza, deverão ser-nos perfeitamente indiferentes, e delas só nos havemos de servir na medida em que nos conduzirem a Deus. Se a saúde só serve a um homem para ele pecar, e se doente ele serve melhor a Deus, deve ele preferir a doença à saúde; se as riquezas o afastam de Deus e a pobreza o aproxima d’Ele, deve ele inclinar-se a ser pobre. Mas, como Deus sabe muito bem aquilo que nos convém, o que Ele nos der será o melhor para a nossa salvação.

 

Esta indiferença é tão necessária, que, sem ela, muito escasso será o fruto destes Exercícios. Mas esta não deve ser a indiferença passiva daquele que não faz nada, senão a indiferença daquele que está disposto a fazer a vontade de Deus manifestada pelas criaturas, seja ela qual for, agradável ou desagradável.

 

Já vistes alguma vez um cão quando es­pera ordens do dono? O inteligente animal está olhando fixamente para seu senhor, inquieto, nervoso, pronto a arrojar-se a qualquer perigo, esperando apenas um leve movimento da mão do dono para se lançar a cumprir a vontade deste, como uma seta. Se este lhe indica um rio, ele se lança ao rio; se o açula contra um inimigo, ele se arremessa contra o inimigo; se lhe mostra a morte, ele se precipita na morte... Antes de receber a ordem, o cão está indiferente para fazer uma coisa ou outra; em conhecendo a vontade do seu senhor, embora seja ela árdua de cumprir, ele não vacila; cumpre-a do melhor modo que pode.

 

Esta deve ser a indiferença que haveis de tirar desta consideração: estar prontos a escolher as criaturas que Deus quiser para a vossa salvação. Erro funesto seria que escolhêsseis, para vos salvardes, aquilo que não esteja conforme com a consecução do nosso fim último.

 

Vede um menino pequeno sentado diante da sua mesinha, disposto a escrever a sua página. Não lhe faltam desejos de trabalhar. Porém ele só se tem exercitado em copiar letras do modelo em papel pautado, com as pautas paralelas, cruzadas de oblíquas. Está indeciso para escolher pena e papel, pois os tem de várias classes. O mestre lhe disse que escrevesse no supradito papel pautado e com tal pena, a única que ele sabe manejar; porém ele se cansa dessa sujeição, e, contra a opinião do mestre, que sabe o que à criança convém, mete-se a copiar letra miúda em papel sem pauta e com outra pena que nunca manejou. O menino copia o seu modelo com fervor, com entusiasmo...

 

Admirado dessa não vista aplicação, o mestre chega-se caladinho por detrás e olha através dos óculos o escrito do seu discípulo.

 

O cruído de um piparote e um “Valha-me Deus!” do velho preceptor perturbam o silêncio da escola. O mestre contempla com aborrecimento a obra do seu discípulo: é um conjunto de linhas tortas; umas tendem para o céu, outras correm para o abismo, conforme se inclinam para baixo... as outras vão avançando em zigue-zague mui ricamente; uma ou outra mete-se na jurisdição da sua vizinha, atravessando-a aleivosa de lado a lado.. . As letras estão umas apertadas em grupinhos, como se estivessem com frio, outras distanciadas, que parecem estar brigadas. Como sombras desse quadro, espalham-se borrões e salpicos por entre garranchos e garatujas...

 

Bobo! Vaidoso! — prorrompe afinal o mestre. — Por que escolhes as penas que não sabes manejar? Acreditas ser um futuro grande homem e és um ignorante atrevido. Por que desprezas meus conselhos e queres escrever por meios que não são adequados ao teu trabalho?

 

O mesmo vos aconteceria, meus filhos, se quisésseis usar das criaturas ao vosso talante, não olhando nisso à vontade de Deus, porém à vossa. Escreveríeis a vossa vida num caderno cheio de borrões e de letras hieroglíficas, que o diabo decifraria, mas que aborreceriam ao vosso anjo tutelar. Se Deus quer que um menino estude, e assim lho dá a entender por seus pais e mestres, que são os porta-vozes d’EIe, o menino fará mal em ir pelo caminho que lhe apeteça.

 

Isto e o que eu desejo tireis desta minha explicação: aborrecimento ao pecado, que vos desvia de Deus, último fim vosso, e indiferença no uso das coisas criadas, escolhendo aquelas que Deus quer para vós, saúde ou enfermidade, riquezas e honras ou pobreza e desprezos. Oh, meus filhos, se saísseis do exercício deste dia com tão boas disposições, quão bom exercício teríeis feito!

 

Como isso é difícil, pedi à Virgem Maria que vos dê inteligência para compreender e ânimo para praticar isto que vos ofereço como fruto da consideração do fim do homem.

 

Para consegui-lo, rezai comigo três Ave-Marias.