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Oração, esmola e jejum

para se abrir à Palavra de Deus.

 

Homilia do Papa Bento XVI na celebração

da Missa de Quarta-Feira de Cinzas, na Basílica de Santa Sabina

 

 

Amados irmãos e irmãs

 

Hoje, Quarta-Feira de Cinzas porta litúrgica que introduz na Quaresma os textos predispostos para a celebração delineiam, ainda que resumidamente, toda a fisionomia do tempo quaresmal. A Igreja preocupa-se por nos mostrar qual deve ser a orientação do nosso espírito e oferece-nos os subsídios divinos para percorrer com decisão e coragem, já iluminados pelo fulgor do Mistério pascal, o singular itinerário espiritual que estamos a encetar.

 

"Convertei-vos a mim de todo o vosso coração". O apelo à conversão sobressai como tema predominante em todos os componentes da liturgia hodierna.

 

Na antífona de entrada já se diz que o Senhor esquece e perdoa os pecados de quantos se convertem; na coleta convida-se o povo cristão a rezar para que cada um empreenda "um caminho de verdadeira conversão".

 

Na primeira Leitura, o profeta Joel exorta a converter-se ao Pai "de todo o vosso coração, com jejuns, com lágrimas e com gemidos... porque Ele é bom e compassivo, clemente e misericordioso, inclinado a arrepender-se do castigo que inflige" (2, 12-13).

 

A promessa de Deus é clara:  se o povo ouvir o convite a converter-se, Deus fará triunfar a sua misericórdia e os seus amigos serão cumulados de inúmeros favores. Com o Salmo responsorial, a assembléia litúrgica faz suas as invocações do Salmo 50, pedindo ao Senhor que crie em nós "um coração puro", que renove em nós "um espírito reto".

 

Há depois, a página evangélica em que Jesus, alertando-nos contra o caruncho da vaidade que leva à ostentação e à hipocrisia, à superficialidade e à autocomplacência, reitera a necessidade de nutrir a retidão do coração. Ele mostra, ao mesmo tempo, o meio para crescer nesta pureza de intenção:  cultivar a intimidade com o Pai celeste.

 

Particularmente agradável neste ano jubilar, comemorativo do bimilenio do nascimento de São Paulo, chega a nós a palavra da segunda Carta aos Coríntios:  "Suplicamos-vos, pois, em nome de Cristo:  reconciliai-vos com Deus" (5, 20). Este convite do Apóstolo ressoa como um ulterior estímulo a levar a sério o apelo quaresmal à conversão.

 

Paulo experimentou de maneira extraordinária o poder da graça de Deus, a graça do Mistério pascal de que a própria Quaresma vive. Ele apresenta-se-nos como "embaixador" do Senhor. Então, quem melhor do que ele pode ajudar-nos a percorrer de maneira frutuosa este itinerário de conversão interior?

 

Na primeira Carta a Timóteo, escreve:  "Jesus Cristo veio a este mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o primeiro", e acrescenta:  "Por isso alcancei misericórdia, a fim de que Jesus mostrasse, primeiro em mim, toda a sua magnanimidade, e para que assim servisse de exemplo àqueles que haviam de crer nele para a vida eterna" (1, 15-16).

 

Portanto, o Apóstolo está consciente de ter sido escolhido como exemplo, e esta sua exemplaridade diz respeito precisamente à conversão, à transformação da sua vida que se verificou graças ao amor misericordioso de Deus. "Embora eu fosse outrora blasfemo, perseguidor e injuriador reconhece ele alcancei misericórdia... e a graça de nosso Senhor superabundou" (Ibid., 1, 13-14).

 

Toda a sua pregação e, antes ainda, toda a sua existência missionária foram sustentadas por um impulso interior reconduzível à experiência fundamental da "graça". "Pela graça de Deus, sou o que sou escreve aos Coríntios ... tenho trabalhado mais do que todos eles [os Apóstolos], não eu, mas a graça de Deus que está comigo" (1 Cor 15, 10)

 

Trata-se de uma consciência que sobressai em cada um dos seus escritos e funcionou como uma "alavanca" interior sobre a qual Deus pôde agir para o fazer progredir rumo a confins sempre novos, não só geográficos mas também espirituais.

 

São Paulo reconhece que tudo nele é obra da graça divina, mas não esquece que é necessário aderir livremente ao dom da vida nova recebida no Batismo. No texto do capítulo 6 da Carta aos Romanos, que será proclamado durante a Vigília pascal, escreve:  "Não reine, pois, o pecado no vosso corpo mortal, de modo que obedeçais à concupiscência. Não façais dos vossos membros armas de injustiça ao serviço do pecado; oferecei-vos antes a Deus, como ressuscitados dentre os mortos, e os vossos membros, como armas de justiça ao serviço de Deus" (6, 12-13).

 

Nestas palavras encontra conteúdo todo o programa da Quaresma, segundo a sua intrínseca perspectiva batismal. Por um lado, afirma-se a vitória de Cristo sobre o pecado, que se realizou de uma vez por todas com a sua morte e ressurreição; por outro, somos exortados a não oferecer os nossos membros ao pecado, ou seja a não conceder, por assim dizer, espaço de desforra ao pecado.

 

A vitória de Cristo espera que o discípulo a faça sua, e isto acontece antes de tudo com o Batismo mediante o qual, unidos a Jesus, nos tornamos "ressuscitados dentre os mortos". Porém, a fim de que Cristo possa reinar plenamente nele, o batizado deve seguir fielmente os seus ensinamentos; nunca deve abaixar a guarda, para não permitir que o adversário recupere de alguma forma o terreno.

 

Mas como completar a vocação batismal, como ser vitorioso na luta entre a carne e o espíritoentre o bem e o mal, luta que caracteriza a nossa existência?

 

No trecho evangélico de hoje o Senhor indica-nos três meios úteis:  a oração, a esmola e o jejum.

 

A este propósito, também na experiência e nos escritos de São Paulo encontramos referências úteis. Acerca da oração, ele exorta a "perseverar" e a "velar nela com a ação de graças" (cf. Rm 12, 12; Cl 4, 2), a "rezar ininterruptamente" (1 Ts 5, 17).

Jesus está no fundo do nosso coração. A relação com Ele está presente, e permanece presente mesmo quando falamos, agimos segundo os nossos deveres profissionais. Por isso, na oração há a presença interior do nosso coração da relação com Deus, que se torna cada vez também oração explícita.

 

No que diz respeito à esmola, são certamente importantes as páginas dedicadas à grande coleta em favor dos irmãos pobres (cf. 2 Cor 8-9), mas é necessário sublinhar que para ele a caridade é o ápice da vida do crente, o "vínculo da perfeição":  "Acima de tudo escreve aos Colossenses revesti-vos da caridade que é vínculo da perfeição" (Cl 3, 14).

 

Do jejum não fala expressamente, mas exorta com freqüência à sobriedade, como característica de quem é chamado a viver na expectativa vigilante do Senhor (cf. 1 Ts 5, 6-8; Tt 2, 12).

 

É interessante também a sua referência àquele "agonismo" espiritual, que exige temperança:  "Aquele que se prepara para a luta abstém-se de tudo, a fim de alcançar uma coroa corruptível; nós, porém, para alcançar uma coroa incorruptível" (1 Cor 9, 25).

 

Eis, pois, a vocação dos cristãos:  ressuscitados com Cristo, eles passaram através da morte e a sua vida já está escondida com Cristo em Deus (cf. Cl 3, 1-2). Para viver esta "nova" existência em Deus é indispensável nutrir-se da Palavra de Deus. Só assim podemos realmente estar unidos a Deus, viver na sua presença, se nos mantivermos em diálogo com Ele.

 

Jesus di-lo claramente, quando responde à primeira das três tentações no deserto, citando o Deuteronômio:  "Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus" (Mt 4, 4; cf. Dt 8,3).

 

São Paulo recomenda:  "A palavra de Cristo permaneça em vós abundantemente, ensinando-vos e admoestando-vos uns aos outros com salmos, hinos e cânticos espirituais" (Cl 3, 16). Também nisto, o Apóstolo é acima de tudo testemunha:  as suas Cartas são a prova eloqüente do fato de que ele vivia em diálogo permanente com a Palavra de Deus:  pensamento, ação, oração, teologia, pregação, exortação, tudo nele era fruto da Palavra, recebida desde a juventude na fé judaica, plenamente revelada aos seus olhos pelo encontro com Cristo morto e ressuscitado, pregada pelo resto da vida durante a sua "corrida" missionária.

 

A ele foi revelado que Deus pronunciou em Jesus Cristo a Palavra definitiva, Ele mesmo, Palavra de salvação que coincide com o mistério pascal:  o dom de si na cruz, que depois se torna ressurreição, porque o amor é mais forte do que a morte. Assim, São Paulo podia concluir:  "Quanto a mim, Deus me livre de me gloriar, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo" (Gl 6, 14). Em Paulo, a Palavra fez-se vida, e a sua única glória é Cristo crucificado e ressuscitado.

 

Queridos irmãos e irmãs, enquanto nos dispomos para receber as cinzas no na cabeça, em sinal de conversão e de penitência, abramos o coração à ação vivificadora da Palavra de Deus. A Quaresma, caracterizada por uma escuta mais freqüente desta Palavra, por uma alegria mais intensa, por um estilo de vida austero e penitencial, seja estímulo à conversão e ao amor sincero pelos irmãos, especialmente os mais pobres e necessitados.

 

Que nos acompanhe o Apóstolo Paulo, nos guie Maria, Virgem atenta da escuta, Serva humilde do Senhor. Assim, renovados no espírito, poderemos chegar a celebrar a Páscoa com alegria. Amém!