JESUS NO MONTE DAS OLIVEIRAS.
Jesus, com os Apóstolos, a caminho do horto de Getsêmani
Quando Jesus, depois da instituição do SS. Sacramento, saiu do Cenáculo com os onze Apóstolos, já tinha a alma oprimida de aflição e crescente tristeza. Conduziu os onze, por um desvio, ao vale de Josafá, dirigindo-se ao monte das Oliveiras.
Ao chegarem ao portão, vi a lua, ainda não inteiramente cheia, levantar-se por cima da montanha. Andando com os Apóstolos pelo vale, disse-lhes o Senhor que lá voltaria um dia, para julgar o mundo, mas não pobre e sem poder como hoje, e que então muitos, com grande medo, exclamariam: “Montes, cobri-nos”.
Os discípulos não O compreenderam, pensando, como muitas vezes nessa noite, que a fraqueza e o esgotamento os faziam delirar. Ora andavam, ora paravam, conversando com o Mestre. Disse-lhes também Jesus:
“Vós todos haveis de escandalizar-vos em mim esta noite”; pois está escrito: “Tirarei o pastor, e as ovelhas serão dispersas. – Mas, quando tiver ressuscitado, preceder-vos-ei na Galiléia”.
Os Apóstolos estavam ainda cheios de entusiasmo e amor, pela recepção do SS. Sacramento e pelas palavras solenes e afetuosas de Jesus. Comprimiam-se-Lhe em torno, exprimindo-Lhe de vários modos o seu amor e protestando que não O abandonariam nunca. Mas, como Jesus continuasse a falar no mesmo sentido, disse-lhe Pedro:
“E, se todos se escandalizarem por vossa causa, eu nunca me escandalizarei”.
Respondeu-lhe o Senhor:
“Em verdade te digo, tu mesmo três vezes me negarás esta noite, antes do galo cantar”.
Pedro, porém, não quis conformar-se de modo algum e disse:
“Mesmo que tivesse de morrer convosco, não vos havia de negar”.
Assim falaram também todos os outros. Continuavam andando e parando alternadamente e a tristeza de Jesus aumentava cada vez mais. Queriam os Apóstolos consolá-Lo de modo inteiramente humano, assegurando-lhe que não aconteceria tal. Nesses vãos esforços se cansaram, começaram a duvidar e veio-lhes a tentação.
Atravessaram a torrente Cedron, não pela ponte, sobre a qual Jesus foi depois conduzido preso, mas por outra, porque tinham tomado um desvio.
Getsêmani, situado no monte das Oliveiras, para onde se dirigiram, fica a meia hora certa do Cenáculo, pois do Cenáculo À porta que dá para o vale de Josafá, se leva um quarto de hora e dali ao Getsêmani outro tanto.
Este lugar, no qual Jesus ensinou algumas vezes aos discípulos, passando ali a noite com eles nos últimos dias, consta de algumas casas de pousada, abertas e desocupadas e de um largo jardim, cercado de sebe, no qual há somente plantas ornamentais e árvores frutíferas.
Os Apóstolos e diversas outras pessoas tinham a chave deste jardim, que era um lugar de recreio e de oração. Gente que não tinha jardim próprio fazia às vezes festas e banquetes ali. Havia também vários caramanchões de folhagem espessa, num dos quais ficaram naquele dia oito Apóstolos e alguns outros discípulos, que se lhes juntaram mais tarde.
O horto das Oliveiras é separado do Jardim de Getsêmani por um caminho e estende-se mais para o alto do monte. É aberto, cercado apenas de um aterro e menor do que Getsêmani, um canto cheio de grutas e recantos, em que por toda a parte se vêem oliveiras. Um lado era mais bem tratado; havia nele assentos, bancos de relva bem cuidados e grutas espaçosas e sombrias. Quem quisesse, podia ali facilmente achar um lugar próprio para a oração e meditação. Era à parte mais sem cuidados que Jesus ia rezar.
Jesus atribulado pelos horrores do pecado.
Eram quase 9 horas da noite, quando Jesus chegou, com os discípulos, a Getsêmani. Ainda reinava a escuridão na terra, mas no céu a lua já espargia a luz prateada. Jesus estava muito triste e anunciou-lhes a aproximação do perigo. Os discípulos assustaram-se e Ele disse a oito dos companheiros que ficassem no Jardim de Getsêmani, num lugar onde havia um caramanchão.
“Ficai aqui, disse, enquanto vou ao meu lugar rezar”.
Tomando consigo Pedro, João e Tiago o Maior, subiu mais para o alto e, cruzando um caminho, avançara, numa distância de alguns minutos, do horto das Oliveiras ao pé do monte.
Ele estava numa indizível tristeza; pressentia a tribulação e tentação, que se aproximavam. João perguntou-lhe como podia agora estar tão abatido, quando sempre os tinha consolado. Então Jesus disse:
“Minha alma está triste até a morte” e, olhando em redor de si, viu de todos os lados se aproximarem angústias e tentações, como nuvens cheias de figuras assustadoras. Foi nessa ocasião que disse aos Apóstolos:
“Ficai aqui e vigiai comigo; orai, para não serdes surpreendidos pela tentação”. Eles ficaram então ali; Jesus, porém, adiantou-se ainda mais; mas as horrorosas visões assaltavam-no de tal modo, que, cheio de angustia, desceu um pouco à esquerda dos três Apóstolos, escondendo-se debaixo de um grande rochedo, numa gruta de talvez 7 pés de profundidade; os Apóstolos ficaram em cima desse rochedo, numa espécie da cavidade. O chão da gruta era suavemente inclinado e as plantas pendentes do rochedo, que sobressaía em frente, formavam uma cortina diante da entrada, de maneira que quem estivesse dentro da gruta, não podia ser visto de fora.
Quando Jesus se afastou dos discípulos, vi em redor dele um largo círculo de imagens horríveis, o qual se apertava mais e mais. Cresceu-lhe a tristeza e a tribulação e retirou-se tremendo para dentro da gruta, semelhante ao homem que, fugindo de uma repentina tempestade, procura abrigo para rezar, vi, porém, que as imagens assustadoras o perseguiram lá dentro da gruta, tornando-se cada vez mais distintas.
A estreita caverna parecia encerrar o horrível espetáculo de todos os pecados cometidos, desde a primeira queda do homem, até ao fim dos séculos, como também todos os castigos. Foi ali, no monte das Oliveiras, que Adão e Eva, expulsos do Paraíso, pisaram primeiro a terra e foi nessa caverna que choraram e gemeram.
Tive a clara impressão de que Jesus, entregando-se às dores da Paixão, que ia começar e sacrificando-se à justiça divina, em satisfação de todos os pecados do mundo, de certo modo retirou a sua divindade para o seio da SS. Trindade; impelido por amor infinito, quis entregar-se à fúria de todos os sofrimentos e angústias, na sua humanidade puríssima e inocente, verdadeira e profundamente sensível, para expiação dos pecados do mundo, armado somente do amor do seu coração humano.
Querendo satisfazer pela raiz e por todas as excrescências do pecado e da má concupiscência, tomou o Misericordiosíssimo Jesus no coração a raiz de toda a explicação purificadora e de toda a dor santificante, por amor de nós, pecadores e, para satisfazer pelos pecados inumeráveis, deixou esse sofrimento infinito estender-se, como uma arvore de dores e penetrar-lhe com mil ramos todos os membros do corpo sagrado, todas as faculdades da alma santa.
Entregue assim inteiramente à sua humanidade, implorando a Deus com tristeza e angustia indizíveis, prostrou-se por terra. Viu em inumeráveis imagens todos os pecados do mundo, com toda a sua atrocidade, tomou todos sobre si e ofereceu-se na sua oração, para dar satisfação à justiça do Pai Celestial, pagando com os sofrimentos toda essa dívida da humanidade para com Deus.
Satanás, porém, que se movia no meio de todos os horrores, em figura terrível e com um riso furioso, enraivecia-se cada vez mais contra Jesus e, fazendo passar-lhes diante da alma visões sempre mais horrorosas, gritou diversas vezes à humanidade de Jesus: “Que? Tomarás também isto sobre ti? Sofrerás também o castigo por este crime? Como podes satisfazer por tudo isto?”
Veio, porém, um estreito feixe de luz, da região onde o sol está entre as dez e onze horas, descendo sobre Jesus e nela vi surgir uma fileira de Anjos, que Lhe transmitiram força e ânimo.
A outra parte da gruta estava cheia de visões horrorosas dos nossos pecados e de maus espíritos, que O insultavam e agrediam; Jesus aceitou tudo; o seu Coração, o único que amava perfeitamente a Deus e aos homens, nesse deserto cheio de horrores, sentia com dilacerante tristeza e terror a atrocidade e o peso de todos esses pecados. Ai! vi tantas coisas ali! Nem um ano chegaria para contá-las!
Tentações da parte de Satanás.
Quando essa multidão de culpas e pecados acabou de passar diante da alma de Jesus, como um mar de horrores e após se haver ele oferecido, como sacrifício de explicação por tudo e chamado sobre si toda a onda de penas e castigos, suscitou-lhe Satanás inumeráveis tentações, como outrora no deserto; apresentou até numerosas acusações contra o puríssimo Salvador. “Que”! Disse ele, “Queres tomar tudo isto sobre ti e não és puro? Vê isto e aquilo e mais isto!” E então desenrolou, diante dos olhos imaculados da Divina Vítima, com impertinência infernal, uma multidão de acusações inventadas.
Acusou-O das faltas dos discípulos, dos escândalos que tinham dado, das perturbações que Ele trouxe ao mundo, renunciando aos costumes antigos. Satanás procedeu como o mais hábil e astuto fariseu. Acusou-O de ter sido a causa da matança dos inocentes por Herodes, dos perigos e sofrimentos de seus pais no Egito; acusou-O de não ter salvado da morte a João Batista, de ter desunido famílias, protegido pessoas de má fama, de não ter curado certos doentes, de ter causado prejuízo aos habitantes de Gergesa, porque permitiu aos possessos que entornassem a sua dorna de bebidas e porque causou a morte da manada de porcos no lago.
Imputou-Lhe as faltas de Maria Madalena, por não lhe ter impedido a recaída no pecado; acusou-O de ter abandonado a família e de ter dissipado o bem alheio; numa palavra, tudo de que Satanás podia ter acusado, na hora da morte, um homem comum, que tivesse feito tais ações externas, sem motivos sobrenaturais: tudo apresentou o tentador à alma abatida de Jesus, para amedrontá-la e desanimá-la; pois ignorava que Jesus era o Filho de Deus e tentou-O somente como ao mais justo dos homens.
Nosso Salvador deixou predominar a sua humanidade de tal modo, que quis sofrer também aquelas tentações, que assaltam mesmo os homens que têm uma morte santa, pondo em dúvida o valor interno das obras boas. Jesus permitiu, para esvaziar todo o cálice da agonia, que o tentador, ignorando-Lhe a divindade, Lhe apresentasse todas as suas obras de caridade como outras tantas dívidas, ainda não pagas, à graça divina.
O tentador censurou-O de querer expiar as culpas de outros, Ele, que não tinha méritos e que tinha ainda de satisfazer à justiça divina, pelas graças de tantas obras que considerava boas. A divindade de Jesus permitiu que o inimigo lhe tentasse a humanidade, como podia tentar um homem que quisesse atribuir ás suas obras um valor próprio, além daquele único que podem ter, da união com os méritos da morte redentora de nosso Senhor e Salvador.
O tentador apresentou-Lhe assim todas as suas obras de amor como atos privados de todo mérito, que antes O constituíam devedor de Deus, porque, segundo o acusador, o seu valor provinha antecipadamente, por assim dizer, dos méritos da Paixão, ainda não consumada e cujo valor infinito Satanás ainda não conhecia; portanto, não teria Jesus ainda satisfeito, na opinião do tentador, pelas graças recebidas para essas obras e disse, aludindo a estas: ”Ainda deves por esta obra e por aquela”.
Finalmente desenrolou mais um título de dívida diante de Jesus, afirmando que tinha recebido e gasto o preço da venda da propriedade de Maria Madalena em Magdalum; disse a Jesus: “Como ousaste desperdiçar o bem alheio, prejudicando assim aquela família?”
Vi a apresentação de tudo a cuja expiação Jesus se oferecera e senti com Ele todo o peso das numerosas acusações que o tentador levantou contra Ele; pois, entre os pecados do mundo que o Salvador tomou sobre si, vi também os meus inumeráveis pecados e do círculo das tentações veio também a mim, um como rio de acusações, nas quais se me patentearam todos os meus pecados de atos e omissões.
Eu, porém, olhava sempre para o meu Esposo celeste, durante essa apresentação dos pecados, gemendo e rezando com Ele e virava-me também com Ele para os Anjos consoladores. Ai! O Senhor torcia-se como um verme, sob o peso da dor e das angústias!
Durante todas essas acusações de Satanás contra o puríssimo Salvador, somente com grande esforço consegui conter-me; mas, quando levantou a acusação da venda da propriedade de Madalena, não pude mais me conter e gritei-lhe: “Como podes chamar dívida o preço da venda dessa propriedade? Eu mesma vi o Senhor, com essa quantia, que lhe foi entregue por Lázaro, para obras de misericórdia, remir 27 pobres desamparados dos cárceres de Tirza”.
A princípio estava Jesus de joelhos, rezando tranquilamente; mais tarde, porém, se lhe assustou a alma, à vista da atrocidade dos inumeráveis crimes e da ingratidão dos homens para com Deus; assaltaram-no angústia e dor tão veementes, que suplicou tremendo: “Meu Pai, se for possível, passe este cálice longe de mim. Meu Pai, tudo vos é possível: afastai este cálice de mim”. Depois sossegou e disse: “Não se faça, porém, a minha vontade, mas a vossa”. A sua vontade e a do Pai eram uma só; mas entregue à fragilidade da natureza humana, por amor, Jesus tremia à vista da morte.
Jesus volta para junto dos três, Apóstolos.
Vi a caverna rodeada de formas assustadoras; todos os pecados, toda a iniqüidade, todos os vícios, todos os tormentos, toda a ingratidão, que o angustiavam; vi os terrores da morte, o horror que sentia, como homem, diante do imenso sofrimento expiatório, assaltando-O e oprimindo-O, sob as formas de espectros hediondos.
Ele caiu por terra, torcendo as mãos; cobria-O o suor da angústia; tremia e estremecia. Levantou-se, mas os joelhos trementes quase não O suportavam; estava inteiramente desfigurado e irreconhecível, os lábios pálidos, o cabelo eriçado.
Eram cerca de dez horas e meia, quando se levantou e se arrastou para junto dos três Apóstolos, cambaleando, caindo a cada passo, banhado num suor frio. Subiu à esquerda da caverna, e, passando por cima desta, chegou a um aterro, onde os discípulos estavam adormecidos, encostados um ao outro, abatidos pela fadiga, tristeza, inquietação e tentação.
Jesus aproximou-se-lhes, como um homem angustiado a quem o terror impele para junto dos amigos e como um bom pastor que, transtornado, profundamente, vai para junto do rebanho, que sabe, ameaçado de um perigo próximo; pois não ignorava que também eles se achavam em angústia e tentação. Vi as horrorosas visões cercarem-no também nesse curto caminho.
Encontrando os Apóstolos a dormir, torceu as mãos e caiu por terra ao lado deles, cheio de tristeza e fraqueza, dizendo: “Simão, dormes?” Então acordaram e levantaram-se; e Ele disse, no seu desamparo: “Então não pudestes velar uma hora comigo?”. Quando o viram tão assustado e desfigurado, pálido, cambaleando, banhado de suor, tremendo e estremecendo, quando O ouviram queixar-se com voz quase extinta, não sabiam mais o que pensar; se não lhes tivesse aparecido cercado de luz que bem conheciam, não teriam reconhecido.
Disse-lhe João: “Mestre, que tendes? Quereis que chame os outros Apóstolos? Devemos fugir?” Jesus, porém, respondeu: “Ainda que vivesse mais 33 anos, ensinando e curando enfermos, não chegaria ao que tenho de cumprir até amanhã. Não chames os oito; deixai-os ali, porque não poderiam ver-me nesta aflição, sem escandalizar-se; cairiam em tentação, esquecer-se-iam de muitas coisas e duvidariam de Mim. – Vós, porém, que vistes o Filho do homem transfigurado, podeis vê-lo também no seu desamparo; mas vigiai e orai para não cairdes em tentação. O espírito é pronto, mas a carne é fraca”.
Disse-o, referindo-se a eles e a si mesmo. Quis induzi-los, com essas palavras, à presença e dar-lhes a saber a luta da sua natureza humana contra a morte e a causa daquela fraqueza. Falou-lhes ainda sobre outras coisas, sempre abismado naquela tristeza e ficou cerca de um quarto de hora com eles. Em angústia mais e mais crescente voltou à gruta; eles, porém, estenderam para Ele as mãos chorando e caíram uns nos braços dos outros, perguntando: “Que é isto? Que lhe aconteceu? Está tão desolado!” Começaram a rezar, com as cabeças cobertas, cheios de tristeza.
Tudo que acabo de contar, deu-se em mais ou menos uma hora e meia, depois que entraram no horto das Oliveiras. É verdade que Jesus disse, segundo o Evangelho: “Não podeis velar uma hora comigo?” Mas não se o pode entender ao pé da letra, segundo o nosso modo de falar, os três Apóstolos, que vieram com Jesus, tinham rezado no começo; mas depois adormeceram; conversando entre si com pouca confiança, caíram em tentação. Os oito Apóstolos, porém, que ficaram na entrada do horto, não dormiram. A angústia que se mostrara nessa noite em todos os discursos de Jesus, tornou-os muito perturbados e inquietos; erravam pelas vizinhanças do monte das Oliveiras para procurar um lugar de refúgio, em caso de perigo.
Em Jerusalém houve nessa noite pouco movimento; os judeus estavam nas suas casas, ocupados com os preparativos para a festa. Os acampamentos dos forasteiros que tinham vindo para a festa, não estavam nas vizinhanças do monte das Oliveiras.
Enquanto eu ia e voltava nesses caminhos, vi discípulos e amigos de Jesus, andando e conversando; pareciam inquietos, à espera de qualquer desgraça. A Mãe do Senhor, com Madalena, Marta, Maria, mulher de Cléofas, Maria Salomé e Salomé, assustadas por boatos, foram com amigas para fora da cidade, a fim de ter notícias de Jesus.
Ali as encontraram Lázaro, Nicodemos, José de Arimatéia e alguns parentes de Hebron e procuraram sossegá-las; pois, tendo eles mesmos conhecimento, pelos discípulos, dos tristes discursos feitos por Jesus no Cenáculo, foram pedir informações a alguns fariseus conhecidos e destes souberam que não constava nada sobre tentativas imediatas contra o Senhor.
Disseram por isso às mulheres que o perigo não podia ser grande, que tão próximo da festa não poriam as mãos em Jesus. É que não sabiam da traição de Judas. Maria, porém, contou-lhes o estado perturbado deste nos últimos dias ao sair do Cenáculo e advertiu-os de que com certeza fora trair ao Senhor, apesar das repreensões, pois era filho da perdição. Depois voltaram as santas mulheres à casa de Maria, mãe de Marcos.
Anjos mostram a Jesus a enormidade dos seus sofrimentos e consolam-nO.
Voltando à gruta, com toda a tristeza que o acabrunhava, Jesus prostrou-se por terra, com os braços estendidos e rezou ao Pai Celeste. Mas passou-lhe na alma nova luta, que durou três quartos da hora. Anjos vieram apresentar-Lhe em grande número de visões, tudo o que devia aceitar de sofrimentos, para expiar o pecado.
Mostraram-lhe a beleza do homem antes do primeiro pecado, como imagem de Deus e quanto o pecado o tinha rebaixado e desfigurado. Mostraram-lhe como o primeiro pecado fora a origem de todos os pecados, a significação e essência da concupiscência e seus terríveis efeitos sobre as faculdades da alma e do corpo do homem, como também a essência e a significação de todas as penas contrárias à concupiscência.
Mostraram-lhe os seus sofrimentos expiatórios primeiramente como sofrimentos de corpo e alma, suficientes para cumprir todas as penas impostas pela justiça divina à humanidade inteira, por toda a má concupiscência; e depois como sofrimento, que, para dar verdadeira satisfação, castigou os pecados de todos os homens na única natureza humana que era inocente: na humanidade do Filho de Deus, O qual, para tomar sobre si, por amor, a culpa e o castigo da humanidade inteira, devia também combater e vencer a repugnância humana contra o sofrimento e a morte.
Tudo isto lhe mostraram os Anjos, ora em coros inteiros, com séries de imagens, ora separados, com as imagens principais; vi as figuras dos Anjos mostrando com o dedo elevado às imagens e percebi o que disseram, mas sem lhes ouvir as vozes.
Não há língua que possa descrever o horror e a dor que invadiram a alma de Jesus, ao ver esta terrível expiação; pois não viu somente a significação das penas expiatórias contrárias à concupiscência pecaminosa, mas também a significação de todos os instrumentos do martírio, de modo que O horrorizou, não só a dor causada pelos instrumentos, mas também o furor pecaminoso daqueles que o inventaram, a malícia dos que os usavam e a impaciência daqueles que com eles tinham sido atormentados, pois pensavam sobre Ele todos os pecados do mundo. O horror desta visão foi tal, que lhe saiu do corpo um suor de sangue.
Enquanto a humanidade de Jesus sofria e tremia, sob esta terrível multidão de sofrimentos, notei um movimento de compaixão nos Anjos; houve uma pequena pausa: parecia-me que desejavam ardentemente consolá-lo e que apresentavam as súplicas diante do trono de Deus. Era como se houvesse uma luta instantânea entre a misericórdia e a justiça de Deus e o amor que se estava sacrificando.
Foi-me mostrada uma imagem de Deus, não como em outras ocasiões, num trono, mas numa forma luminosa menos determinada; vi a pessoa do Filho retirar-se na pessoa do Pai, como que lhe entrando no peito; a pessoa do Espírito Santo saindo do Pai e do Filho e estando entre Eles; e todos eram um só Deus. Quem poderá descrever exatamente uma tal visão?
Não tive tanto uma visão com figuras humanas, como uma percepção interna, na qual me foi mostrado, por imagem, que a vontade divina de Jesus Cristo se retirava mais para o Pai, para deixar pesar sobre a sua humanidade todos os sofrimentos, que esta pedia ao Pai que afastasse; de modo que a vontade divina de Jesus, unida ao Pai, impunha à sua humanidade todos os sofrimentos que a vontade humana, pelas súplicas, queria afastar.
Vi-O no momento da compaixão dos Anjos, quando estes desejavam consolar Jesus que, com efeito, teve neste instante um certo alívio. Depois desapareceu tudo e os Anjos, com sua compaixão consoladora, abandonaram o Senhor, cuja alma entrou em novas angústias.
Mais imagens de pecados que atormentam o Senhor.
Quando o Redentor, no monte das Oliveiras, se entregou, como homem verdadeiro e real, ao horror humano, à dor e à morte, quando se incumbiu de vencer esta repugnância de sofrer, que faz parte de todo o sofrimento, foi permitido ao tentador que lhe fizesse tudo o que costuma fazer a todo homem que quer sacrificar-se por uma causa santa.
Na primeira agonia Satanás mostrara a Nosso Senhor, com raivosa zombaria, a enormidade da culpa do pecado, que quisera tomar a si e levou a audácia ao ponto de afirmar que a vida do mesmo Redentor não era livre de pecados.
Na segunda agonia viu Jesus a imensidade da Paixão expiatória, em toda a sua realidade e amargura. Esta apresentação foi feita pelos Anjos; pois não compete a Satanás mostrar a possibilidade da expiação, nem convém que o pai da mentira e do desespero mostre as obras da misericórdia divina.
Tendo, porém, Jesus resistido a todas essas tentações, pelo abandono completo à vontade do Pai Celeste, foi-Lhe apresentada à alma uma nova série terrível de visões assustadoras; a dúvida e inquietação que no coração do homem precedem a todo o sacrifício, a pergunta amarga: Qual será o resultado, o proveito deste sacrifício? A visão de um futuro assustador atormentou-Lhe então o Coração amoroso.
Deus mergulhou o primeiro homem, Adão, num profundo sono, abriu-lhe o lado, tomou-lhe uma das costelas, formou dela Eva, a mulher, a mãe de todos os vivos e apresentou-a a Adão. Então disse este: “Este é o osso dos meus ossos e a carne da minha carne; o homem deixará pai e mãe, para aderir à sua mulher e serão dois numa só carne”.
Do matrimônio foi escrito: ”Este sacramento é grande, digo, porém, em Jesus Cristo e na Igreja”; Pois Jesus Cristo, o novo Adão, quis também se submeter a um sono, o sono da morte na Cruz; quis também deixar que lhe abrissem o lado, para que deste fosse feita a nova Eva, sua esposa imaculada, a Igreja, mãe de todos os vivos; quis dar-lhe o sangue da redenção, a água da purificação e o Espírito Santo: os três que dão testemunho na terra; quis dar-lhe os santos Sacramentos, para que fosse uma esposa pura, santa e imaculada; quis ser-lhe a cabeça e nós devíamos ser-lhe os membros, sujeitos à cabeça, devíamos ser os ossos dos seus ossos, carne da sua carne.
Aceitando a natureza humana, para sofrer a morte por nós, tinha Jesus abandonado pai e mãe e unira-se a sua esposa, à Igreja; tornou-se uma carne com ela, alimentando-a com o santíssimo Sacramento do Altar, no qual se une a nós dia após dia; quis permanecer presente na terra com sua esposa, a Igreja, até nos unirmos todos a Ele no Céu e disse: “As portas do inferno não prevalecerão contra ela”. Para praticar esse incomensurável amor para com os pecadores, tornara-se homem e irmão dos pecadores, tomando sobre si a pena de toda a culpa.
Tinha visto com grande tristeza a imensidade desta culpa e da paixão expiatória e contudo entregara-se voluntariamente à vontade do Pai celeste, como vítima expiatória. Neste momento, porém, viu Jesus os sofrimentos, as perseguições, as feridas da futura Igreja, sua esposa, que estava para remir tão caro, com o seu próprio sangue: viu a ingratidão dos homens.
Apresentaram-se-Lhe diante da alma todos os futuros sofrimentos dos Apóstolos, discípulos e amigos, a Igreja primitiva, tão pouco numerosa, depois também as heresias e cismas, que nasceram á medida que a Igreja crescia, repetindo a primeira queda do homem pelo orgulho e desobediência, pelas diversas formas de vaidade e falsa justiça.
Viu a tibieza, a corrupção e malícia de um número infinito de cristãos, as mentiras e a esperteza enganadora dos mestres orgulhosos, os crimes sacrílegos de todos os sacerdotes viciosos e todas as horríveis conseqüências: A abominação e desolação do reino de Deus sobre a terra, neste santuário da humanidade ingrata, o qual estava: para fundar e remir com indizíveis sofrimentos, pelo preço de seu sangue e sua vida.
Vi passar diante da alma do nosso pobre Jesus, em séries mensais de visões, os escândalos de todos os séculos, até o nosso tempo e mesmo até o fim do mundo, em todas as formas do erro doentio, da intriga orgulhosa, do fanatismo furioso, dos falsos profetas, da obstinação e malícia herética.
Todos os apóstatas, os heresiarcas, os reformadores de aparência santa, os sedutores e os seduzidos insultavam e torturavam-na, como se não tivesse sofrido bastante, nem sido bem crucificado a seu ver e conforme o desejo orgulhoso e presunção vaidosa de cada um; rasgavam e partiam, disputando, a túnica sem costuras da Igreja; cada um queria tê-Lo como Redentor de modo diferente do que se tinha mostrado no seu amor.
Muitos O maltratavam, insultavam, negavam-nO. Viu inúmeros alçarem os ombros e sacudirem a cabeça, afastando-se dos braços que lhes estendia para salvá-los e precipitar-se no abismo, que os tragou.
Viu um número infinito de outros, que não ousavam negá-lO em alta voz, mas que se afastavam, por desgosto das aflições da Igreja, como o levita que se afastou do pobre viajante que caíra nas mãos dos salteadores. Viu-os separar-se de sua esposa ferida, como filhos covardes e infiéis abandonam as mães de noite, quando a casa é assaltada por ladrões e assassinos, aos quais por descuido abriram a porta.
Viu-os seguirem os despojos levados ao deserto, os vasos de ouro e os colares quebrados. Viu-os separados da videira verdadeira, pousarem sob as videiras silvestres; viu-os como ovelhas extraviadas, abandonadas aos lobos, conduzidas a mau pasto por mercenários e não querendo entrar no aprisco do bom Pastor, que deu a vida por suas ovelhas.
Viu-os errarem, sem pátria, no deserto, não querendo ver a sua cidade, colocado sobre o monte e que não pode ficar escondida. Viu-os em discórdia, agitados pelo vento para lá e para cá, nas areias do deserto, mas sem querer ver a casa de sua esposa, a Igreja fundada sobre a pedra, com a qual prometeu ficar até o fim do mundo e contra a qual as portas do inferno não prevalecerão.
Não queriam entrar pela porta estreita, para não baixar a cabeça. Viu-os seguir a outros, que não entraram no aprisco pela porta verdadeira. Construíram, sobre a areia, cabanas mudáveis e diferentes umas das outras, que não tinham nem altar nem sacrifício, porém cata-ventos nos tetos e suas doutrinas mudavam-nas com os ventos; contradiziam-se uns aos outros, não se entendiam, nem tinham estadia permanente.
Viu-os destruírem muitas vezes as cabanas, lançado os destroços contra a pedra angular da Igreja, que ficou inabalável. Viu muitos que, apesar da escuridão nas suas moradas, não queriam aproximar-se da luz, posta no candelabro, na casa da esposa, mas erravam, com os olhos cerrados, em redor do jardim cercado da Igreja, de cujos perfumes ainda viviam. Estendiam as mãos a imagens nebulosas e seguiam astros errantes, que os conduziam a poços sem água e mesmo na margem das fossas, não davam ouvido à voz do Esposo que os chamava e esfomeados riam-se ainda, com orgulho arrogante, dos servos mensageiros, que os convidavam para o banquete nupcial. Não queriam entrar no jardim, por temerem os espinhos da cerca - viva.
Viu-os o Senhor, inebriados de amor próprio, morrer de fome, por não ter trigo e de sede, por não ter vinho; cegos pela sua própria luz, chamavam de invisível a Igreja do Verbo encarnado. Jesus viu-os todos com tristeza; quis sofrer por todos que não queriam segui-lo, carregando a cruz da Igreja, sua esposa, à, qual se deu no SS. Sacramento, na sua cidade colocada no cimo do monte, que não pode ficar escondida, na sua Igreja, fundada sobre a pedra e contra a qual as portas do inferno não prevalecerão.
Todas estas inumeráveis visões da ingratidão dos homens, do abuso feito da morte expiatória de meu Esposo Celeste, vi-as passar diante da alma contristada do Senhor, ora variando, ora em dolorosa repetição; vi Satanás, em diversas figuras assustadoras, arrancando e estrangulando, diante dos olhos de Jesus, os homens remidos pelo seu sangue e até mesmo homens ungidos com o seu santo Sacramento.
O Salvador viu com grande amargura toda a ingratidão, toda a corrupção, tanto dos primeiros cristãos, como dos que se lhe seguiram, dos presentes e dos futuros. Entre estas aparições dizia o tentador continuamente à humanidade do Cristo: “Eis aí, por tal ingratidão queres sofrer?” Estas imagens passaram, em contínua repetição diante do Senhor e com tanta impetuosidade, com tanto horror e escárnio pesaram sobre Jesus, que angústia, indizível lhe oprimia a natureza humana.
Jesus Cristo, o Filho do Homem, estendia e torcia as mãos, caindo como que oprimido e pôs-se de novo de joelhos. A vontade humana do Redentor travava uma luta terrível contra a repugnância de sofrer tanto por uma raça tão ingrata, que o sangue lhe saiu do corpo, em grossas gotas de suor e correu em torrentes sobre a terra. Naquela aflição olhou em redor de si como para pedir socorro e parecia chamar o céu, a terra e os astros do firmamento pro testemunhas de seu sofrimento. Parecia-me ouvi-lo exclamar: “É possível suportar tal ingratidão? Sois testemunhas do que sofro”.
Então foi como se a lua e as estrelas se aproximassem num instante; senti nesse momento que se tornava mais claro. Observei então a lua, o que antes não fizera, e pareceu-me de todo diferente: ainda não era toda cheia e parecia maior do que em nossa terra. No meio vi uma mancha escura, semelhante a um disco posto diante dela e no meio havia uma abertura, pela qual brilhava a luz para o lado onde a lua ainda não estava cheia. A mancha escura era como um monte e em redor da lua havia ainda um círculo luminoso, como um arco-íris.
Jesus, na sua aflição, levantou a voz por alguns momentos, em alto pranto. Vi os Apóstolos levantarem-se assustados, com as mãos postas erguidas, escutarem e querendo correr para junto do Mestre. Mas Pedro reteve a João e Tiago, dizendo: “Ficai, eu vou lá”. Vi-o correr e entrar na gruta. “Mestre, disse ele, que tendes”?, e parou, tremendo, ao vê-lo todo ensangüentado e angustiado. Jesus, porém, não lhe respondeu e pareceu não lhe notar a presença. Então voltou Pedro para junto dos outros dois e suspirava. Por isso lhes aumentou ainda a tristeza; sentaram-se velando as cabeças e rezaram entre lágrimas.
Eu, porém, voltei a meu Esposo Celeste, em sua dolorosa agonia. As imagens hediondas da ingratidão e dos abusos dos homens futuros, cuja culpa tomara sobre si, a cuja pena se entregara, arremessaram-se contra Ele, cada vez mais terríveis e impetuosas. De novo lutou contra a repugnância da natureza humana de sofrer; diversas vezes o ouvi exclamar: “Meu Pai, é possível sofrer por todos estes? Pai, se este cálice não pode ser afastado de mim, seja feita a vossa vontade”.
No meio de todas estas visões de pecados contra a divina misericórdia, vi Satanás em diversas formas hediondas, conforme a espécie dos pecados. Ora aparecia como homem alto e negro, ora sob a figura de tigre, ora como raposa ou lobo, como dragão ou serpente; não eram, porém, as figuras naturais desses animais, mas apenas as feições salientes da respectiva natureza, misturadas com outras formas horríveis.
Não havia nada ali que representasse figura completa de uma criatura, eram somente símbolos de decadência, de abominação, de horror, da contradição e do pecado: símbolos do demônio. Essas figuras diabólicas empurravam, arrastavam, despedaçavam, e estrangulavam, à vista de Jesus, inumeráveis multidões de homens, por cujo resgate, das garras de Satanás, o Salvador entrara no doloroso caminho da Cruz. No principio não vi tão freqüentemente a serpente, mas no fim a vi gigantesca, com uma coroa na cabeça, arremessar-se com força terrível contra Jesus e com ela, de todos os lados, exércitos de todas as gerações e classes.
Armados de todos os meios de destruição, instrumentos de martírio e armas, lutavam ora uns contra os outros, ora com terrível raiva contra Jesus. Era um espetáculo horrível. Carregavam-nO de insultos, maldições e imundícies, cuspiam-Lhe, batiam-Lhe, traspassavam-nO. As suas armas, espadas e lanças, iam e vinham, como os manguais dos debulhadores numa imensa eria; todos desencadeavam a sua fúria sobre o grão de trigo celeste, caído na terra para nela morrer e depois alimentar eternamente todos os homens com o pão da vida, com fruto imensurável.
Vi Jesus no meio destas coortes furiosas, entre as quais me parecia haver muitos cegos; estava tão alterado, como se realmente sentisse os golpes dos agressores. Vi-O cambalear de um lado para o outro; ora caia, ora de novo se levantava. Vi a serpente no meio de todos esses exércitos, instigando-os continuamente; batia ora aqui, ora ali, com a cauda, estrangulando, despedaçando e devorando todos que com ela derrubava.
Tive a explicação de que a multidão dos exércitos que lutavam contra Nosso Senhor, era o número imenso daqueles que maltrataram de muitíssimos modos a Jesus Cristo, seu Redentor, real e substancialmente presente no Santíssimo Sacramento, com divindade e humanidade, com corpo e alma, com carne e sangue, debaixo das espécies de pão e vinho.
Avistei entre esses inimigos de Jesus todas as espécies de profanadores do SS. Sacramento, penhor vivo de sua continua presença pessoa na Igreja Católica. Vi com horror todos esses ultrajes, desde o descuido, irreverência, abandono, até o desprezo, abuso e sacrilégios os mais horrorosos, o culto dos ídolos deste mundo, orgulho e falsa ciência e por outro lado, heresia e descrença, fanatismo, ódio e sangrenta perseguição.
Vi entre esses inimigos de Jesus todas as espécies de homens: até cegos e aleijados, surdos e mudos e mesmo crianças; cegos, que não queriam ver a verdade; coxos, que por preguiça não queriam segui-lO; surdos, que não queriam ouvir-Lhe as exortações e advertências; mudos, que não queriam lutar por Ele nem com a palavra; crianças, desviadas na companhia dos pais e mestres mundanos e esquecidos de Deus, nutridos pela concupiscência, ébrias de ciência falsa, sem gosto das coisas divinas ou já perdidas por falta delas, para sempre.
Entre as crianças, cujo aspecto me afligiu particularmente, porque Jesus amava tanto as crianças, vi também muitos meninos ajudantes da Santa Missa, pouco instruídos, mal educados e desrespeitosos, que nem respeitavam a Jesus Cristo na mais santa cerimônia. Em parte eram culpados os mestres e os reitores das Igrejas.
Vi com espanto que também muitos sacerdotes, de todas as hierarquias contribuíam para o desrespeito de Jesus no SS. Sacramento, até alguns que se tinham por crentes e piedosos. Quero mencionar, entre estes infelizes, apenas uma classe: vi ali muitos que acreditavam, adoravam e ensinavam a presença de Deus vivo no SS. Sacramento, mas na sua conduta não Lhe manifestavam fé e respeito: pois descuidavam-se do palácio, do trono, da tenda, da residência, dos ornamentos do Rei do Céu e da Terra, isto é, não cuidavam da Igreja, do altar, do tabernáculo, do cálice, do ostensório de Deus vivo e dos vasos, utensílios, ornamentos, vestes para uso e enfeite da casa do Senhor.
Tudo estava abandonado e se desfazia em poeira, mofo e imundície de muitos anos; o culto divino era celebrado com pressa e descuido e se não profanado internamente, pelo menos degradado exteriormente. Tudo isso, porém, não era conseqüência de verdadeira pobreza, mas de indiferença, preguiça, negligencia, preocupação com interesses vãos deste mundo, muitas vezes também de egoísmo e morte espiritual, pois vi tal descuido também em Igrejas ricas e abastadas; vi muitos até, nas quais o luxo mundano e inconveniente e sem gosto substituíra os magníficos e veneráveis monumentos de uma época mais piedosa, para esconder, sob aparências mentirosas e cobrir com um disfarce brilhante o descuido, a imundície, a desolação e o desperdício.
O que faziam os ricos, por vaidosa ostentação, logo imitaram estupidamente os pobres, por falta de simplicidade. Não pude deixar de pensar nesta ocasião na Igreja do nosso pobre convento, cujo belo altar antigo, esculpido artisticamente em pedra, tinham também coberto com uma construção de madeira e pintura tosca, imitando mármore, o que sempre me fez muita pena.
Todas essas ofensas feitas a Jesus no SS. Sacramento, vi-as aumentadas por numerosos reitores das Igrejas, que não tinham esse sentimento de justiça de repartir pelo menos o que possuíam com o Salvador, presente sobre o Altar, que se entregou por eles à morte e se lhes deu todo inteiro no SS. Sacramento.
Em verdade, mesmo os mais pobres estavam muitas vezes melhor instalados nas suas casas do que o Senhor nas Igrejas. Ai! como esta falta de hospitalidade entristecia Jesus, que se lhes tinha dado como alimento espiritual! Pois não é preciso ser rico para hospedar aquele que recompensa ao cêntuplo o copo de água oferecido a quem tem sede.
Oh! Quanta sede tem ele de nós! Não terá acaso motivo de queixar-se de nós, se o copo estiver sujo e a água também? Por tais negligências vi os fracos escandalizados, o SS. Sacramento profanado, as Igrejas abandonadas, os sacerdotes desprezados e em pouco tempo passou essa negligência também às almas dos fiéis daquelas paróquias: não guardavam mais puro o tabernáculo do coração, para receber nele o Deus vivo, do que o tabernáculo dos altares.
Para agradar e adular os príncipes e grandes deste mundo, para satisfazer-lhes os caprichos e desejos mundanos, vi tais administradores de Igrejas fazer todos os esforços e sacrifícios; mas o Rei do Céu e da Terra estava deitado, como o pobre Lázaro, diante da porta, desejando em vão as migalhas de caridade que ninguém lhe dava. Tinha apenas as chagas que nós lhe fizemos e que lhe lambiam os cães, isto é, os pecadores reincidentes, que, semelhantes a cães, vomitam e depois voltam para comer o vômito.
Se falasse um ano inteiro, não podia contar todas as afrontas feitas a Jesus e que deste modo conheci. Vi os autores dessas afrontas agredirem a Nosso Senhor com diferentes armas, conforme a espécie de seus pecados.
Vi clérigos irreverentes, de todos os séculos, sacerdotes levianos, em pecado, sacrílegos celebrando o Santo Sacrifício e distribuindo a sagrada Eucaristia; vi multidões de comungastes tíbios e indignos. Vi homens numerosos para os quais a fonte de toda a benção, o mistério de Deus vivo, se tornara uma palavra de maldição, fórmula de maldição; guerreiros furiosos e servidores do demônio, profanando os vasos sagrados e jogando fora as hóstias sagradas ou maltratando-as horrivelmente e até abusando do Sumo Bem, por uma hedionda e diabólica idolatria.
Ao lado destes brutais e violentos, vi inúmeras outras impiedades, menos grosseiras, mas do mesmo modo abomináveis. Vi muitas pessoas, seduzidas por mau exemplo e ensino perfilo, perderem a fé na presença real de Jesus na Eucaristia e deixarem de adorar nela humildemente seu Salvador.
Vi nestas multidões grande números de professores indignos, que se tornaram heresiarcas; lutavam a princípio uns contra os outros e depois se uniam, para atacar furiosamente a Jesus no SS. Sacramento, na sua igreja. Vi um grupo numeroso destes heresiarcas negar e insultar o sacerdócio da Igreja, contestar e negar a presença de Jesus Cristo neste mistério à Igreja e havê-lo esta guardado fielmente; pela sedução Lhe arrancaram do coração um número imenso de homens, pelos quais tinha derramado o seu sangue.
Ai! Era um aspecto horrível: pois vi a Igreja como corpo de Jesus, que reunira, pela dolorosa Paixão, os membros separados e dispersos; vi todas aquelas comunidades e famílias e todos os seus descendentes, separados da Igreja, serem arrancados, como grandes pedaços de carne, do corpo vivo de Jesus, ferindo e despedaçando-O dolorosamente.
Ai! Ele os seguia com olhares tão tristes, lastimando-lhes a perdição. Ele, que no SS. Sacramento se nos tinha dado como alimento, para unir ao corpo da Igreja, sua Esposa, os homens separados e dispersos, viu-se despedaçado e dividido nesse mesmo corpo de sua Esposa, pelos maus frutos da árvore da discórdia.
A mesa da união no SS. Sacramento, suas mais sublime obra de amor, na qual quis ficar eternamente com os homens, tornara-se, pela malícia dos falsos doutores, fonte de separação. No lugar mais conveniente e salutar para união de muitos, na mesa sagrada, onde o próprio Deus vivo é o alimento das almas, deviam os seus filhos separar-se dos infiéis e hereges, para não se tornarem réus de pecado alheio.
Vi que deste modo povos inteiros se Lhe arrancaram do coração, privando-se do tesouro de todas as graças, que Ele deixara à Igreja. Era horrível vê-los separarem-se, só poucos no princípio, mas esse se voltaram como povos grandes, em hostilidade uns contra os outros, por estarem separados no Santíssimo.
Por fim vi todos que estavam separados da Igreja, embrutecidos e enfurecidos, em descrença, superstição, heresia, orgulho e falsa filosofia mundana, unidos em grandes exércitos, atacando e devastando a Igreja e no meio deles, a serpente, instigando e estrangulando-os. Ai! Era como se Jesus se visse e sentisse despedaçado em inúmeras fibras, das mais delicadas.
O Senhor viu e sentiu nessas angústias toda a árvore venenosa do cisma, com todos os respectivos ramos e frutos, que continuam a dividir-se até o fim do mundo, quando o trigo será recolhido ao celeiro e a palha será lançada ao fogo.
Esta horrorosa visão era tão terrível e hedionda, que meu Esposo celeste me apareceu e, colocando a mão misericordiosa sobre o meu peito, disse: “Ninguém viu isto ainda e o teu coração se despedaçaria de dor, se eu não o sustentasse”.
Vi então o sangue rolando, em largas e escuras gotas, sobre o pálido semblante do Senhor; o seu cabelo, em geral liso e repartido no meio da cabeça, estava conglutinado com o sangue, eriçado e desgrenhado, a barba ensangüentada e em desordem.
Foi depois da última visão, na qual os exércitos inimigos O despedaçaram, que saiu da caverna, quase fugindo e voltou para junto dos discípulos. Mas não tinha o andar firme; andava como um homem coberto de feridas e curvado sob um fardo pesado, como quem tropeça a cada passo. Chegando junto dos três Apóstolos, viu que não se tinham deitado para dormir, como da primeira vez; estavam sentados, as cabeças veladas e apoiadas sobre os joelhos, posição em que vejo muitas vezes o povo daquele país, quando estão de luto ou querem rezar.
Adormeceram vencidos pela tristeza, medo e fadiga. Quando Jesus se aproximou, tremendo e gemendo, acordaram, mas ao vê-lo diante de si, na claridade do luar, com o peito encolhido, o semblante pálido e ensangüentado, o cabelo desgrenhado, fitando-os com olhar triste, não O reconheceram por alguns momentos, com a vista fatigada, pois estava indizivelmente desfigurado.
Jesus, porém, estendeu os braços; então se levantaram depressa e, segurando-O sob os braços, ampararam-nO carinhosamente. Disse-lhes que no dia seguinte os inimigos O matariam; dai a uma hora O prenderiam, conduziriam ao tribunal, seria maltratado, insultado, açoitado e finalmente entregue à morte mais cruel.
Com grande tristeza lhes disse tudo o que teria de sofrer até a tarde do dia seguinte e pediu que consolassem sua Mãe e Madalena. Esteve assim diante deles por alguns minutos, falando-lhes; mas não responderam, porque não sabiam o que dizer, de tal modo as palavras e o aspecto do Mestre os tinha assustado; pensavam até que estivesse em delírio.
Quando, porém, quis voltar à gruta, não tinha mais força para andar; vi que João e Tiago O conduziram e, depois de ter entrado na gruta, voltaram. Eram cerca de onze horas e um quarto.
Durante essas angústias de Jesus, vi a SS. Virgem também cheia de tristeza e angústia, em casa de Maria, mãe de Marcos. Estava com Madalena e a mãe de Marcos, num jardim ao lado da casa; prostrara-se de joelhos, sobre uma pedra. Diversas vezes perdeu os sentidos exteriormente, pois viu grande parte dos tormentos de Jesus. Já enviara mensageiros a Jesus, para ter noticias, mas não podendo, na sua ânsia, esperar-lhe a volta, saiu com Madalena e Salomé para o vale de Josafá.
Ela andava velada e estendia muitas vezes as mãos para o monte das Oliveiras, porque via em espírito, Jesus banhado em suor de sangue e ela parecia, com as mãos estendidas, querer enxugar-lhe o rosto. Vi Jesus, comovido por esses caridosos impulsos da alma de sua Mãe, olhar para a direção em que Maria se achava, como para pedir socorro. Vi esses movimentos de compaixão em forma de raios luminosos, que emanavam de um para o outro.
O Senhor pensou também em Madalena, percebeu-lhe comovido a dor e olhou também para ela; por isso mandou também os discípulos que a consolassem, pois sabia que, depois do amor de sua Mãe, o de Madalena era o mais forte e tinha também visto o que ela teria de sofrer por Ele e que nunca mais O ofenderia pelo pecado.
Neste momento, cerca de 11 horas e 15 minutos, voltaram os oito Apóstolos à cabana de folhagem, no horto de Getsêmani; ali conversaram ainda e finalmente adormeceram. Estavam muito assustados e desanimados, em veementes tentações. Cada um tinha procurado um lugar para esconder-se e perguntaram uns aos outros inquietamente: “Que faremos, se o matarem? Abandonamos tudo quanto tínhamos e ficamos pobres e expostos ao escárnio do mundo. Fiamo-nos inteiramente nEle e ei-Lo agora tão impotente e abatido, que não podemos mais procurar nEle consolação”.
Os outros discípulos, porém, erraram no princípio de um lado para outro e depois terem ouvidos várias notícias das últimas palavras assustadoras de Jesus, retiraram-se, pela maior parte, para Betfagé.
Visões consoladoras; Anjos confortam Jesus.
Vi Jesus rezando ainda na gruta e lutando contra a repugnância da natureza humana ao sofrimento. Estava exausto de fadiga e abatido e disse: “Meu Pai, se é a vossa vontade, afastai de mim este cálice. Mas faça-se a vossa vontade e não a minha”.
Então se abriu o abismo diante dEle e apareceram-Lhe os primeiros degraus, do Limbo, como na extremidade de uma vista luminosa. Viu Adão e Eva, os patriarcas, os profetas, os justos, os parentes de sua Mãe e João Batista, esperando-Lhe a vinda, no mundo inferior, como um desejo tão violento, que essa visa Lhe fortificou e reanimou o coração amoroso. Pela sua morte devia abrir o Céu a esses cativos; devia tira-los da cadeia onde languesciam à espera.
Tendo visto, com profunda emoção, esses Santos dos tempos antigos, apresentaram-Lhe os Anjos, todas as multidões de bem-aventurados do futuro que, juntando seus combates aos méritos da Paixão do Cristo, deviam unir-se por Ele ao Pai Celeste. Era uma visão indizivelmente bela e consoladora. Todos agrupados, segundo a época, classe e dignidade, passaram diante do Senhor, vestidos dos seus sofrimentos e obras.
Viu a salvação e santificação sair, em ondas inesgotáveis, da fonte da Redenção, aberta pela sua morte. Os Apóstolos, os discípulos, as virgens e santas mulheres, todos os mártires, confessores e eremitas, papas e bispos, grupos numerosos de religiosos, em uma palavra: um exército inteiro de bem-aventurados apresentou-se-Lhe à vista.
Todos traziam na cabeça coroas triunfais e as coroas variavam de forma, de cor, de perfume e de virtude, conforme a diferença dos respectivos sofrimentos, combates e vitórias que lhes tinham proporcionado a glória eterna. Toda a vida e todos os atos, todos os méritos e toda força, assim como toda glória e todo o triunfo dos Santos provinham unicamente de sua união aos méritos de Jesus Cristo.
A ação e influência recíproca que todos estes Santos exerciam uns sobre os outros, a maneira por que hauriam a graça de uma única fonte, do santo Sacramento e da Paixão do Senhor, apresentava um espetáculo singularmente tocante e maravilhoso. Nada parecia casual neles; as obras, o martírio, as vitórias, a aparência e os vestuários: tudo, apesar de bem diferente, se fundia numa harmonia e unidade infinitas; e essa unidade na variedade era produzida pelos raios de um único sol, pela Paixão de Nosso Senhor, do Verbo feito carne, o qual era a vida, a luz dos homens, que ilumina as trevas, as quais não o compreenderam.
Foi a comunidade dos futuros Santos que passou diante da alma do Salvador, que se achava colocado entre o desejo dos patriarcas e o cortejo triunfal dos bem-aventurados futuros; esses dois grupos unindo-se e completando-se de certo modo, cercavam o coração do Redentor, cheio de amor, como uma coroa de vitória. Essa visão, inexprimivelmente tocante, deu à alma de Jesus um pouco de consolação e força.
Ah! Ele amava tanto seus irmãos e suas criaturas, que teria aceito de boa vontade todos os sofrimentos, aos quais se entregaria pela redenção até de uma só alma. Como essas visões se referissem ao futuro, pairavam em certa altura.
Mas essas imagens consoladoras desapareceram e os Anjos mostraram-lhe a Paixão, mais perto da terra, porque já estava próximo. Estes Anjos eram muito numerosos.
Vi todas as cenas apresentadas muito distintamente diante dele, desde o beijo de Judas, até à última palavra na Cruz; vi lá tudo o que vejo nas minhas meditações da Paixão, a traição de Judas, a fuga dos discípulos, os insultos perante Anás e Caifás, a negação de Pedro, o tribunal de Pilatos, a decisão diante de Herodes, a flagelação, a coroação de espinhos, a condenação à morte, o transporte da cruz, o encontro com a Virgem SS. no caminho do Calvário, o desmaio, os insultos de que os carrascos O cobriram, o véu de Verônica, a crucifixão, o escárnio dos fariseus, as dores de Maria, de Madalena e João, a lançada no lado, em uma palavra, tudo passou diante da alma de Jesus, com as menores circunstâncias.
Vi como o Senhor, na sua angústia, percebia todos os gestos, entendia todas as palavras, percebia tudo que se passava nas almas. Aceitou tudo voluntariamente, sujeitou-se a tudo por amor dos homens. O que mais O entristecia era ver-se pregado na Cruz num estado de nudez completa, para explicar a impudicícia dos homens: implorava com instância a graça de livrar-se daquele opróbrio e que pelo menos Lhe fosse concedido um pano para cingir os rins; e vi ser atendido, não pelos carrascos, mas por um homem compassivo. Jesus viu e sentiu profundamente a dor da Virgem SS., que pela união interior aos sofrimentos do seu Divino Filho, caíra sem sentidos nos braços das amigas, no Vale de Josafá.
No fim das visões da Paixão, Jesus caiu na Terra, como um moribundo; os Anjos e as visões da Paixão desapareceram; o suor do sangue brotava mais abundante; vi-O escoar-se através da veste amarela encostado ao corpo. A mais profunda escuridão reinava na caverna. Vi então um Anjo descendo para junto de Jesus: era maior, mais distinto e mais semelhante ao homem do que os eu vira antes.
Estava vestido como um sacerdote, de uma longa veste flutuante, ornada de franjas e trazia na mão, diante de si, um pequeno vaso, da forma do cálice da última Ceia. Na abertura deste cálice se via um pequeno corpo oval, do tamanho de uma fava, que espargia uma luz avermelhada. O Anjo estendeu-Lhe a mão direita e pairando diante de Jesus, levantou-se; pôs-lhe na boca aquele alimento misterioso e fê-Lo beber do pequeno cálice luminoso. Depois desapareceu.
Tendo aceitado o cálice dos sofrimentos e recebido nova força. Jesus ficou ainda alguns minutos na gruta, mergulhado em meditação tranqüila e dando graças ao Pai Celeste. Estava ainda aflito, mas confortado de modo sobrenatural, a ponto de poder andar para junto dos discípulos sem cambalear e sem se curvar sob o peso da dor. Estava ainda pálido e desfigurado, mas o passo era firme e decidido. Enxugara o rosto com um sudário e pusera em ordem os cabelos, que lhe pendiam sobre os ombros, úmidos de suor e conglutinados de sangue.
Quando saiu da gruta, vi a lua como dantes, com a mancha singular que formava o centro e a esfera que a cercava, mas a claridade dela e das estrelas era diferente da que tinham dantes, por ocasião das grandes angústias do Senhor. A luz era agora mais natural.
Quando Jesus chegou junto aos discípulos, estavam estes deitados, como na primeira vez, encostados ao muro do aterro, com a cabeça velada e dormiam. O Senhor disse-lhes que não era tempo de dormir, mas que deviam velar e orar. “Esta é a hora em que o Filho do homem será entregue nas mãos dos pecadores, disse, levantai-vos e vamos: o traidor está perto; melhor lhe seria que não tivesse nascido”.
Os Apóstolos levantaram-se assustados e olharam em roda de si inquietos. Depois de um pouco tranqüilo, Pedro disse calorosamente: “Mestre, vou chamar os outros, para vos defendermos”. Mas Jesus mostrou-lhes a alguma distância, no vale, do outro lado da torrente de Cedron, uma tropa de homens armados que se aproximavam com archotes e disse-lhes que um deles O tinha traído. Os Apóstolos julgavam-no impossível.
O Mestre falou-lhes ainda com calma, recomendando-lhes de novo que consolassem a Virgem SS. e disse: “Vamos ao encontro deles. Vou entregar-me sem resistência nas mãos dos meus inimigos”. Então saiu do horto das Oliveiras, com os três Apóstolos e foi ao encontro dos soldados, no caminho que ficava entre o jardim e o horto de Getsêmani.
Quando a SS. Virgem voltou a si, nos braços de Madalena e Salomé, alguns discípulos, que viram aproximar-se os soldados, vieram a ela e reconduziram-na à casa de Maria, mãe de Marcos. Os soldados tornaram um caminho mais curto do que o que Jesus tinha seguido, vindo do Cenáculo.
A gruta onde Jesus tinha rezado nessa noite, não era aquela na qual estava acostumado a rezar, no monte das Oliveiras, ia geralmente a uma caverna mais afastada, onde, depois de ter maldito a figueira infrutífera, rezara numa grande aflição, com os braços estendidos e apoiados sobre um rochedo.
Os traços do corpo e das mãos ficaram-Lhe impressos na pedra e foram mais tarde venerados; mas não se sabia então em que ocasião o prodígio fora feito. Vi diversas vezes semelhantes impressões feitas em pedras, seja por profetas do Velho Testamento, seja por Jesus, Maria ou algum dos Apóstolos; vi também as do corpo de Santa Catarina de Alexandria, no monte Sinai.
Essas impressões não parecem profundas, mas semelhantes às que ficam, pondo-se a mão sobre uma massa consistente.
Judas e sua tropa.
Judas não esperava que a traição tivesse as conseqüências que se lhe seguiram. Queria ganhar a recompensa prometida e mostrar-se agradável aos fariseus, entregando-lhes Jesus, mas não pensara no resultado, na condenação e crucifixão do Mestre; não ia tão longe em seus desígnios.
Era só o dinheiro que lhe preocupava o espírito e já havia muito tempo travara relações com alguns fariseus e Saduceus astutos que, com lisonjas, o incitavam à traição. Estava aborrecido da vida fatigante, errante e perseguida, que levavam os Apóstolos.
Nos últimos meses furtara continuamente as esmolas, de que, era depositário e a cobiça, irritada pela liberalidade de Madalena quando derramou perfumes sobre Jesus, impeliu-o finalmente ao crime. Tinha sempre esperado um reino temporal de Jesus e uma posição brilhante e lucrativa nesse reino; como, porém, não o visse aparecer, procurava amontoar fortuna.
Via crescerem as fadigas e perseguições e pretendia manter boas relações com os poderosos inimigos de Jesus, antes de chegar o fim; pois via que Jesus não se tornaria rei, enquanto que a dignidade do Sumo Sacerdote e a importância dos seus confidentes lhe produziam viva impressão no espírito.
Aproximava-se cada vez mais dos agentes fariseus, que o lisonjeavam incessantemente, dizendo-lhe, num tom de grande certeza, que dentro de pouco tempo dariam cabo de Jesus. Ainda recentemente tinham vindo procurá-lo diversas vezes em Betânia. O infeliz entregava-se cada vez mais a esses pensamentos criminosos e multiplicava nos últimos dias as diligências para que os príncipes dos sacerdotes se decidissem a agir.
Estes ainda não queriam começar e tratavam-se com visível desprezo. Diziam que não havia tempo suficiente antes da festa e que qualquer tentativa causaria apenas desordem e tumulto durante a festa. Somente o sinédrio deu atenção ás propostas do traidor.
Depois da recepção sacrílega do SS. Sacramento, Satanás apoderou-se totalmente de Judas, que saiu decidido a praticar o crime. Primeiro procurou os negociadores, que sempre o tinham lisonjeado até ali e que receberam ainda com amizade fingida. Foi ter com outros, entre os quais Caifás e Anás; este último, porém, usou para com ele de um tom altivo e sarcástico. Estavam hesitantes, não contavam com o êxito, porque não tinham confiança em Judas.
Vi o império infernal dividido: Satanás queria o crime dos Judeus, desejava a morte de Jesus, do santo Mestre que fizeram tantas conversões, do Justo a quem tanto odiava; mas sentia também não sei que medo interno da morte dessa inocente vítima, que não queria subtrair-se aos perseguidores; invejava-O por sofrer inocentemente. Vi-O assim excitar de um lado o ódio e furor dos inimigos de Jesus e de outro lado insinuar a alguns destes que Judas era um patife, um miserável, que não se podia fazer o julgamento antes da festa, nem reunir número suficiente de testemunhas contra Jesus.
No sinédrio houve longa discussão sobre o que se devia fazer e, entre outras coisas, perguntaram a Judas: “Podemos prendê-Lo? Não terá homens armados consigo?” E o traidor respondeu: “Não, está só com os onze discípulos; está desanimado e os onze são homens medrosos”.
Também lhes disse que era preciso apoderar-se de Jesus nessa ocasião ou nunca, que não podia esperar mais tempo para entregá-Lo, porque não voltaria esperar mais tempo para entregá-Lo, porque não voltaria para junto do Mestre, pois, alguns dias antes, os outros discípulos e Jesus mesmo haviam evidentemente suspeitado dele; pareciam pressentir-lhe os ardis e sem dúvida o matariam, se voltasse para o meio deles. Disse-lhes ainda que, se não O prendessem agora, escaparia, voltando com um exército de partidários, para fazer proclamar-se rei.
Essas ameaças de Judas fizeram efeito. Deram-lhe ouvido ao conselho maldoso e ele recebeu o preço da traição, os trinta dinheiros. Essas moedas tinham a forma de uma língua, estavam furadas na parte arredondada e enfiadas, por meio de argolas, numa espécie de corrente; traziam certos cunhos.
Judas, ofendido pelo contínuo desprezo e a desconfiança que lhe manifestavam, sentiu-se impelido pelo orgulho a restituir-lhes esse dinheiro ou oferecê-lo ao Templo, para que o tomassem por um homem justo e desinteressado.
Mas recusaram-no, porque era preço de sangue, que não se podia oferecer ao Templo.
Judas viu quanto o desprezavam e sentiu-o profundamente. Não tinha esperado provar os frutos amargos da traição já antes de ter cometido; mas de tal modo que se havia comprometido com aqueles homens, que estava nas suas mãos e não podia mais se livrar deles. Observavam-no de muito perto e não o deixariam sair antes de ter explicado o caminho a seguir, para apoderar-se de Jesus.
Três fariseus acompanhavam-no, quando desceu a uma sala, onde se achavam os guardas do Templo, que não eram todos judeus, mas gente de todas as nações. Quando tudo estava combinado e reunido o número de soldados necessários, Judas correu primeiro ao Cenáculo, acompanhado de um servo dos fariseus, para lhes dar notícia, se Jesus ainda estava ali, por causa da facilidade de prendê-lo lá, ocupando as portas; devia mandar avisar-lhe por um mensageiro.
Um pouco antes de Judas receber o prêmio da traição, um dos fariseus saíra, para mandar sete escravos buscar madeira, para preparar a Cruz de Cristo, no caso que fosse condenado, porque no dia seguinte não teriam mais tempo, pois começava a festa da Páscoa.
Andaram cerca de um quarto de hora, para chegar ao lugar onde queriam buscar o madeiro da cruz; estava ali ao longo de um muro alto e comprido, junto com muitas outras madeiras, destinadas a construções do Templo; carregaram-no para um lugar atrás do tribunal de Caifás, afim de prepará-lo. A árvore da cruz crescera antigamente perto da torrente Cedron, no valo, de Josafá; mais tarde caíra através do ribeiro e servia de ponte.
Quando Neemias escondeu o fogo santo e os vasos sagrados na piscina Betesda, empregou também este tronco para cobri-los, junto com outra madeira; tirando-o depois de novo, jogaram-no para o lado, com outra madeira de construção.
Em parte foi para zombar de Jesus, em parte aparentemente por acaso, mas em verdade unicamente por disposição da Divina Providência, que a Cruz foi construída de uma forma especial. Sem contar a tábua do título, a cruz foi feita de cinco diferentes espécies de madeiras. Tenho visto muitas coisas a respeito da cruz, diversos acontecimentos e significações, mas tenho esquecido tudo, fora o que acabo de contar.
Judas, no entanto, voltou e disse que Jesus não estava mais no Cenáculo, mas havia de estar certamente no monte das Oliveiras, num lugar onde costumava rezar. Insistiu então que mandassem com eles somente uma pequena tropa, para que os discípulos, que espiavam por toda a parte, não suspeitassem e provocassem uma insurreição.
Trezentos soldados deviam ocupar as portas e ruas de Ofel, bairro ao sul do Templo e o vale Milo, até a casa de Anás, no monte de Sião, para poder mandar reforço à tropa na volta, caso o pedisse; pois em Ophel todo o povo baixo aderia a Jesus.
O indigno traidor disse-lhes ainda que tomassem muito cuidado, para Jesus não lhes escapar, mencionando que este já muitas vezes se tinha tornado invisível, por meio de artifícios misteriosos, fugindo assim aos companheiros na montanha. Fez-lhes também a proposta de amarrá-lo com uma corrente e servir-se de certas práticas mágicas, para que Jesus não rompesse as correntes. Os Judeus, porém, recusaram desdenhosamente esse conselho, dizendo: “Não nos podemos impor nada; uma vez que esteja em nossas mãos, está seguro”.
Judas combinou com a tropa entrar ele primeiro no horto, para beijar e saudar Jesus, como se voltasse do negócio, como amigo e discípulo; depois deviam entrar os soldados, para prender o Mestre. Procederia como se os soldados tivessem chegado na mesma hora, só por acaso; fugiria depois, como os outros discípulos, fingindo não saber de nada.
Talvez pensasse também que houvesse um tumulto, no qual os Apóstolos se defenderiam e Jesus fugiria, como fizera já diversas vezes. Assim pensava nos momentos de raiva, sentindo-se ofendido pelo desprezo e desconfiança dos inimigos de Jesus, mas não porque se arrependesse da negra ação ou por ter compaixão de Jesus; pois tinha-se entregue inteiramente a Satanás.
Também não queria consentir que os soldados, entrando depois, trouxessem algemas e cordas, nem que o acompanhassem, homens de má reputação. Satisfizeram-lhe aparentemente os desejos, mas procederam como julgavam dever proceder com um traidor em quem não se pode fiar e que se joga fora, depois de ter feito o serviço.
Foram dadas ordens expressas aos soldados de vigiar bem Judas e não o deixar afastar-se antes de ter prendido e amarrado Jesus; pois, como já tivesse recebido a remuneração, era de recear-se que o patife fugisse com o dinheiro e assim não poderiam prender Jesus de noite ou prenderiam outro em seu lugar, de modo que resultariam desta empresa apenas tumultos e desordens, no dia da Páscoa.
A tropa escolhida para prender Jesus compunha-se de vinte soldados, alguns da guarda do Templo, os outros soldados de Anás e Caifás. Estavam vestidos quase da mesma forma que os soldados romanos; usavam capacetes e do gibão lhes pendiam correias em redor da cintura, como tinham também os soldados romanos.
Distinguiam-se desses principalmente pela barba, pois os romanos em Jerusalém usavam só suíças, os lábios e queixo tinham imberbes. Todos os vinte soldados estavam armados de espadas, alguns tinham apenas lanças. Levavam consigo tochas e braseiras que, fixas sobre paus, serviam de lanternas; mas ao chegar, traziam acesa só uma das lanternas.
Os judeus queriam mandar antes uma tropa mais numerosa com Judas, mas abandonaram esse plano, concordando com ele, objeção do traidor, de que do monte das Oliveiras se podia ver todo o vale e desse modo uma tropa maior não poderia deixar de ser vista. Ficou, portanto, a maior parte em Ophel; mandaram também sentinelas a vários atalhos e diversos lugares da cidade, para impedir tumultos ou tentativas de salvar Jesus.
Judas marchou á frente dos vinte soldados; mandaram, porém, segui-lo a certa distancia quatro soldados de má reputação, gente ordinária, que levavam cordas e algemas. Alguns passos atrás desses, seguiam aqueles seis agentes, com os quais Judas travara relações há muito tempo. Havia entre eles um sacerdote de alta posição e confidente de Anás, outro de Caifás; além desses havia dois agentes fariseus e dois saduceus,que eram também herodianos. Todos, porém, eram espiões, hipócritas, aduladores interesseiros de Anás e Caifás e inimigos ocultos de Jesus, dos mais maliciosos.
Os vinte soldados seguiram ao lado de Judas, até chegarem ao lugar onde o caminho passa entre Getsêmani e o horto das Oliveiras; aí não quiseram deixá-lo avançar sozinho e começaram a discutir com ele, num tom grosseiro e impertinente.
A prisão do Senhor.
Quando Jesus saiu do horto, no caminho entre Getsêmani e o horto das Oliveiras, apareceu na entrada desse caminho, à distância de vinte passos, Judas com os soldados, que ainda estavam discutindo. Pois Judas queria, separado dos soldados, aproximar-se de Jesus, como amigo; eles deviam entrar como por acaso, aparentemente sem Ele saber; mas os soldados seguraram-no, dizendo: “Assim não camarada, não nos fugirás antes de termos preso a Galileu”.
Avistando depois os oito Apóstolos, que ao ouvir, o barulho se aproximaram, chamaram os quatro soldados para reforçar-se. Judas, porém, não consentiu que esses o acompanhassem e discutiu veementemente com eles. Quando Jesus e os três Apóstolos viram, à luz da lanterna, esse tropel ruidoso, com as armas nas mãos, Pedro quis atacá-los à força e disse: “Senhor, os oito de Getsêmani estão também ali adiante: Vamos atacar esses soldados”. Jesus, porém, mandou-o ficar quieto e retirou-se alguns passos para além do caminho, onde havia um lugar coberto de relva. Judas, vendo o seu plano transtornado, enraiveceu-se.
Quatro dos discípulos saíram do horto Getsêmani, perguntando o que havia acontecido. Judas começou a conversar, querendo sair do embaraço por meio de mentiras, mas os soldados não o deixaram afastar-se. Aqueles quatro eram Tiago, o Menor, Filipe, Tomé e Natanael; este e um dos filhos do velho Simeão e alguns outros tinham vindo para junto dos oito Apóstolos, em Getsêmani, uns enviados pelos amigos de Jesus, para ter notícias dEle, outros impelidos pela inquietação e curiosidade. Além desses quatro, andavam também os outros discípulos pelas vizinhanças, espiando de longe e sempre prontos a fugir.
Jesus, porém, aproximou-se alguns passos da tropa e disse em voz alta e clara: “A quem estais procurando?” Os chefes dos soldados responderam: “Jesus de Nazaré”. E Jesus disse: “Sou eu”. Apenas tinha dito estas palavras, caíram os soldados uns sobre os outros, como que atacados de convulsões.
Judas, que estava perto, ficou ainda mais desconcertado no seu plano; e pareceu querer aproximar-se de Jesus, mas o Senhor levantou a mão, dizendo: “Amigo, para que vieste?” Judas disse, cheio de confusão, alguma coisa sobre negócio realizado. Jesus, porém, disse-lhe mais ou menos as seguintes palavras: “Oh! Melhor te fora não ter nascido”. Mas não me lembro mais das palavras exatas.
No entretanto tinham-se levantado os soldados e aproximaram-se de Jesus e dos seus, esperando o sinal do traidor: que beijasse a Jesus. Pedro, porém, e os outros discípulos, cercaram Judas com ameaças, chamando-o de ladrão e traidor. O infeliz quis livrar-se deles por meio de mentiras, mas não conseguiu justificar-se, pois os soldados defenderam-no contra os discípulos, dando assim testemunho contra ele.
Jesus, porém, disse mais uma vez: “A quem procurais?” Virando-se para Ele, responderam de novo: “Jesus de Nazaré”. Então disse?: “Sou Eu; já vos tenho dito que sou Eu; se, pois, procurais a Mim, deixai aqueles.” A palavra “Sou Eu”, caíram os soldados de novo com convulsões e contorções, como as têm os epiléticos e Judas foi de novo cercado pelos Apóstolos, que estavam extremamente furiosos contra ele. Jesus disse aos soldados: “Levantai-vos.”
Levantaram-se assustados e como os Apóstolos ainda discutissem com Judas e também se dirigissem contra os soldados, estes atacaram os Apóstolos, livrando-lhes Judas das mãos e impelindo-o com ameaças a dar o sinal combinado, pois tinham ordem de prender só aquele a quem beijasse.
Judas aproximou-se então de Jesus, abraçou e beijou-O, dizendo, “Deus te salve, Mestre.” E Jesus disse: “Judas é com um beijo que atraiçoas o Filho do Homem?”
Então os soldados cercaram Jesus e os soldados, avançando, puseram mãos em Nosso Senhor. Judas quis fugir, mas os Apóstolos detiveram-no e atacaram os soldados, gritando: “Mestre, feriremos com as espadas?” Pedro, porém, mais excitado e zeloso, puxou da espada e golpeou Malcho, criado do Sumo Sacerdote, que o quis repelir e cortou-lhe um pedaço da orelha, de modo que Malcho caiu por terra, aumentando deste modo ainda a confusão.
A situação nesse momento do veemente ataque de Pedro era a seguinte: Jesus preso pelos soldados, que O queriam amarrar; cercavam-nO, num largo circulo, os soldados, um dos quais, Malcho, foi prostrado por Pedro.
Outros soldados estava ocupados em repelir os discípulos, que se aproximaram ou em perseguir outros que fugiram. Quatro dos discípulos andavam pelo lado do monte e só se avistavam de vez em quando, a grande distância. Os soldados estavam em parte um pouco desanimados pelas quedas, em parte não ousavam perseguir seriamente os discípulos, para não enfraquecerem demasiadamente a tropa que cercava Jesus.
Judas, que quis fugir logo depois do beijo traidor, foi detido a certa distancia por alguns discípulos, que o cobriram de injúrias. Mas os seis agentes, que só então se aproximaram, livraram-no das mãos dos cristãos indignados. Os quatro soldados, em roda de Jesus, estavam ocupados com as cordas e algemas, seguravam-nO e iam amarrá-lO.
Tal era a situação, quando Pedro golpeou Malcho e Jesus ao mesmo tempo disse: “Pedro! Embainha a tua espada, pois quem se serve da espada, perecerá pela espada. Ou pensas que eu não podia pedir a meu Pai que me mandasse mais de doze legiões de Anjos? Então não devo beber o cálice que meu Pai me apresentou? Como se cumpririam as Escrituras se assim não se fizesse?”
Disse aos soldados: “Deixai-me curar este homem”. Aproximou-se de Malcho, tocou-lhe na orelha, rezando e ficou sã. Estavam, porém, em roda os esbirros, os soldados e os seis agentes, que O insultaram, dizendo aos soldados: “Ele tem contrato com o demônio; a orelha por feitiço parecia ferida e por feitiço sarou”.
Então lhes disse Jesus: “Viestes a mim, armados de espadas e paus, a prender-me como um assassino. Todos os dias tenho ensinado no Templo, no meio de vós e não ousastes pôr a mão em mim; mas esta é a vossa hora, a hora das trevas”.
Eles, porém, mandaram amarrá-lO e insultaram-nO, dizendo: “A nós não nos pudeste jogar por terra com teu feitiço”. Do mesmo modo falaram os soldados: “Acabaremos com as tuas práticas de feiticeiro, etc”. Jesus respondeu ainda algumas palavras, mas não sei mais o que foi; os discípulos, porém, fugiram para todos os lados.
Os quatro soldados e os fariseus não tinham caído e portanto também não se tinham levantado, o que sucedeu, como me foi revelado, porque estavam inteiramente nas redes de Satanás, do mesmo modo que Judas, que também não caíra apesar de estar no meio dos soldados; todos os que caíram e se levantaram, converteram-se depois e tornaram-se cristãos.
O cair e levantar era símbolo da conversão. Esses soldados não puseram a mão em Jesus, mas apenas O cercaram: Malcho converteu-se logo depois da cura, de modo que só por causa da disciplina continuou o serviço; já nas horas seguintes, durante a Paixão de Jesus, fazia o papel de mensageiro entre Maria e os outros amigos de Jesus, para dar notícias do que se passava.
Os soldados amarraram Jesus com grande barbaridade e com a brutalidade de carrascos, por entre contínuos insultos e escárnios dos fariseus. Eram pagãos da classe mais baixa e vil; tinham o peito, os braços e joelhos nus; na cintura usavam uma faixa de pano e na parte superior do corpo, gibão sem mangas, ligado nos lados com correias. Eram de estatura baixa, mas fortes e muito ágeis, de cor parda-ruiva, como a dos escravos do Egito.
Amarraram Jesus de uma maneira cruel, com as mãos sobre o peito, prendendo sem compaixão o pulso da mão direita por baixo do cotovelo do braço esquerdo e o pulso da mão esquerda por baixo do cotovelo do braço esquerdo e o pulso da mão esquerda por baixo do cotovelo do braço direito, com cordas novas e duras que lhe cortavam a carne. Passaram-lhe em redor do corpo um cinturão largo, no qual havia pontas de ferro e argolas de fibra ou vime, nas quais amarraram-Lhe uma espécie de colar, no qual havia pontas e outros corpos pontiagudos, para ferir; desse colar saiam, como uma estola, duas correias cruzadas sobre o peito até o cinturão, ao qual foram fortemente apertadas e ligadas. Fixaram ainda, em diversos pontos do cinturão, quatro cordas comprimidas, pelas quais podiam arrastar Jesus para lá e para cá, conforme lhe ditava a maldade. Todas essas cordas e correias eram novas e pareciam preparadas de propósito, desde que começaram a pensar em prender Jesus.
Fonte: Extraído do Livro "Vida, Paixão e Glorificação do Cordeiro de Deus - Anna Catharina Emmerich - Ed. MIR.