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JESUS PERANTE PILATOS E HERODES

 

 

1. Jesus é conduzido a Pilatos

 

Conduziram Jesus, entre muitas crueldades, da casa de Caifás à de Pilatos, através do trecho mais populoso da cidade, que nessa ocasião formigava de peregrinos de toda a parte do país, além de uma multidão de estrangeiros. O cortejo dirigiu-se para o norte, descendo do Monte Sião, atravessando uma rua estreita, no fundo do Templo, até o palácio e o tribunal de Pilatos, que estava situado na esquina noroeste do Templo, defronte do grande Fórum ou mercado.

 

Caifás e Anás e grande número de membros do Supremo Conselho iam em vestes e festivais, à frente do cortejo; atrás dele, alguns servos traziam rolos de escritura. Seguiam-se-lhes muitos outros escribas e judeus, entre eles as falsas testemunhas e os assanhados fariseus, que foram os que mais se empenharam em acusar ao Senhor. A uma pequena distância, seguia nosso bom Senhor Jesus, conduzido pelos soldados com as cordas, cercado de soldados e dos seis agentes que estavam presentes no ato da prisão. De todos os lados afluiu o populacho, unindo-se com gritos e zombarias ao cortejo; ao longo de todo o caminho esperavam numerosos grupos de gente de povo.

 

Jesus estava vestido apenas de sua túnica, toda suja de escarro e imundície. Do pescoço pendia-Lhe até os joelhos a longa corrente, de largos anéis, que, ao andar, Lhe batia dolorosamente de encontro aos joelhos. Tinha as mãos amarradas como na véspera e quatro soldados conduziam-no pelas cordas, que lhe saiam do cinturão. Estava todo desfigurado pelas crueldades, com que o haviam torturado durante a noite; andava cambaleando, cabelo e barba em desalinho, o rosto pálido, inchado e cheio de manchas escuras, causadas pelos socos. Impeliam-no com pancadas e injúrias.

 

Tinham instigado a muitos do populacho para escarnecê-lo, imitando-lhe a entrada triunfal no Domingo de Ramos. Aclamavam-no com todos os títulos de rei, em tom de mofa (gozação), jogavam-lhe diante dos pés pedras, pedaços de madeira, paus, trapos sujos e zombavam, em versos e motejos, de sua entrada festiva. Os soldados conduziam-no aos arrancos, sobre os obstáculos jogados no caminho; era uma crueldade sem fim.

 

Não muito longe da casa de Caifás estava a dolorosa e santa Mãe de Jesus, com Madalena e João, encostados ao canto de um edifício, esperando a aproximação do cortejo. A alma de Maria estava sempre com Jesus, mas quando podia ficar também corporalmente perto dELe, não lhe dava descanso o amor, impelindo-a a seguir-Lhe o caminho e as pegadas. Depois da visita noturna ao tribunal de Caifás, ficara só pouco tempo no Cenáculo, entregue à muda dor; pois, quando Jesus foi tirado do cárcere, de madrugada, para ser apresentado ao tribunal, a Virgem SS. se levantou, cobriu-se com o manto e véu e saindo, disse a João e Madalena: “Sigamos meu Filho à casa de Pilatos, quero vê-lo com meus olhos”. Dando uma volta, chegaram assim em frente do cortejo; a SS. Virgem parara neste lugar e os outros com ela.

 

A santa Mãe de Jesus sabia bem o que era feito do divino Filho, que Lhe estava sempre ante os olhos da alma; mas com o olhar interior não O podia ver tão desfigurado e maltratado como na realidade estava, pela maldade e crueldade dos homens. De fato via-Lhe sempre os horríveis sofrimentos, mais inteiramente penetrados pela luz da santidade, do amor e da paciência, da vontade que se oferecia vítima pelos homens. Mas nesse momento se lhe apresentou à vista a realidade terrível e ignominiosa. Passaram diante dela os orgulhosos e assanhados inimigos de Jesus, os sumos sacerdotes do verdadeiro Deus, nas vestes santas de gala; passaram com a intenção deicida, representantes da malícia, mentira e maldição.

 

Os sacerdotes de Deus haviam-se tornado sacerdotes de Satanás. Que aspecto horrível! Depois o tumulto e a alegria dos judeus, todos os perjuros inimigos e acusadores e afinal Jesus, Filho de Deus e do Homem, seu filho, horrivelmente desfigurado e maltratado, amarrado, batido, empurrado, cambaleando mais do que andando, arrastado pelas cordas por cruéis carrascos, no meio de uma nuvem de injúrias e maldições. Aí, se ele não fosse o mais pobrezinho, o mais desamparado, o único que se conservava calmo, a rezar no íntimo do coração, cheio de amor, no meio dessa tempestade do inferno desencadeado, a angustiada Mãe não O teria reconhecido, naquele estado, horrivelmente desfigurado.

 

Quando se aproximou, vestido da túnica tão suja, a Virgem Santíssima exclamou, soluçando: “Ai de mim! É esse meu filho? Ai! É mesmo meu filho, oh! Jesus, meu Jesus!” O cortejo passou-lhe em frente; o Senhor volveu a cabeça para aquele lado, lançando um olhar comovente à sua Mãe e ela perdeu os sentidos. João e Madalena levaram-na dali, mas logo que voltou a si, fez-se conduzir por João ao palácio de Pilatos.

        

Jesus tinha de suportar, também nesse caminho, que os amigos nos abandonam na desgraça; pois os habitantes de Ofel estavam todos reunidos num certo lugar do caminho e quando viram Jesus tão humilhado e desfigurado, entre os soldados, levado com injúrias e maus tratos, ficaram também abalados na fé; não podiam imaginar o rei, o profeta, o Messias, o Filho de Deus em tão miserável estado. Os fariseus, ao passar, ainda zombaram deles, por causa da afeição que dedicavam a Jesus: “Eis o vosso rei, saudai-O; agora deixais pender a cabeça, agora que Ele vai para a coroação e dentro em pouco subirá ao trono! Acabaram-se-Lhe os milagres, o sumo sacerdote deu-Lhe cabo do feitiço, etc”.

 

Aquela boa gente, que vira tantas curas milagrosas e recebera tantas graças de Jesus, ficou abalada na fé, pelo horrível espetáculo que lhe apresentavam as pessoas mais santas do país, o sumo sacerdote e o Sinédrio. Os melhores elementos retiraram-se duvidosos, os piores juntaram-se ao cortejo como podiam; pois a passagem em várias ruas estava impedida por guardas dos fariseus, para evitar qualquer tumulto.

 

 

2. O palácio de Pilatos e os arredores.

 

Ao pé do ângulo noroeste do monte do Templo está situado o palácio do governador romano, Pilatos, em lugar bastante alto; sobe-se uma escada de mármore de muitos degraus, de onde a vista domina uma vasta praça de mercado, cercada de colunas, sob as quais há acomodações para vendedores. Um posto de guarda de quatro entradas, ao oeste, norte, leste e sul, (onde está o palácio de Pilatos,) interrompem essas arcadas do mercado, o qual também é chamado “fórum” e se estende para oeste, além do ângulo noroeste do monte do Templo; desse ponto do fórum pode-se avistar o Monte Sião.

 

O fórum é um pouco mais elevado de que as ruas circunvizinhas, que sobem um pouco, até chegar às portas de entrada do edifício; em várias partes se encostam as casas das ruas vizinhas ao extremo da coluna que cerca o fórum. O palácio de Pilatos não está contíguo ao fórum, mas é separado desse por um espaçoso pátio. Esse pátio tem como porta, a leste, uma alta arcada, que abre diretamente para a rua que conduz à porta das Ovelhas, pela qual passa quem vai ao monte das Oliveiras; a oeste, tem como porta outra arcada, que abre para oriental da cidade e conduz a Sião, através do bairro de Acra.

 

Da escada do palácio de Pilatos se avista, no norte, através do pátio, o fórum, em cuja entrada há um pórtico e alguns assentos de pedra, virados para o palácio. Os sacerdotes judeus, dirigindo-se ao tribunal de Pilatos, não iam além desses assentos, para não se contaminarem; o limite que não deviam ultrapassar, estava marcado por uma linha traçada sobre o pavimento do pátio. Perto da arcada da porta oriental do palácio, já dentro do recinto do fórum, havia um grande posto de guarda, que, confinando ao norte com o fórum e ao sul com a arcada da porta do pretório de Pilatos, formava uma espécie de vestíbulo ou adro entre o foro e o pretório.

 

Chamava-se pretório a parte do palácio de Pilatos onde ele pronunciava os julgamentos. O posto de guarda era rodeado de colunatas e tinha no centro um pátio sem teto, sob este se achavam os cárceres, nos quais também os dois ladrões estavam presos. Em toda parte se viam lá soldados romanos. Não longe do posto da guarda, perto das arcadas que o cercavam, estava no fórum a coluna de flagelação; havia ainda outras colunas no recinto do mercado: as que estavam mais perto, serviam para infligir castigos corporais, as que estavam mais longe, para amarrar o gado à venda.

 

Em frente ao posto de guarda, mesmo no fórum, se subia por uma escadaria a um estrado, construído de pedras e bem ladrilhado, em que havia assentos de pedra; parecia-se com um tribunal público; desse lugar, que era chamado Gabata, pronunciava Pilatos as sentenças. A escada de mármore do palácio de Pilatos conduzia a um terraço aberto, do qual ele falava aos acusadores, sentados nos bancos de pedra defronte, próximo à entrada do fórum. Falando alto, podia-se fazer entender com facilidade.

 

Atrás do palácio há ainda outro terraço mais elevado, com jardins e um caramanchão. Esses jardins formam a comunicação entre o palácio de Pilatos e a casa da esposa, Cláudia Prócula. Por trás desses edifícios há ainda um fosso, que os separa do monte do Templo; além deste há ainda casas de empregados do Templo.

 

Contígua à parte oriental do palácio de Pilatos, está a casa do conselho do tribunal do velho Herodes, em cujo pátio interno foram mortas muitas crianças inocentes. Fizeram depois algumas mudanças; a entrada é agora pelo lado oriental; há também uma entrada para Pilatos, no vestíbulo do palácio.

 

Desse lado da cidade partem quatro ruas em direção ao oeste: três conduzem ao palácio de Pilatos e ao Fórum; a quarta, porém, passa ao lado norte do fórum, em direção à porta que conduz a Betsur. Nesta rua, perto da porta, se acha o belo edifício que Lázaro possui em Jerusalém e no qual também Marta tem uma habitação própria.

 

Das quatro ruas, a que fica mais perto do Templo, vem da porta das Ovelhas, perto qual, quando se entra, à direita, se acha a piscina das ovelhas; essa fica tão perto do muro da cidade, que nesse se encostam arcadas, que formam uma abóbada sobre as águas. Ela tem um escoadouro, fora do muro, para o vale do Josafá, o que faz com que o solo, por fora da porta, fique encharcado.

 

Em redor dessa piscina há ainda outros edifícios; é nessa piscina que se lavam os cordeiros pela primeira vez, antes de serem levados ao sacrifício no Templo; mais tarde são lavados outra vez e solenemente, na piscina de Betsaida, ao sul do Templo. Na segunda rua há uma casa com pátio, que pertencia a Sant’ Ana, Mãe de Maria, onde ela e a família moravam e guardavam os animais para os sacrifícios, quando vinham a Jerusalém. Se me lembro bem, foi também nessa casa que foram celebradas as núpcias de José e Maria.

 

O Fórum, como já dissemos, fica mais alto do que as ruas circunvizinhas e a água corre pelos regos das ruas, para a piscina das Ovelhas. Na encosta do monte Sião há também um fórum semelhante, diante do antigo castelo de Davi; ali perto, ao sudeste, se acha o Cenáculo e ao norte, o tribunal de Anás e Caifás. O Castelo de Davi é agora um forte abandonado e deserto, com pátios, estábulos e salas vazias, que se alugam como albergaria e caravanas e aos estrangeiros e seus animais de carga. Esse edifício já há muito que está abandonado; já o vi nesse estado na época do nascimento de Cristo; nessa ocasião o séqüito dos Reis Magos, com numerosos animais de carga, foi conduzido para lá, logo ao entrar na cidade.

 

3. Jesus perante Pilatos

 

Eram talvez seis horas da manhã, segundo o nosso modo de contar, quando a comitiva dos sumos sacerdotes e dos fariseus, com o nosso Salvador, horrivelmente maltratado, chegou ao palácio de Pilatos.

 

Entre o mercado e a entrada do tribunal havia assentos em ambos os lados do caminho, onde se divertiam Anás e Caifás, e os conselheiros que os acompanhavam. Jesus foi conduzido alguns passos adiante, até a escada de Pilatos, pelos soldados, que o seguravam pelas cordas. Quando lá chegaram, estava Pilatos deitado sobre uma espécie de leito, na sacada do terraço; tinha ao lado uma mezinha de três pés, em que se viam algumas insígnias de sua dignidade e outros objetos, dos quais não me lembro mais. Cercavam-no oficiais e soldados, que também tinham colocado lá insígnias do poder romano. Os sumos sacerdotes e judeus ficaram afastados do tribunal, porque, aproximando-se mais, se teriam contaminado; segundo a lei havia um certo limite, que não transgrediam.

 

Quando Pilatos os viu chegar tão apressados, com tanto tumulto e gritaria, conduzindo Jesus maltratado, levantou-se e falou em tom tão cheio de desprezo, como talvez algum orgulhoso marechal francês falaria aos deputados de uma cidadezinha: “O que vindes fazer tão cedo? Como pusestes este homem em tão mísero estado? Começais cedo a esfolar e matar”. Eles porém, gritaram ao soldados: “Adiante! Levai-O ao tribunal”. Depois se dirigiram a Pilatos: “Escutai as nossas acusações contra este criminoso; não podemos entrar no tribunal, para não nos tornarmos impuros”.

 

Depois de exclamarem essas palavras, gritou um homem da estatura alta e forte e figura venerável, no meio do povo apinhado atrás deles no fórum: “É verdade, não podeis entrar neste tribunal, pois está santificado por sangue inocente; só Ele pode entrar, só Ele entre os judeus é puro como os inocentes.”

 

Assim dizendo, profundamente comovido, desapareceu na multidão. Chamava-se Sadoc; era homem abastado, primo de Obed, que era o marido de Seráfia, também chamada Verônica; dois dos seus filhinhos tinham sido assassinados, com as crianças inocentes, no pátio do tribunal, por ordem de Herodes. Desde então se tinha retirado do mundo e vivia como um Esseno, em continência com a mulher.

 

Tinha visto Jesus uma vez, em casa de Lázaro e ouvira-o explicar a doutrina; quando viu Jesus tão cruelmente arrastado para a escada de Pilatos, reviveu-lhe no coração a dolorosa lembrança dos filhinhos assassinados naquele lugar e assim deu em alta voz o testemunho da inocência do Senhor. Os acusadores de Jesus estavam com muita pressa e irritados demais pelo modo desdenhoso de Pilatos e a posição humilhante em que se achavam diante dele, para dar atenção à exclamação de Sadoc.

 

Os soldados puxaram Jesus pelas cordas, escada acima, até o fundo do terraço, de onde Pilatos estava falando aos acusadores. O procurador romano já ouvira falar muito de Jesus. Quando O viu tão horrivelmente maltratado e desfigurado e contudo conservando uma dignidade inabalável, sentiu cada vez mais nojo e desprezo dos sacerdotes e conselheiros judaicos, que lhe tinham já antes prevenido que trariam Jesus de Nazaré, réu de morte, perante o tribunal, fazendo-lhes sentir que não estava disposto a condená-Lo sem culpa provada.

 

Disse-lhes, pois, em tom brusco e desdenhoso: “De que crime acusais esse homem?” A que responderam irritados: “Se não O conhecêssemos como malfeitor, não vo-Lo teríamos entregado”. Disse-lhes Pilatos: “Pois tomai e julgai-O segundo a vossa lei”. – “Sabeis, responderam os judeus, que não nos compete o direito absoluto de executar uma sentença de morte”.

 

Os inimigos de Jesus estavam cheios de escárnio e raiva; fizeram tudo com precipitação e violência, para acabar com Jesus antes de começar o tempo legal da festa, afim de poderem sacrificar o cordeiro pascal. Mas não sabiam que Ele era o verdadeiro Cordeiro pascal, que eles mesmos conduziam ao tribunal do juiz pagão, servidor de falsos deuses, em cujo limiar não queriam contaminar-se, para poder nesse dia comer o cordeiro pascal.

 

Como o governador os intimasse a proferir as acusações, apresentaram três acusações principais contra Jesus e por cada acusação depuseram 10 testemunhas. Formularam as acusações de modo que apresentavam Jesus como réu de crime de lesa-majestade e assim Pilatos devia condená-lo; pois em causas que diziam respeito às leis da religião e do Templo, poderiam eles mesmos decidir.

 

Primeiro acusaram Jesus de ser sedutor do povo, perturbador do sossego público e agitador; e apresentaram algumas provas, confirmadas por testemunhas. Disseram mais que andava de um lugar para outro, causando grandes ajuntamentos do povo; que violava o Sábado, curando nesse dia. Nisso Pilatos interrompeu-os, num tom sarcástico: “Naturalmente não estais doentes, senão estas curas não vos causariam tanta indignação”. Eles, porém, continuaram a acusar Jesus, dizendo que seduzia o povo com horríveis doutrinas, pois afirmava que teriam a vida eterna os que Lhe comessem a carne e bebessem o sangue.

 

– Pilatos zangou-se, ao ver a fúria precipitada com que proferiam essa acusação; olhou sorrindo para os seus oficiais e dirigiu aos judeus palavras sarcásticas, como, por exemplo: “Parece mesmo que quereis seguir-Lhe a doutrina e possuir a vida eterna; tenho a impressão de que quereis comer-Lhe a carne e beber-Lhe o sangue”.

 

A segunda acusação era que Jesus instigava o povo a não pagar imposto ao imperador. Pilatos interrompeu-os indignado, como homem cujo cargo era velar por essas coisas e disse, em tom convicto de suas próprias informações: “Isto é mentira grossa; devo sabê-lo melhor do que vós”.

 

– Os judeus, porém, gritaram, apresentando a terceira acusação: Que era mesmo verdade, esse homem, de nascimento baixo, duvidoso e suspeito, tinha formado um partido forte e proferido ameaças contra Jerusalém. Também propagava entre o povo parábolas equivocas, sobre um rei que preparava as núpcias do filho. Certa vez já uma grande multidão de povo, reunido em uma montanha, tinha tentado proclamá-Lo Rei; mas Ele, achando que era ainda cedo, tinha-se escondido. Nos últimos dias tinha ousado mais: preparou uma entrada tumultuosa em Jerusalém e fez o povo gritar: “Hosana ao filho de Davi! Bendito seja o reino que vemos chegar, do nosso pai Davi. Também se fazia prestar honras régias, pois que ensinava que era Cristo, o Unigênito do Senhor, o Messias, o rei prometido dos judeus e assim se fazia chamar”. Também essa acusação foi confirmada pelos depoimentos de dez testemunhas.

 

Quando Pilatos ouviu que Jesus se fazia chamar o Cristo, rei dos judeus, tornou-se pensativo. Saindo da sacada, entrou na sala contígua ao tribunal, lançando, ao passar um olhar atento a Jesus e deu ordem à guarda de trazê-Lo à sala do tribunal.

 

Pilatos era pagão supersticioso de espírito confuso e inconstante. Conhecia as lendas obscuras de filhos de deuses, que teriam vivido na terra; também não ignorava que os profetas dos judeus, desde muito tempo, haviam predito a vinda de um ungido de Deus, de um Redentor e um libertador e que muitos judeus o estavam esperando. Também sabia que uns reis do Oriente tinham vindo ao velho Herodes, para pedir informações sobre um rei recém-nascido dos judeus, a quem queriam prestar homenagens e que depois disso, muitas crianças foram degoladas, por ordem de Herodes.

 

Já ouviram falar da promissão da vinda de um Messias, rei dos judeus, mas como pagão que era, não o acreditava, nem podia pensar, como os judeus instruídos e os herodianos daquele tempo, num rei poderoso e conquistador. Tanto mais ridícula lhe parecia por isso a acusação de que esse Jesus que estava diante dele, tão humilhado e desfigurado, pudesse declarar se aquele Messias, aquele rei. Como, porém, os inimigos de Jesus apresentassem isso como crime contra os direitos do imperador, mandou conduzir o Salvador à sua presença, para interrogá-Lo.

 

Pilatos olhou para Jesus com assombro e disse-Lhe: “És então o rei dos judeus?” – Jesus respondeu: “Dizeis isto de ti mesmo ou foram outros que t’o disseram de mim?” Pilatos, indignado de ver Jesus julgá-lo tão tolo, que fosse espontaneamente perguntar a um homem tão pobre e miserável se era rei, disse em tom desdenhoso: “Por acaso sou judeu, para me interessar por tais misérias? Teu povo e seus sacerdotes entregaram-Te a mim, para condenar-Te como réu de crime capital; dize-me, pois o que fizeste”?

 

Respondeu-lhe Jesus, em tom solene: “O meu reino não é deste mundo; se o meu reino fosse deste mundo, eu teria servidores, que combateriam por mim, para não me deixar cair nas mãos dos judeus; mas o meu reino não é deste mundo”. Pilatos estremeceu, ao ouvir essas graves palavras de Jesus e disse pensativo. “Então és mesmo rei?” – Jesus respondeu. “É como dizes, sou rei. Nasci e vim a este mundo para dar testemunho da verdade e todo que é da verdade, atende à minha voz”. – Então Pilatos fitou-O e levantando-se, disse: “Verdade? O que é a verdade?” – Faltaram-se ainda outras palavras, das quais não me lembro bem.

 

Pilatos saiu outra vez para o terraço; não podia compreender Jesus; mas sabia que não era um rei que quisesse prejudicar ao imperador, nem era pretendente a um reino deste mundo; o imperador, porém, não se importava com um reino do outro mundo. Pilatos gritou, pois, da sacada aos sumos sacerdotes: “Não acho nenhum crime neste homem”.

 

– os inimigos de Jesus irritaram-se de novo e proferiram uma torrente de acusações contra Ele. O Senhor, porém, permanecia calado e rezava por esses pobres homens e quando Pilatos se Lhe dirigiu, perguntando-Lhe: “Não tens nada a responder a todas essas acusações?” Jesus não, proferiu uma só palavra, de modo que Pilatos, surpreso, Lhe disse: “Vejo bem que empregaram mentiras contra ti” – (em vez de mentiras usou outra expressão, que, porém, esqueci). Os acusadores continuavam, cheios de raiva, a acusá-Lo, dizendo: “O que? Não achais crime nEle? Não é então crime sublevar todo o povo, espalhar sua doutrina em todo o país, da Galiléia até aqui?”

 

Quando Pilatos ouvia a palavra Galiléia, refletiu um momento e perguntou: “Esse homem é da Galiléia, súdito de Herodes?” os acusadores responderam: “Sim, seus pais moravam em Nazaré e Ele tem domicilio atual em Cafarnaum”. Então disse Pilatos: “Pois que é galileu e súdito de Herodes, conduzi-O a este; ele está aqui na festa e pode julgá-Lo”. Mandou conduzir Jesus outra vez do tribunal para as mãos dos implacáveis inimigos, enviando também com eles um dos oficiais, para entregar ao tribunal de Herodes o súdito galileu Jesus de Nazaré. Ficou assim satisfeito de poder livrar-se desse modo da obrigação de julgar Jesus pois essa causa lhe era desagradável. Ao mesmo tempo tinha nisso um fim político, queria dar uma prova de atenção a Herodes, que sempre desejara muito ver Jesus; pois estavam em desavença.

 

Os inimigos de Jesus, furiosos por lhes haver Pilatos negado a demanda e terem de ir ao tribunal de Herodes, fizeram recair toda a raiva sobre Jesus. Cercaram-nO de novo de soldados e, irritadíssimos, amarraram-Lhe as mãos e com empurrões e pancadas, conduziram-nO a toda pressa, através da multidão que se apinhava no fórum e depois por uma rua, até o palácio de Herodes, que não ficava muito longe. Acompanharam-nos soldados romanos.

 

Cláudia Prócula, esposa de Pilatos, mandara-lhe dizer por um cirado, durante as ultimas discussões, que desejava falar-lhe urgentemente. Quando Jesus foi conduzido a Herodes, estava escondida numa galeria alta, olhando com grande angústia e tristeza para o cortejo que passava pelo fórum.

 

4. Origem de Via Sacra.

 

Durante toda a acusação perante Pilatos, a Mãe de Jesus, Madalena e João ficaram no meio do povo, num canto das arcadas do fórum ouvindo com profunda dor a gritaria raivosa dos acusadores. Quando Jesus foi conduzido a Herodes, João voltou com a SS. Virgem e Madalena por todo o caminho da Paixão. Foram até à casa de Caifás e a de Anás, atravessando Ofel, até chegarem a Getsêmani, no monte das Oliveiras e em todos os lugares onde Ele caíra ou onde lhes tinham causado um sofrimento, paravam e em silêncio choravam e sofriam com Ele.

 

Muitas vezes a SS. Virgem se prostrava no chão, beijando a terra onde Jesus caíra, Madalena torcia as mãos e João, chorando, consolava-as, levantava-as e continuava com elas o caminho. Foi esse o começo da Via Sacra e da contemplação e veneração da Paixão de Jesus, antes mesmo que estivesse terminada.

 

Foi nessa ocasião que começou, na mais santa flor da humanidade, na Santíssima Virgem Mãe de Deus e do Filho do homem, a devoção da Igreja às dores do Redentor; já naquele momento, quando Jesus ainda trilhava o caminho doloroso da Paixão, a Mãe cheia de graça venerava e regava com lágrimas as pegadas de seu Filho e Deus. Oh! Que compaixão! Com que violência lhe entrou a espada no coração, ferindo-o sem cessar! Ela, cujo bem-aventurado seja O trouxera, que concebera, acariciara e nutrira o Verbo, que era desde o princípio com Deus e era mesmo Deus; ela, que em si Lhe tivera e sentira a vida, antes que os homens, seus irmãos, Lhe recebessem a bênção, a doutrina e a salvação, ela participava de todos os sofrimentos de Jesus, inclusive a sua sede da salvação dos homens, pela dolorosa Paixão e Morte.

 

Assim a Virgem puríssima e Imaculada inaugurou para a Igreja a Via Sacra, para juntar em todos esses lugares os infinitos merecimentos de Jesus Cristo, como se juntam pedras preciosas ou colhê-los como se colhem flores à beira do caminho e oferecê-los ao pai Celeste, por aqueles que crêem. Tudo que tinha havido e haverá de santo na humanidade, todos que têm almejado a salvação, todos que já uma vez celebraram compadecidos o amor e os sofrimentos do Senhor, fizeram esse caminho com Maria, choraram, rezaram e sacrificaram no coração da Mãe de Jesus, que também é terna Mãe de todos os seus irmãos, os fiéis da Igreja.

 

Madalena estava como que alucinada pela dor. Tinha um imenso e santo amor a Jesus; mas quando queria verter a alma aos pés do Salvador, como Lhe vertera o óleo de nardo sobre a cabeça, abria-se um horrível abismo entre ela e o Bem-Amado. O arrependimento dos pecados, como a gratidão pelo perdão, lhe eram sem limites e quando o seu amor queria fazer subir a ação de graças aos pés do Divino Mestre, como uma nuvem de incenso, eis que O via maltratado e conduzido à morte, por causa dos pecados dela, que Ele tomara sobre si.

 

Então se lhe horrorizava a alma, diante de tão grande culpa, pela qual Jesus tinha de sofrer tão horrivelmente; precipitava-se-lhe no abismo do arrependimento, que não podia nem exaurir, nem encher; e de novo se elevava, cheia de amor e saudade, para seu Mestre e Senhor e via-O sofrendo indizíveis crueldades. Assim tinha a alma cruelmente dilacerada, vacilava entre o amor e o arrependimento, entre a sua gratidão e a dolorosa contemplação da ingratidão do povo para com o Redentor; todos esses sentimentos se lhe manifestavam no rosto, nas palavras e nos movimentos.

 

João sofria em seu amor; conduzia a Mãe de seu Santo Mestre e Deus, que também o amava e sofria por ele; conduzia-a, pela primeira vez, nas pegadas da Via Sacra da Igreja e lia-lhe na alma o futuro.

 

5. Pilatos e a Esposa

 

Enquanto Jesus era conduzido a Herodes e lá o cobriam de insultos e escárnio, vi Pilatos ir ao encontro da esposa, Cláudia Prócula. Encontraram-se numa pequena casa, construída sobre um terraço do jardim, atrás do palácio de Pilatos. Cláudia estava muito incomodada e comovida. Era mulher alta e esbelta, mas pálida; vestia um véu, que lhe pendia sobre as costas, contudo viam-se-lhe os cabelos, dispostos em redor da cabeça e alguns adornos; tinha também brincos, um colar e sobre o peito um broche, em forma de agrafe, que lhe prendia o longo vestido de pregas. Conversou muito, tempo com Pilatos, conjurando-o por tudo que lhe era santo a não fazer mal a Jesus, o Profeta, o mais Santo dos santos e contou-lhe parte das visões maravilhosas que vira, a respeito de Jesus, durante a noite.

 

Enquanto ela falava, vi-lhe grande parte das visões que tivera; mas não me lembro mais exatamente da ordem em que se seguiram. Recordo-me todavia, que viu todos os momentos principais da vida de Jesus; viu a Anunciação de N. Senhora, o Nascimento de Jesus, a adoração dos pastores e dos Reis Magos, as profecias de Simeão e Ana, a fuga para o Egito, a matança dos inocentes, a tentação no deserto, etc. Viu-lhe quadros da vida pública, virtudes e milagres; viu-O sempre rodeado de luz e teve visões horríveis do ódio e da maldade de seus inimigos; viu-Lhe os inúmeros sofrimentos, o amor e a paciência sem limite, a santidade e as dores de sua santa Mãe.

 

Para mais fácil compreensão, eram esses quadros ilustrados com figuras simbólicas e pela diferença de luz e sombra. Essas visões lhe causaram indizível angústia e tristeza; pois todas essas coisas lhe eram novas, penetraram-lhe no coração pela verdade intuitiva; parte das visões mostraram-lhe acontecimentos que se deram na vizinhança de sua casa, como por exemplo a matança das  crianças inocentes e a profecia de Simeão no Templo. De minha própria experiência sei bem quanto um coração compassivo sofre em tais visões; pois compreende melhor os sentimentos de outrem quem já os sentiu em si mesmo.

 

Ela tinha sofrido desse modo durante a noite e visto muitas coisas maravilhosas e compreendido muitas verdades, umas mais, outras menos claramente, quando foi acordada pelo barulho da multidão, que conduzia a Jesus. Quando mais tarde olhou para fora, viu o Senhor, objeto de todas as coisas maravilhosas que vira durante a noite, desfigurado e cruelmente maltratado pelos inimigos, que o conduziam através do fórum, ao palácio de Herodes. Esse espetáculo, após as visões da noite, encheu-lhe o coração de angústia e terror. Mandou imediatamente chamar Pilatos, a quem contou, com medo e pavor, muitas das coisas que vira, porque não tinha compreendido tudo ou não o sabia exprimir em palavras; mas pedia e suplicava e estreitava-se-lhe de um modo tocante.

 

Pilatos ficou muito admirado e até sobressaltado pelo que a esposa lhe contou, comparava-o com tudo que ouvia cá e lá sobre Jesus, com a raiva dos judeus, com o silêncio do Mestre e as firmes e maravilhosas respostas que lhe dera às perguntas; ficou perturbado e inquieto; deixou-se, porém, em pouco vencer pelas insistências da mulher e disse-lhe: “Já declarei que não acho crime nesse homem; não O condenarei, já percebi toda a maldade dos judeus”. Ainda falou sobre as declarações que Jesus tinha feito contra si mesmo e até tranqüilizou a mulher, dando-lhe um penhor, como garantia da promessa. Não sei mais se foi uma jóia ou um anel ou sinete que lhe deu por penhor. Assim se separaram.

 

Conheci Pilatos como homem confuso, ambicioso, indeciso, orgulhoso e vil ao mesmo tempo; sem verdadeiro temor de Deus, não recuava diante das ações mais vergonhosas, se delas esperava qualquer lucro e ao mesmo tempo era um vil covarde, que se entregava a toda espécie de ridículas superstições, procurando a proteção dos deuses, quando se achava em situação difícil. Vi-o também nessa ocasião muito perturbado; estava continuamente diante dos deuses, aos quais oferecia incenso, numa sala secreta da casa e dos quais pedia sinais.

 

Também esperava outros sinais supersticiosos, por exemplo, observava como comiam as galinhas; mas todas essas coisas pareciam tão horríveis, tenebrosas e infernais, que recuei tremendo de horror e não as posso mais contar exatamente. Tinha ele as idéias confusas e o demônio sugeria-lhe ora uma, ora outra coisa. Primeiro opinou que devia soltar Jesus, por ser inocente; depois pensou que os deuses se vingariam, se salvasse Jesus; pois havia estranhos sinais e declarações, que provavam ser o Nazareno um semideus, e sendo assim, podia fazer muito mal aos deuses.

 

“Talvez”, disse consigo, “seja uma espécie de Deus dos judeus, que deve reinar sobre tudo; alguns reis dos adoradores dos astros, vindos do oriente, já vieram uma vez a Jerusalém, procurar tal rei; talvez este pudesse elevar-Se acima dos deuses e do imperador e eu teria uma grande responsabilidade, se Ele não morresse. Talvez a sua morte seja o triunfo dos meus deuses”. Mas depois se recordou dos sonhos maravilhosos da mulher, que antes nunca vira Jesus e isso lançou um grande peso na balança oscilante de Pilatos, em favor da libertação do Mestre e decidiu-se de fato nesse sentido.

 

Queria ser justo; mas não o podia, porque tinha perguntado: “O que é a verdade?” e não esperava a resposta: “Jesus Nazareno, o rei dos judeus, é a verdade”. Havia tanta confusão nos pensamentos do Procurador romano, que eu não o podia compreender e ele mesmo também não sabia o que queria; senão certamente não teria consultado as galinhas.

 

Juntava-se no entanto cada vez mais no mercado e na vizinhança da rua pela qual Jesus fora conduzido a Herodes. Havia, porém, uma certa ordem, pois o povo reunia-se em certos grupos, segundo as cidades ou regiões donde vieram à festa. Os fariseus mais encarniçados de todas as regiões onde Jesus tinha ensinado, estavam com os patrícios, esforçando-se por excitar contra Jesus o povo instável e perplexo. Os soldados romanos estavam reunidos em grande número no posto de guarda, diante do palácio de Pilatos, outros tinham ocupado todos os pontos importantes da cidade.

 

6. Jesus perante Herodes

 

O palácio do Tetrarca Herodes estava situado ao norte do fórum, na cidade nova, não muito longe do palácio de Pilatos. Um destacamento de soldados romanos acompanhou o cortejo, a maior parte oriunda da região entre a Itália e a Suíça. Os inimigos de Jesus, furiosos por ter de fazer tantas caminhadas, não cessavam de ultrajá-lo e de fazê-lo empurrar e arrastar pelos soldados. O mensageiro de Pilatos chegou antes do cortejo ao palácio de Herodes, que assim, já avisado, O esperava sentado numa espécie de trono, sobre almofadas, numa vasta sala; rodeavam-no muitos cortesãos e soldados.

 

Os Sumos Sacerdotes entraram pelo peristilo e colocaram-se de ambos os lados; Jesus ficou na entrada. Herodes sentiu-se muito lisonjeado, por Pilatos tê-Lo publicamente declarado competente, diante dos Sumos Sacerdotes, de julgar um galileu. Mostrou-se muito importante e vaidoso; também se regozijava de ver diante de si, em situação tão humilhante, o famoso Mestre, que sempre tinha desdenhado apresentar-Se-lhe.

 

João falara dEle com tanta solenidade e ouvira os Herodianos e outros espiões e mexeriqueiros falarem de Jesus, que tinha muita curiosidade de vê-Lo; comprazia-se em sujeitá-Lo, diante dos palacianos e dos Sumos Sacerdotes, a um prolixo interrogatório, pelo qual queria mostrar a ambas as partes quanto estava bem informado. Pilatos tinha-lhe também comunicado que não achara crime em Jesus; e o hipócrita tomou-o como aviso, para tratar os acusadores com certa frieza, o que ainda mais lhes aumentou a raiva.

 

Proferiam acusações tumultuosamente, logo ao entrarem; Herodes, porém, olhou com curiosidade para Jesus e quando O viu tão desfigurado e maltratado, o cabelo desgrenhado, o rosto dilacerado e coberto de sangue e imundícies, a túnica toda suja de lama, esse rei mole e libertino sentiu dó e nojo. Exclamou um nome de Deus que me soou como “Jeovah”, virou o rosto, com um gesto de nojo e disse aos sacerdotes: “Levai-O daqui, limpai-O. Como podeis trazer à minha presença um homem tão sujo e maltratado?” Os soldados levaram então Jesus ao átrio; trouxeram água numa bacia e um esfregão e limparam-nO cruelmente; pois o rosto estava ferido e passavam o esfregão com brutalidade.

 

Herodes repreendeu os sacerdotes, por causa dessa crueldade e no modo de tratá-los parecia imitar Pilatos; pois também lhe disse: “Vê-se bem que Ele caiu nas mãos de carniceiros; começastes a imolação hoje antes da hora”. Os sumos sacerdotes, porém, insistiam tumultuosamente nas acusações e incriminações. Quando reconduziram Jesus à sala, quis Herodes fingir benevolência para com Ele e mandou trazer-Lhe um cálice de vinho, por estar muito fraco; Jesus, porém, sacudiu a cabeça e não aceitou o vinho.

 

Herodes dirigiu-se então com muita verbosidade e afabilidade, proferindo tudo que sabia dEle. A princípio Lhe fez várias perguntas e manifestou o desejo de vê-Lo fazer um milagre; como porém, Jesus não respondesse palavra alguma e permanecesse com os olhos baixos, ficou Herodes irritado e envergonhado diante dos presentes, mas não quis mostrá-lo e continuou a fazer-Lhe uma torrente de perguntas.

 

Primeiro procurou lisonjeá-lo: “Sinto muito te ver tão gravemente acusado; tenho ouvido falar muito de ti; sabes que me ofendeste em Tirza, resgatando sem minha licença, vários presos que eu mandara prender lá? Mas fizeste-O talvez com boa intenção. Agora me foste entregue pelo governador romano para te julgar; o que respondes a todas aquelas acusações? Ficas calado?

 

– Têm-me falado muito de tua sabedoria, dos teus discursos e da tua doutrina; eu desejaria ouvir-Te refutar os teus acusadores. – Que dizeis? – É verdade que és o rei dos judeus? – És o Filho de Deus? – Quem, és? – Ouvi dizer que tens feito grandes milagres, prova-o diante de mim, fazendo um milagre. Depende de mim libertar–Te. – É verdade que deste a vista a cegos de nascença? Ressuscitaste dos mortos Lázaro? Saciaste vários milhares de homens com poucos pães? Porque não respondes? – Conjuro-te a operar um dos teus milagres. – Seria muito em teu favor”.

 

Como, porém, Jesus continuasse calado, Herodes falou com volubilidade ainda maior: “Quem és? – Como chegaste a isto? – Quem Te deu o poder? – Porque não tens mais poder agora? És acaso aquele de cujo nascimento se contam coisas tão estranhas? No tempo de meu pai vieram alguns reis do oriente e perguntaram-lhe por um recém-nascido rei dos judeus, a quem queriam prestar homenagem; dizem que eras Tu aquele menino; é verdade? – Escapaste da matança em que pereceram tantas crianças? – Como foi isto? – Porque não se ouviu falar de Ti tanto tempo? – Ou apenas dizem isto a teu respeito  para fazer-Te rei? – Justifica-Te. – Que espécie de rei és Tu? Em verdade, não vejo em Ti nada de real. – Como me dizem, fizeram-Te uma entrada triunfal no Templo. Que significa isto? Fala! Como é que tudo acabou assim?”

 

A toda essa torrente de palavras não obteve resposta alguma de Jesus. Foi-me explicando agora e, já há mais tempo, que Jesus não lhe respondeu, porque Herodes foi excomungado, tanto pelas relações adúlteras com Herodíades, como também pelo assassínio de João Batista. Anás e Caifás aproveitaram a indignação que lhe causou o silêncio de Jesus, para de novo proferir as acusações. Entre outras coisas afirmaram que Jesus tinha chamado Herodes de raposa e que, já desde muito tempo, tinha trabalhado para a queda de toda a família de Herodes; que queria fundar uma nova religião e comera o cordeiro pascal no dia anterior. Essa acusação já a tinham produzido perante Caifás, por traição de Judas, mas fora refutado por alguns amigos de Jesus, os quais para esse fim leram alguns trechos de rolos da Escritura.

 

Herodes, ainda que irritado pelo silêncio de Jesus, não se esqueceu dos seus interesses políticos. Não quis condenar Jesus; pois Este lhe inspirava um terror secreto e já era torturado de remorsos, por causa da morte de João Batista; também odiava os sumos sacerdotes, porque não tinham querido desculpar-lhe o adultério e o haviam excluído dos sacrifícios pelo mesmo motivo. Mas o motivo principal era que não queria condenar aquele a quem Pilatos declarara inocente; convinha-lhe aos interesses políticos aplaudir a opinião de Pilatos, diante dos príncipes dos sacerdotes. A Jesus, porém, cobriu de desprezo e insultos; disse aos criados e guardas, dos quais contava uns duzentos no palácio. “Levai para fora este tolo e prestai a este rei ridículo as honras que se Lhe devem; pois é mais um doido do que um criminoso”.

 

Conduziram então o Salvador a um vasto pátio, onde o cobriram de escárnio e indizíveis crueldades. Esse pátio estendia-se por entre as alas do palácio e Herodes, de pé num terraço, assistiu por algum tempo a esse espetáculo cruel. Anás e Caifás, porém, andavam sempre atrás dele e procuravam por todos os meios movê-lo a condenar Jesus; mas Herodes disse-lhes, de modo que os romanos da escolta o ouvissem: “Seria um crime de minha parte, se O condenasse”. Queria certamente dizer: “Seria um crime contra a sentença de Pilatos, que teve a gentileza de mandá-Lo a mim”.

 

Vendo que não conseguiam nada de Herodes, os sumos sacerdotes e os inimigos de Jesus enviaram alguns dos seus, com dinheiro, a Acra, bairro da cidade onde se achavam nessa ocasião muitos fariseus, aos quais mandaram dizer que fossem, com os respectivos partidários, às vizinhanças do palácio de Pilatos; fizeram também distribuir entre o povo muito dinheiro, para levá-lo a pedir tumultuosamente a morte de Jesus. Outros emissários deviam ameaçar o povo com castigos de Deus, se não conseguisse a morte desse blasfemador sacrílego; também mandaram espalhar entre o povo que se Jesus não morresse, se ligaria aos romanos e seria esse o reino de que sempre falara; e então seriam aniquilados os judeus.

 

Em outra parte espalharam o boato de que Herodes condenara Jesus, mas esperava que o povo manifestasse sua vontade; receava-se a resistência dos adeptos do Nazareno e se esse fosse solto, seria perturbada toda a festa; pois então Ele, com seus partidários e os romanos, tirariam vingança. Desse modo fizeram espalhar os boatos mais contraditórios e assustadores, para irritar e sublevar o povo, enquanto outros emissários deram dinheiro aos soldados de Herodes, afim de que maltratassem gravemente a Jesus, mesmo até O fazer morrer, pois antes desejavam que morresse do que Pilatos O soltasse.

 

Enquanto os fariseus estavam ocupados nesses negócios e intrigas, sofreu Nosso Senhor o escárnio e a brutalidade mais ignominiosa da soldadesca ímpia e grosseira, à qual Herodes O tinha entregue, para ser maltratado, como tolo que não lhe quisera responder. Empurraram-nO para o pátio e um deles trouxe um comprido saco branco, que achara no quarto do porteiro e em que, havia tempos, viera uma remessa de algodão. Cortaram com as espadas um buraco no fundo do saco e meteram-nO por entre grandes gargalhadas, sobre a cabeça de Jesus; outro trouxe um farrapo vermelho e pôs-Lhe em redor do pescoço, como um colar; o saco caia-Lhe sobre os pés.

 

Então se inclinavam diante dEle, empurravam-nO e entre ditos insultantes, cuspiam e batiam-Lhe no rosto, porque não tinha respondido ao rei e prestavam-Lhe outras mil homenagens escarnecedoras; atirava-Lhe lama, davam-Lhe arrancos, como para fazê-lo dançar; depois o fizeram cair com o longo manto derrisório e arrastaram-nO por um esgoto que passava no pátio, ao longo dos edifícios, de modo que a cabeça sagrada do Salvador batia de encontro ás colunas e pedras angulares; depois O levaram e começaram as crueldades de novo. – havia lá cerca de duzentos soldados e servidores do palácio de Herodes, gente de todas as regiões e cada um dos mais perversos queria fazer honra a seu país e distinguir-se diante de Herodes, inventando um novo ultraje para Jesus.

 

Faziam tudo precipitadamente, empurrando-se uns aos outros, entre escárnios; os inimigos de Jesus tinham pago dinheiro a alguns deles, que no tumulto Lhe deram diversas pauladas na santa cabeça. Jesus fitava-os com os olhos suplicantes, suspirando e gemendo de dor; mas zombavam dele, imitando-Lhe os gemidos; a cada nova brutalidade rompiam em gargalhadas e insultos, não haviam nenhum que Lhe mostrasse piedade. Tinha a cabeça toda banhada em sangue e vi-O cair três vezes, sob as pauladas, mas vi também uma aparição como de Anjos, que, chorando, desceram sobre Ele e lhe ungiram a cabeça. Foi-me revelado que sem esse auxílio de Deus, as pauladas teriam sido mortais. Os filisteus, que fizeram o cego Sansão correr na Pista de Gaza, até cair morto de cansaço, não foram tão violentos e cruéis como esses perversos.

 

Urgia o tempo para os Sumos Sacerdotes, porque em pouco deviam ir ao Templo e quando receberam aviso de que todas as suas ordens tinham sido cumpridas, insistiram mais uma vez com Herodes, pedindo-lhe que condenasse Jesus. Mas o tetrarca tinha em vista apenas suas relações com Pilatos e mandou reconduzir-lhe Jesus, vestido do manto derrisório.

 

Fonte: Extraído do Livro "Vida, Paixão e Glorificação do Cordeiro de Deus - Anna Catharina Emmerich - Ed. MIR.