Jesus Cristo Rei do universo V.PNG

JESUS CRISTO REI.

 

1º Domingo do Advento 

 

Pensamentos sobre os Evangelhos

e sobre as festas do Senhor e dos Santos.

 

Pe. João Colombo.

Imprimatur: Mons. J. Lafayette

 

Escrito entre 1927-1938.

Primeira edição em 1939.

 

> Carta Encíclica do Papa Pio XI - Sobre a Solenidade de CRISTO REI.

> Indulgência Plenária para a Solenidade de Cristo Rei.

 

> 2º Domingo do Advento

 

I. O JUÍZO UNIVERSAL

 

Lc. 21, 25-33.

 

Para além dos séculos, Deus pôs um sinal ao qual todos os caminhos deverão chegar. Este sinal é a sua cruz, que aparecerá, no fim do mundo, no céu vazio, e fulgurará terrivelmente sobre a cabeça de todos os homens reunidos de todas as partes e prostrados sobre a terra nua. Será esse o dia mais tremendo. Dies irae dies illa!

 

Na manhã de 14 de setembro do ano 258, no Campo Sextio, molhado ainda do orvalho, era decapitado o bispo de Cartago. Os inimigos de Cristo haviam-no prendido e trazido perante o procônsul Galério.

 

Galério: “És tu Tascio Cipriano?”

Cipriano: “ Sou eu mesmo”.

Galério: “Que Tascio Cipriano seja justiçado à espada”.

Cipriano: “Deo gratias”.

 

Mas, quando os soldados se prepararam para executar a sentença, quando os fiéis estenderam paninhos em torno para recolher o seu sangue que seria derramado, o santo teve um frêmito e, cobrindo os olhos com as mãos, disse: “Vae mihi cum ad judicium venero!” Foi um instante: depois estendeu a cabeça.

 

Se o pensamento do juízo de Deus fazia tremer os mártires, que será de nós? Que faremos nós e que diremos diante do Juiz divino? Pensemos em que aquele será:

 

Dia da grande manifestação, Dia da grande acusação.

 

1- Manifestação sem véus.

 

Representemo-nos a nossa alma perante aquele tribunal supremo, circundada pelos anjos e pelos homens: os justos e os pecadores, os parentes e os conhecidos, os superiores e os inferiores, os amigos e os inimigos. Os olhos de todos estão sobre nós. Sobre nós estão os olhos de Deus.

 

Entrementes se refará a história da nossa vida, desde os dias remotos e esquecidos da infância até o da nossa morte. Então aparecerá todo o mal que encobertamos fizemos, e todo o bem que preguiçosamente não quisemos fazer.

 

a) Todo o mal que encobertamente fizemos.

 

Neste mundo nós acreditamos enganar os olhos do esposo, a vigilância dos pais, a boa fé talvez de um padre a quem arrancamos a absolvição. Trabalho perdido: lá todos saberão de tudo.

 

Passávamos por amigo fiel, sincero, generoso: ao contrário, verão que éramos desleais, interesseiros sem consciência.

 

Passávamos como sendo pessoa justa que se contenta com o que é seu: ao contrário, conhecer-se-ão as fraudes dos nossos negócios, e todos poderão contar o dinheiro e as coisas extorquidas aos outros.

 

Passávamos como um homem íntegro e honesto; ao invés, aparecerão as nossas infâmias cometidas na sombra e no segredo.

 

E não só o mal que fizemos fora de nós, mas também o mal que ficou dentro de nós, no recôndito da alma, será manifestado.

 

Tantos desejos vergonhosos que nas horas de ócio enchiam nossa mente; tantos instintos de inveja e de rancor que dissimulamos, mas que no entanto eram o motivo profundo das nossas malignas vingancinhas; tantos projetos de pecados que só não executamos por ter faltado a ocasião: veremos estas iniqüidades saltadas do nosso coração, sem o sabermos, quase como uma emboscada. Ante a história secreta do nosso coração sentiremos horror de nós mesmos.

Ao exame do mal que fizemos seguir-se-á o do bem que, podendo, não quisemos fazer.

 

b) Todo o bem que podíamos fazer e que preguiçosamente não quisemos fazer.

 

Neste mundo é fácil esconder por trás de um cômodo pretexto a nossa preguiça no descuido do bem, e temos a ilusão de justificar-nos, dizendo: “Não me compete”, ou então “Não o consigo, não tenho os meios”. Porém lá em cima ser-nos-ão relembradas e lançadas em rosto todas as culposas omissões de que nossa vida é tecida.

 

Todas as ocasiões de dar a Deus uma glória que não demos; todas as almas que poderíamos ter salvado com a oração, com o conselho, com a esmola, e que não salvamos; todas ao Santas Comunhões, Missas, prédicas que descuidamos por preguiça; todos os dias perdidos, sacrificados aos mexericos e aos prazeres do mundo, sem um pensamento que os consagrassem a Deus e os tornasse bons para a eternidade.

 

Manifestação total, pois: do mal feito ora e dentro de nós, e do bem não feito.

 

c) E será uma manifestação sem véus.

 

Na terra, quando fomos capaz de um delito que nos precipitou na infâmia e no desprezo, fugimos do nosso país, abandonamos a pátria e procuramos um lugar, noutro continente, onde ninguém nos conheça, onde ninguém saiba nem venha a saber, onde ainda nos seja possível respirar e redimir-nos. Mas, no dia do grande juízo, em que ignotas regiões poderemos refugiar-nos, se todas foram destruídas? Em que povos estrangeiros, se todo homem poderá ler-nos na fronte a chaga e o destino?

 

Na terra, o homem desonrado pode esconder-se, pode intrometer-se na multidão dos indiferentes, e esperar que com o tempo se aplaque o rumor das suas maldades. Mas isto não será possível na hora do juízo universal: não mais confusão, porém separação. Do alto, como um grande pastor, com o seu cajado ardente Cristo separará os cordeiros dos bodes: os bons dos maus. E será uma separação cruel: o amigo do amigo, o irmão do irmão, o pai do filho, um tomado e outro abandonado. E será uma separação ignominiosa, por que todos nos verão e nos desprezarão.

 

Um nobre romano de nome Pison foi obrigado a comparecer no senado revestido com a túnica infame de réu. Mas, quando, assim coberto de opróbrio, se achou perante os senadores que dos seus assentos olhavam para ele, mesmo antes de comparecerem os juízes no tribunal, mesmo antes de levantarem os acusadores os rostos, ele não pode mais aguentar-se de vergonha. Resistiu um pouco, empalideceu como alguém que desmaia: porém, depois, subitamente puxou de um estilete que por acaso trazia sobre as vestes, e matou-se (DIONE CASSIO).

 

Oh! Se na hora do juízo de Deus os réprobos possuíssem um estilete! Oh! Se ao menos pudessem morrer outra vez, morreria todos de vergonha!

 

2. Dia da grande acusação.

 

a) A acusação do demônio.

 

Santo Agostinho assegura-nos que o primeiro a levantar-se contra nós será o demônio. Logo ele, que agora, com toda lisonja e dolo, nos atira na lama. Dirá ele: “durante a vida esta alma observou os mandamentos, Senhor, não da tua, mas da minha lei. Dá-me, pois, que ela me pertence”.

 

Nós ousaremos balbuciar: “Senhor, seguir o demônio era menos trabalhoso, dura demais é a tua lei”.

 

“Não é verdade, não é verdade! - Insultar-nos-á o demônio - Eu te fazia trabalhar mesmo no Domingo, enquanto a suave lei de Deus te teria concedido o repouso, e tu trabalhavas para mim, sem te lamentares, eu te fazia beber mesmo quando já não tinhas sede: e tu, por mim, bebias ainda, até te sentires mal, até te bestializares na embriaguez. Eu te mandava dançar: e tu, cansado dos seis dias de trabalho dançavas no Domingo para me fazeres rir. Eu te sugeria um encontro equívoco: e tu, para me escutares, deixavas a tua família e, embora fizesse frio, embora chovesse, te agüentavas esperar debaixo da água ou da neve, por horas e horas aquela pessoa. Eu te impunha esbanjares no vício o suor da tua semana: e tu, que tinhas medo de dar de esmola um ceitil, consumias nas reuniões e nos prazeres o sustento de tua família. Nada leve o meu jugo: mas preferiste-o!”

 

b) A acusação do Anjo.

 

Depois surgirá o nosso Anjo. Sim, o Anjo da Guarda, a quem a Piedade Suprema nos confiará, também ele se tornará acusador. “Meu Senhor - dirá ele - o meu dever de iluminá-lo, guardá-lo, regê-lo, governá-lo, cumpri-o. Mas em vão. Em vão, ó Senhor, iluminei-lhe a mente com bons pensamentos, a alma com as boas palavras de sacerdotes e de amigos, o caminho com o bom exemplo de companheiros. Em vão eu o guardava, pois por sua teimosa vontade ele ia ter com as pessoas más e aos lugares perigosos. As tempestades de remorsos que eu lhe suscitava no coração, ele não quis render-se.”

 

c) A acusação dos homens.

 

Terminada a acusação do anjo mal e do anjo bom, surgirão os homens para nos acusar, será a voz dos inocentes escandalizados pelas nossas palavras, pelo nosso exemplo, pelos nossos incitamentos: “justiça de Deus - clamarão eles - vinga as nossas almas”.

 

Será a voz dos cúmplices dos nossos pecados: “justiça de Deus - gritarão eles - com ele o mal, com ele o inferno”.

 

Será, ó pais, a voz dos vossos filhos que não guardastes, que não educastes, que quiçá escandalizastes. “Senhor - dirão eles - em casa aprendi a não rezar, a blasfemar, a ofender-te!”

 

Será, talvez, ó pais, a voz débil dos filhos que não quisestes, ou que não abandonastes antes de nascerem: “Senhor - gemerão eles - nós também tínhamos direito à vida e não a tivemos!”

 

d) Acusação sem escusa.

 

Que escusa acharemos para opor a semelhante acusação? Acaso a nossa ignorância? Culpa nossa se nos não instruímos: todo Domingo havia pregação e doutrina. Acaso a nossa fraqueza? Mas todos os santos saltarão a dizer: “Também nós éramos de carne e sangue como vós, e nos salvamos”. Então surgirá o Juiz e julgará.

 

Conclusão.

 

Quando Moisés acabou de explicar ao povo a Lei de Deus, concluiu assim: “Filhos de Israel! Eis que eu hoje ponho diante de vós uma bênção e uma maldição: uma bênção se obedecerdes aos mandamentos de Deus, uma maldição se deixardes a estrada boa pela má. Escolhei”. (Deut., 11, 16-28)

 

As mesmas palavras eu repito a vós, ó cristãos, depois de vos haver proposto o novíssimo do juízo.

“Eis que eu hoje ponho diante de vós uma bênção eterna e uma eterna maldição. Quereis ser benditos no reino do céu para sempre? Ou quereis ser malditos no fogo do inferno para sempre? Escolhei”.

 

 

2. O DIA DA JUSTIÇA

 

Muitos, tendo visto que neste mundo os acontecimentos se desenrolam muitas vezes sem justiça, escandalizados disserem que a Providência não existe.

 

No tempo dos antigos Gregos, o filósofo Aristóteles, com um senso de amargura profunda, escreveu que a justiça deste mundo é uma teia de aranha que detém os mosquitos e deixa passar os pássaros. No tempo dos Romanos, Bruto, defensor da liberdade republicana, quando em Filipes, viu os seus exércitos desbaratados e a sua causa perdida, matou-se com sua própria mão, exclamando: “Virtude, tu não passas de um nome!”

 

E quantas vezes, na história, se encontram pessoas culpadas de atrozes crimes, as quais com o fulgor do ouro fizeram empalidecer as leis, e deslumbraram os juízes!

 

E mesmo pela nossa experiência quotidiana podemos concluir que neste mundo, os mais felizes nem sempre são os melhores, e as desgraças nem sempre vem recair sobre os que as mereceram.

Contudo, a justiça finalmente virá.

 

“Observai a figueira, e, em geral, todas as plantas. Quando a casca – dizia Jesus – se torna mais tenra e úmida, quando os gomos entumescidos deixam transparecer na ponta um olho verde, dizeis que já vem a primavera. Pois bem, dar-vos-ei os sinais para conhecerdes a chegada da minha justiça.

 

Sinais na terra: irromperão guerras de povo contra povo, propagar-se-ão doenças contagiosas de cidade em cidade, e longos incêndios arderão sobre toda a face do mundo. Tristes e mudos, os viventes de então consumir-se-ão pelo medo e pela expetação.

 

Sinais no céu: o sol apagar-se-á rugindo como um ferro em brasa na água, a lua negará os seus pálidos raios, as estrelas, como ébrias, sairão do seu caminho e precipitar-se-ão; toda potência do universo se abalará. Então, sobre as nuvens, com poder e majestade, ver-se-á vir o Filho de Deus.”

 

E Ele revelará.

E falará.

E condenará.

 

1 – E revelará.

 

Quando na escuridão de um aposento penetra um repentino feixe de luz, num lance de olhos vê-se tudo o que há no aposento: vê-se até o grão de pó sobre os móveis, e os corpúsculos que dançam no vazio. Assim será no aparecer do Filho de Deus: toda a nossa consciência será invadida pela sua luz fulgurante. Nem um ângulo ficará na sombra, nem uma página da nossa vida ficará obscura. Aquela será a hora da verdade.

 

Aquelas visitas freqüentes, aqueles passeios, aqueles encontros que se acreditou encobrir sob o pretexto de uma amizade inocente, ou de um justo passatempo, aparecerão então quais são, motivos de paixão impura. Aquelas coisas que se levavam para casa sob pretexto de compensar-nos da injustiça paga ou daquilo que nos haviam tirado, então aparecerão qual realmente são: um furto.

 

É fácil, neste mundo, perder a Missa com a desculpa de que falta tempo, descuidar da Doutrina cristã a pretexto dos negócios, omitir as orações da noite por causa do cansaço; mas então todos saberão que não se achava tempo para os deveres religiosos, mas achava-se tempo – e quanto! - para os divertimentos, para as palestras, para o jogo, para os pecados.

 

É fácil, neste mundo, profanar pelo trabalho o dia festivo, e esconder o próprio pecado sob a aparência de uma necessidade ou da urgência; mas a avareza sórdida que nos impele a este sacrilégio será desvendada naquele dia.

 

Tudo será desvendado: mas sobretudo os pecados conservados ocultos mesmo na Confissão, e arrastados dia a dia com uma longa cadeia de sacrilégios.

 

Quem pode imaginar a confusão do réprobo, descoberto aos olhos de todos, aos olhos de Deus?

 

Efrém era diácono de Edessa, quando por uma pessoa impudica foi solicitado a ofender o Senhor. E depois de haver tentado em vão todos os recursos para converter aquela alma infeliz, apegou-se a um estratagema.

 

“Esta bem – disse – ele finalmente – já que não queres aderir às minhas palavras persuasivas, condescenderei com as tuas, contanto que me concedas escolher o lugar”.

 

“E onde?”.

 

“Na praça do mercado de Edessa”.

 

Porém ela recusou, horrorizada de vergonha.

 

“Estulta! - replicou o santo. - Se temes o olhar destes cidadãos, como poderás sustentar o olhar fulgurante de Cristo juiz, quando com Ele te olharem os cidadãos de todos os séculos e de todas as cidades? Quando não um só, porém todos os pecados da tua vida forem revelados?”

 

2- E falará.

 

Santa Catarina de Sena, uma noite em que orava de joelhos diante do Crucifixo, viu sair uma luz das chagas do Senhor, e depois ouviu um gemido que a censurava por ter estado naquele dia distraída na meditação.

 

A santa começou a tremer de espanto, e um suor gélido regou-lhe os membros, e dos seus olhos caíram amaríssimas lágrimas.

 

“Experimentei uma dor tal – manifestou ela depois – como não provarei jamais, nem mesmo se me envergonhassem diante do rei do mundo. Eu preferiria caminhar por meses e meses sobre uma estrada tecida de espinhos, a tornar a sentir a punção daquela censura”.

 

E, no entanto, o defeito dela era um pequeno defeito, e talvez não totalmente voluntário. Todavia Jesus lhe falava por amor, querendo purificá-la de toda fraqueza e transportá-la a uma altíssima perfeição. Que aturdimento indizível não deverá ser, pois, o dos réprobos quando no seu furor, Cristo os exprobrar pelos seus enormes pecados? Loquetur ad eos in ira sua, et in furore suo conturbabit eos. (Ps., II, 5).

 

“Presta-me conta – dir-nos-á Ele – da vida que te dei. Onde está o bem que fizeste em trinta, quarenta, cinqüenta anos? Quantas são as tuas Comunhões, mortificações, esmolas, boas obras?”

 

“Presta-me conta – dir-nos-á Ele – das minhas boas inspirações. Que fizeste daqueles pensamentos de bem que dia a dia eu te enviava? Que fizeste daqueles remorsos com que eu te pungia o coração quando ouvias as prédicas, quando te achavas na solidão? Enxotaste-os como moscas, sufocaste-os: agora mos pagarás”.

 

“Presta-me conta – dir-nos-á Ele – da tua família. Teus pais te educaram bem, te ensinaram a respeitar a minha lei e o meu nome, mas tu por que esqueceste os ensinamentos deles? Teus filhos por que não cresceram bons? E como podiam crescer tais, se não te preocupavas com eles, se os não castigavas quando eles fugiam da igreja, se os escandalizavas com maus exemplos?”

 

Presta-me conta – dir-nos-á – dos sacerdotes que eu coloquei perto da tua alma. Eles te ensinavam, e tu não ias ouvi-los. Pregavam, e tu fechavas os ouvidos. Censuravam-te em meu nome, e tu os odiaste”.

 

“Presta-me conta – dir-nos-á ele – dos meus sacramentos. Tinhas na alma o demônio, e não ias confessar-te: desprezas-te o sacramento do perdão, e agora pretendes que eu te perdoe? Oh! Quantas vezes te esperei no silêncio do Tabernáculo, e não vieste! Esperei-te na Páscoa, esperei-te nas Quarenta Horas, esperei-te no dia do Perdão, esperei-te no dia de Finados . . . E não vieste?”.

 

“Ah! Presta-me conta do meu sangue. O sangue que eu derramei debaixo das oliveiras, o sangue da flagelação, o sangue da coroação de espinhos, o sangue das minhas mãos e dos meus pés, o sangue do meu coração. Todo o sangue foi inútil para ti”.

 

Quid sum miser tum dicturus? Míseros, confundidos, nus, sob o olhar pungente de todos os homens que existiram, que existem, que existem e que existirão, quem de nós ousará responder alguma coisa?

 

3- E condenará.

 

Antes do alvorecer Santo Agostinho foi acordado por um gemer longo e por um soluçar dilacerante que lhe vinha da rua.

Dois homens semi-nus, de barba e cabeleira sórdida e comprida, magros e famintos, tremiam convulsivamente diante da porta do bispo. Entrementes, todo o povo de Hipona acorrera para os ver.

 

“Como vos chamais?’ perguntou Santo Agostinho.

 

“Paulo e Paládio”, responderam eles, sem cessarem de chorar e de tremer.

 

“Sossegai, nós vos socorreremos”.

 

“É impossível sossegarmos. Estamos vindo de Cesaréia da Capadócia, onde éramos sete irmãos e três irmãs. Ofendemos nossa mãe viúva, e ela amaldiçoou-nos, e a sua maldição passou à nossa pele, à nossa carne, ao nosso sangue, aos nossos ossos. E como estais vendo, faz-nos tremer noite e dia sem trégua... Santo de Deus, livra-nos da maldição de nossa mãe, ou, se mais não puderes, faze-nos ao menos a graça de morrermos”.

 

Santo Agostinho orou por eles, e Deus livrou-os.

 

Refleti cristãos; se tanto pode naqueles filhos a maldição de uma mãe terrena, que não produzirá em nós a terrível, irrevogável, final maldição de Deus, nosso pai, ofendido pelos nossos pecados? Ite, maledicti, in ignem æternum.

 

Agora não sabemos compreender o que importe a privação de Deus; apenas podemos fazer uma idéia bastante remota e confusa.

 

Imaginai se nesta igreja faltasse o ar: os nossos olhos se entumesceriam, as faces tornar-se-nos-iam lívidas, abriríamos a boca delirando, sufocaríamos. Um tormento que a isto se assemelha, porém, infinitamente maior, experimentará a alma que, amaldiçoada, sente privar-se de Deus, que é a sua respiração.

 

Ter sempre sede, sem jamais beber; ter sempre fome sem jamais comer; tremer de frio sem uma chama, arder pelo fogo sem uma aragem que nos refresque: assim a alma sem Deus.

 

Terríveis tormentos, mas esta triste recompensa o próprio pecador invoca-a sobre si, pecando. E, quando soar a mobilização geral das consciências, quando sobre toda a terra atroar o grito tremendo; - Levantai-vos, ó mortos! - então Deus não fará senão sancionar aquilo que cada um quis para si.

 

“Ó cristão! Com o pecado tu te degradaste a ti mesmo, seja feita a tua vontade, para sempre. Fiat voluntas tua, in aeternum”.

 

“Ó cristão! Com o teu pecado expulsaste-me do teu coração. Eu ratifico: para sempre. In aeternum”.

“E agora vai-te, pois não te conheço mais: para sempre. In aeternum”.

 

Conclusão.

 

Um pequeno Rei declarara guerra a um grande Rei. Mas depois sentou-se, e começou a refletir: “Como posso nutrir esperanças de vencê-lo, se conto apenas com dez mil soldados, quando o meu adversário conduz mais de vinte milhões?” E, sabiamente, enquanto os exércitos ainda estavam longe, enviou uma embaixada pedindo humildemente a paz e os pactos de submissão. Legationem mittens rogat ea quae pacis sunt. (Lc. 14, 32).

 

Ora, o Evangelho deste primeiro domingo do Advento assegura-nos que Jesus Cristo, o grande Rei sobre cujo flanco esta escrito o sinal do poder infinito, Rex Regum et Dominus dominantium. (apoc., XIX, 16), deve vir do céu a julgar a terra. Que somos nós diante dEle? Acaso pretendemos resistir-lhe?

 

Obremos sabiamente como o pequeno rei da parábola: enquanto ainda está longe, enquanto ainda estamos em tempo, peçamos-lhe os pactos de paz, e sujeitemo-nos a todos os seus doces mandamentos.

 

 

3. NO DIA DO JUÍZO OS PAPÉIS SERÃO INVERTIDOS.

 

Lc. 21, 25-33.

Longe da sua pátria, sozinho numa triste gruta, entre as mais ásperas penitências do estudo, S. Jerônimo chorava o tempo passado nas dissipações. Parecia-lhe haver ofendido por demais o Senhor, e que todas as asperezas que ele infligia ao seu corpo não bastavam para aplacar a ira de Deus. Tinha medo do juízo que o Senhor devia fazer da sua alma. E, de noite, quando ouvia o silvo do vento, parecia-lhe ouvir o som das trombetas angélicas que chamavam os mortos ao vale de Josafat para a sentença final: então pulava do seu duro catre, prostava-se de joelhos, e, batendo-se com os seixos da espelunca, invocava a misericórdia de Deus.

 

E era um santo.

 

Que devemos então dizer nós, que tantos pecados temos cometido? Que será, ó cristãos, da nossa alma quando nos acharmos perante o tribunal de Deus?

 

Confessemo-lo com coração sincero: pensamos pouquíssimo nestas verdades. Elas nos parecem coisas tão longínquas, que quase se perdem e se diluem na imensidade do tempo, como se nunca devessem suceder. Às vezes temos a ilusão de que aos outros sim, porém a nós elas nunca sucederão.

 

E, no entanto, aquele dia virá.

 

No dia de hoje Jesus fala-nos muito claro. Depois de sinais grandiosos e espantosos que se desenvolverão no céu e sobre a terra, Ele chegará fulgurante de poder e de majestade. E os papéis serão invertidos.

Então chorarão os que gozaram; ao contrário, os que na vida sofreram, os que semearam de lágrimas o seu caminho, estes serão cumulados de gláudio imenso.

 

O pensamento do que acontecerá nesse último dia sirva também a nós, como serviu aos Santos, para nos fazer passar bem o tempo da vida que ora vivemos.

 

1- Chorarão os que gozaram.

 

Quando, na guerra européia, os bolchevistas entraram na cidade de Sebastopol, enviaram à morte muitas pessoas sem sequer um processo. Levavam os condenados para sobre os escolhos, atavam-lhes aos pés grandes pedras, e depois os precipitavam no mar.

 

Assim foi justiçado um almirante. Mas, depois que ele foi lançado ao mar, eles se lembraram de que ele trazia consigo documentos importantes. Foi dada ordem a um mergulhador para pescar o cadáver. De fato, ele desceu à água; porém, mal tocara o fundo do mar, deu o sinal para ser içado.

 

Foi retirado louco de terror, pronunciando frases desconexas. Curado após alguns dias, narrou que, chegando ao fundo do mar, se achara perante uma espantosa assembléia: todos os mortos lá estavam eretos, e pareciam vir-lhe ao encontro para o ameaçarem com atroz vingança.

 

Era esse um fenômeno natural que, no momento, o mergulhador não soube explicar. Os cadáveres que já desde alguns dias estavam nas águas, tornados leves pela decomposição, tendiam a subir ao alto, mas não o podiam, por estarem firmados, nos pés, pelas pedras a que estavam amarrados.

 

Se a vista de alguns cadáveres que bamboleavam sob o impulso das correntes marinhas fez enlouquecer de espanto um homem já habituado ao risco, pensai no que será quando todos os pecados se apresentarem à mente em toda a sua fealdade, e envolverem a alma para esmagá-la e oprimi-la sob o seu peso! Coisa bem diversa dos cadáveres vistos pelo mergulhador! Aqueles furtos, aquelas desonestidades, aquele ódio, aquele escândalo que em vida eram objeto de regozijo, tornar-se-ão motivo de horror, de angústia, de pranto.

 

Chorarão os que gozaram.

 

O escafandrista de Sebastopol pôde dar o sinal, e assim tiraram-no das águas; mas diante do tribunal de Deus não haverá nenhum meio de salvação. As trombetas angélicas já terão assinalado o término de toda misericórdia.

 

Ó cristãos, se aqueles que gozam a vida no meio de pecados devem esperar por um tal fim, não vale a pena invejá-los.

Ó cristãos, vale realmente a pena invejar os que gozam a vida no meio dos pecados?

 

2- Gozarão os que choraram.

 

Suponde que um filho, saído de casa para ir á guerra, seja feito prisioneiro em terra longínqua, estrangeira. Os seus, especialmente sua mãe, nada mais souberam dele. Morto? Desaparecido? Ninguém pode dizer coisa alguma.

Termina a guerra, e ele quer voltar para casa, mas não pode: é-lhe absolutamente proibido. Quereria ao menos escrever algumas linhas, dizer aos seus que está bem, que venham buscá-lo, que lhe façam saber se sua mãe ainda está neste mundo: mas não lho permitem.

 

Ora, suponde que, um dia, esse soldado possa fugir, e, depois de viagens e esforços e fadigas sem número, uma noite ele chegue finalmente à sua aldeia e, empurrando cautelosamente a porta da sua casinha rústica, ao frouxo clarão da candeia, ele veja o rosto de sua mãe; dizei-me, poderíeis imaginar o delírio de alegria que se teria naquela casa e naquela aldeia?

 

Contudo, é esta uma imagem pálida daquilo que sucederá para os bons no dia do juízo universalNa vida, nós somos soldados que combatem para conquistar a pátria celeste. Neste vale de exílio, quanto trabalho, quantos esforços, quantas lutas para vencermos, para nos mantermos livres! Mal vencemos uma prova, outra mais dura começa. Parece-nos já possuirmos o Paraíso, e eis que a tentação, uma borrasca ameaça arrebatar-no-lo. A vida é sempre assim. Mas no dia do juízo tudo estará findo; a dor não passará de uma doce recordação. Começará a festa perene.

 

Se vivêssemos os nossos dias sob a luz que vem desse dia, como carregaríamos de bom grado a nossa cruz! Os Santos compreendiam muito bem estas coisas.

 

S. Pedro Mártir, exorcista da Igreja de Roma nos primeiros tempos do cristianismo, quando foi lançado em prisão pela fé, disse ao carcereiro estar pronto, em nome de Cristo, a livrar a filha dele do demônio de que estava possessa havia vários anos. Surpreso ante tal proposta, o carcereiro perguntou-lhe por que não se servia da onipotência do nome de Jesus para se livrar a si mesmo da prisão.

 

E ele: “Conheço muito bem as vantagens dos meus grilhões, e por motivo algum quereria libertar-me”.

 

Se pudermos levar um pouco de conforto a nossos irmãos, faça-mo-lo sempre de bom grado; porém, ao contrário, as nossas cruzes, apreciemo-las como elas merecem, e, antes de pedirmos ao Senhor que no-las tire, peçamos-lhe, nos dê força para carregá-las com resignação e amor. Tanto mais gozaremos quanto mais houvermos trabalhado, sofrido, chorado por amor de Deus.

 

Conclusão.

 

Um rei idólatra, da Bulgária, deu ordem a S. Metódio para pintar no seu palácio a coisa mais terrível e espantosa que ele soube-se. O bom religioso, recomendando-se a Deus para que o seu trabalho resultasse bem frutuoso para a alma do rei, pôs-se a pintar o juízo universal. Completada a obra, avisou o rei que se dignasse de ir vê-la.

 

Este, avistando a terrível majestade de Deus no ato de amaldiçoar os condenados, foi presa de grande temor, e perguntou o que era que significava aquele espetáculo espantoso. Então o santo explicou-lhe com tanta ousadia, que, cedendo à graça divina, quis o rei idólatra receber o Batismo. Depois do que, quase todos, no seu reino, abraçaram a fé cristã.

 

Não um santo, porém o próprio Jesus Cristo fala a nós, no dia de hoje, sobre o juízo universal. De nos convertermos da idolatria, talvez não tenhamos necessidade; mas há que avivar a fé na vida futura. Há que pedir ao Senhor que nos faça desprezar as alegrias do mundo, e amar as nossas cruzes, que nos fazem ganhar as alegrias do céu.

 

 

4. O JUÍZO, PARA OS ELEITOS, SERÁ UMA CONSOLAÇÃO.  

 

 Lc. 21, 25-33.

 

Austera é a verdade do juízo universal.

 

Ainda soam ao nosso ouvido as palavras aterradoras que lemos, domingo passado, no Evangelho; na nossa mente ainda repassam as tristes imagens de um mundo em chamas e de um firmamento desfeito.

 

Hoje, o Evangelho retorna ao mesmo assunto, porém não mais para nos oprimir de pavor, e sim para nos elevar a uma grande esperança. O sol, a lua, as estrelas darão tristes sinais, e a consternação passará sobre os povos; o mar rugirá, e os homens morrerão de medo na expectação do que sucederá. E virá de lá das nuvens, em poder e em glória, o Filho do homem. Quando sucederem estas coisas, vós – que sois bons – levantai a fronte, pois está próxima a vossa redenção. Levate capita vestra: quoniam appropinquat redemptio vestra.

 

Jesus dirige-nos estas boas palavras justamente no I Domingo do Advento. Preparemo-nos para o Santo Natal, que é a recordação da primeira vinda de Jesus ao mundo; preparemo-nos bem, e achar-nos-emos contentes na segunda vinda de Jesus ao mundo, para o juízo universal.

 

O mundo se desfará. Porém nós não seremos do mundo, e olhá-lo-emos desmoronar-se, seguros, como se desmoronasse a casa de outro; antes, como se desmoronasse a prisão onde tanto padecemos e choramos. Então levantaremos com alegria a nossa cabeça para os céus, aguardando a redenção; virá trazer-no-la Jesus.

 

E Ele;

Redimir-nos-á do mundo.

Redimir-nos-á da morte.

Redimir-nos-á da dor.

 

1- Redimir-nos-á do mundo.

 

A Sagrada Escritura diz muitas vezes que Deus fez todas as coisas para os bons.

 

Contudo, se considerarmos somente a vida presente, os bons estão constrangidos neste mundo, como emigrados numa terra estrangeira, onde são mal vistos pelos habitantes, mal tolerados pelas leis, perseguidos.

 

De fato, aos justos, o mundo não oferece senão seduções, perseguições, desprezo.

 

a) O juízo final livra os eleitos das seduções do mundo.

 

Muitas são as seduções que o mundo põe por obra para arruinar os bons: gravuras, modas, as conversas obscenas nas ruas, nas praças, nos locais de trabalho; os maus exemplos dos escandalosos. E a nossa natureza, já corrompida pelo pecado, nestas ocasiões quotidianas sente-se fraca, e treme. “Oh! Infeliz de mim! - exclamava por isso S. Paulo – quem me livrará deste corpo de morte?” livrar-me-á Jesus Cristo, no dia do juízo, quando aparecer a cruz como estandarte de vitória. Bem-aventurados, então, os que houverem vencido as seduções do mundo.

 

b) O juízo final livra os eleitos das perseguições do mundo.

 

Além disto, nesta vida os justos são condenados a viver como os iníquos, são confundidos com eles; são chamados hipócritas mais do que eles; são perseguidos de mil modos. No dia do juízo os bons serão vingados: haverá a separação, e ver-se-ão as perfídias e as injustiças dos maus.

 

Quando Deus mandou Josué tirar do meio do povo Acan, homem escandaloso, e faze-lo morrer, disse: “Levanta-te, e santifica o povo”Surge et sanctifica populum. (Jos., 7, 13).

 

Quando Judas saiu do cenáculo, para executar o seu detestável intento, Jesus sentiu-se aliviado de uma angústia mortal, e exclamou: “Finalmente o Filho do homem é glorificado”Nunc clarificatus est Filius hominis. (João, 13, 31).

Esta santificação, esta glorificação será dada aos bons no dia final, quando os anjos separarem os justos dos injustos.

 

c) O juízo final livra os eleitos do escárnio do mundo.

 

Enfim, nesta vida as pessoas humildes são escarnecidas; as que suportam as ofensas são vis; as que não se dão aos prazeres são chamadas tolas; e as que se consagram a Deus através da vida religiosa são chamadas loucas. Mas será um momento de brusca admiração quando os mundanos virem essas pessoas num trono de glória.

 

“Ei-los lá – exclamarão eles com raiva – aqueles que nós considerávamos o refugo do mundo, aqueles que nós ridicularizávamos; agora eles estão na luz e na alegria dos filhos de Deus. Nós os pensamos estúpidos, e os estúpidos éramos nós”. Nos insensati! Vitam illorum aestimabamus insaniam. (Sap., V, 4).

 

2- Redimir-nos-á da morte.

 

Soberana única do mundo é a morte. Assalta-nos desde o primeiro dia de vida, e, lentamente como uma lima ou de um golpe como uma lâmina, mata-nos.


É verdade: a nossa alma não desce para sob as pedras frias e a terra fértil do cemitério; sobe ao céu, se está em graça;mas a alma é uma parte de nós, não é todo o nosso ser, e, por isto mesmo, no Paraíso ela ficará sempre incompleta enquanto não tornar a juntar-se ao corpo. Pois bem: no juízo final seremos redimidos da morte. Ressoarão as trombetas para a ressurreição, e onde quer que o nosso corpo esteja, ou em terra ou no mar ou espalhado no vento como leve pó, ressurgirá. Cristo, que morreu para vencer a morte, redimir-nos-á da morte, restituindo aos bons a sua própria carne, tornada luminosa, impassível, bela pela glória do Paraíso.

 

Aquele corpo que tanto padeceu para resistir ao demônio, é justo que seja premiado. Aqueles olhos que se fecharam com violência diante das vaidades mundanas, dos livros, das figuras perigosas, é justo que tenham de se reabrir para verem toda a glória de Deus. Aqueles ouvidos que se tornaram surdos a certas murmurações, a certas palavras, ímpias contra a fé ou sórdidas contra a virtude, é justo que escutem a harmonia dos anjos e o coro universal dos santos.

 

Aquela garganta e aquela língua que se haviam proibido o abuso no comer, no beber, no falar, justo é que entoem um cântico eterno e beatíssimo.

 

E aqueles pobres joelhos que souberam como é duro o pavimento das igrejas, ou a madeira dos bancos, ou os ladrilhos do próprio quarto junto ao leito, porque não hão de ter a sua parte de glória?

 

Vede então como não devem os bons temer o dia do juízo, mas esperá-lo como o camponês espera a primavera. E acaso não é todo primaveril o prognóstico que o Senhor nos deu para reconhecermos o tempo do juízo final?

 

Olhai a figueira, antes todas as plantas: quando vedes os gomos umedecer-se de visco, entumescer-se, romper a casca para porem ao sol um olho de tenríssimo verde, dizeis: está próxima a primavera. Pois bem: quando começarem os sinais no sol e nas estrelas, alegrai-vos! Pois está às portas o reino de Deus”.

 

Como uma árvore que acorda do inverno, nós acordaremos da morte.


Com estes sentimentos morria, queimado vivo, o mártir S. Piônio. Enquanto as chamas, crepitando por debaixo, ascendiam para lhe lamber os membros contraídos no espasmo atroz, enquanto a fogueira o envolvia numa tormentosa bandeira de fogo, ele gritava: “Morro assim por gosto; para que todo o povo saiba que depois da morte há a ressurreição da carne”. Depois a fumaça e o fogo atingiram-lhe a boca, e ele não falou mais.

 

3- Redimir-nos-á da dor.

 

A terra é um vale de lágrimas: a miséria, o trabalho, as ilusões, as desgraças, as doenças, a morte...  Todos sofrem, porém os bons mais do que todos, por haverem recusado as ilícitas consolações do mundo.

 

Mas assim não será sempre. Quando começarem os sinais do fim do mundo, vós, ó bons, levantai a fronte, porque esta próxima a redenção da dor: e não mais sofrereis. Levate capita vestra: quoniam appropinquat redemptio vestra.

Não mais haverá choro; ou, se chorarmos, será de alegria. Toda tristeza será convertida em gáudio. Toda lágrima será enxugada no rosto.

 

O Paraíso! Alguma vez já pensastes bem no Paraíso? Imaginai aquela imensa região de toda beleza, dos cantos e das harmonias, de luz, de sorriso, de alegria: e nós lá estaremos. Lá, com o nosso corpo, nós em pessoa, e todos nos amarão; porém, mais do que todos amar-nos-á Deus.

 

“Ó Senhor! Como é belo estarmos aqui... .” (Mt, 17, 4), exclamava S. Pedro no auge da alegria; e, no entanto, não via o Paraíso. No Tabor não havia mais do que uma pálida revelação da infinita beleza do Senhor. Que será, então, no Paraíso, quando virmos todo o Senhor? Quem sabe o que diremos?... Não diremos nada: amaremos. O que mais importa é ai chegarmos.

 

Jônatas, contra a proibição do rei, em tempo de batalha provara um pouco de mel. Agora era condenado à morte. O infeliz lamentava-se no desespero: “Desgraçado que fui Saboreei uma gota de mel, e eis que devo morrer...” Mais desgraçados nós, se, por saborearmos a venenosa doçura do pecado, devêssemos perder para sempre a doçura eterna do Paraíso.

 

Conclusão.

 

Levate capita vestra; quoniam appropinquat redemptio vestra.

 

Santa Catarina de Sena, ouvindo falar do juízo universal, enquanto todos tremiam ela sorria feliz.

“Por que?”, perguntaram-lhe.

 

“Porque penso que Aquele que virá julgar-me é esse Jesus a quem tanto amo, por quem sacrifiquei a minha juventude e toda a minha vida”.

 

Amemos nesta vida Jesus Cristo, e o seu juízo não nos infundirá pavor.

 

 

 

5- FUGI DA IRA DIVINA NO JUÍZO UNIVERSAL.

 

Lc. 21, 25-33.

 

Os céus, como um toldo gasto pelo tempo, rasgar-se-ão, deixando cair as estrelas. Sobre a terra ouvir-se-á o profundo rugido do mar que se entornará, e o estrondo das águas a se precipitarem. As turbas humanas, amedrontadas, tremerão na expectação terrífica.

 

Então o Sinal do Filho do Homem aparecerá no céu: e todas as raças chorarão na terra. Então o Filho do Homem virá sobre as nuvens do céu: e os anjos, com as trombetas, fá-las-ão soar sobre os continentes da terra.

 

Como veremos Cristo naquele dia? Imagino-o conforme o pincel de Miguel Ângelo o pintou na parede da Capela Sistina. A mão direita levantada poderosamente para abater, e a esquerda dobrada para mostrar o rasgão do peito, como a dizer: “Firo-vos por não haverdes correspondido ao meu coração!” Nada é terrível como a vingança de um amor ultrajado; depois, se este amor é o de um Deus, a sua vingança só eterna pode ser: o inferno. Recordemos as maldições de Jesus contra as cidades ingratas ao seu amor.

 

Milagres e pregações certamente não haviam faltado aos lugares em torno do lago de Genesaré, e especialmente a Corozaim, a Betsaída, a Cafarnaum; e, no entanto daquela região, o Mestre virou-se para trás para, com a voz velada de uma amargura profunda, maldizer: “Ai de ti, Corozaim! Ai de ti, Betsaída! Se Tiro e Sidon, longínquas cidades da Fenícia, tivessem podido ver uma parte mínima dos prodígios que vós vistes, ter-se-iam convertido, e teriam feito penitência dos seus pecados. Em verdade vos asseguro que no dia do juízo haverá misericórdia para estas, mas não para vós. Haverá misericórdia para Sodoma incendiada pelo meu furor; mas para Cafarnaum, onde debalde prodigalizei o meu amor, não mais haverá misericórdia”. (Mt. 11, 20-24).

 

Semelhante aquelas cidades ingratas é também a nossa alma. Quantas finezas afetuosas não tem usado conosco o Senhor! Desde o dia do nosso nascimento até hoje, é uma longa cadeia de preferências divinas, às quais talvez não tenhamos correspondido. Ai de nós! No dia do juízo haverá misericórdia para tantos infelizes que não sabiam orar, que não podiam escutar uma prédica, mas para nós não!... Ai de nós se não fugirmos à ira futura.

 

Os nossos anos já voam para o seu fim com a rapidez de uma roda; já a morte, furiosa, nos está às costas. Enquanto ainda nos resta um pouco de tempo, corrijamo-nos; acendamos as nossas lâmpadas com o óleo da fé e das boas obras; preparemo-nos para o advento do divino Juiz.

 

Ai de nós se não fugirmos da ira futura!

 

No dia do juízo final, duas coisas causarão o maior pavor: o aparecimento da Cruz, e o dAquele que nela foi crucificado. E, se nesta vida nós não nos fizéssemos amigos da Cruz e do Crucificado, não seria um belo para fugirmos à ira futura, e acharmos misericórdia naquele momento supremo?

 

Portanto, façamo-nos amigos da Cruz.

Façamo-nos amigos do Crucificado.

 

 1. Amigos da Cruz.

 

Fazer-se cavaleiro de Carlos V não era coisa fácil, e para isso muitos haviam trabalhado inutilmente. Mas, no dia da sua coroação, quis o imperador que qualquer corajoso pudesse conseguir aquela honra, contanto que se deixasse percutir pela sua espada.

 

Era o dia 24 de fevereiro de 1530, em Bolonha: coroado com a coroa férrea, Carlos V saía de S. Petrônio, ao lado do Papa Clemente VII, e com garbo montou num magnífico corsel; duas apinhadíssimas alas de povo abriam-se à sua passagem. E eis que jovens destemidos, homens fortes, velhos senhores, vêm ao meio, inclinam a cabeça e dizem: “Quero ser cavaleiro”. Percutindo-os com o punho da espada, Carlos V respondia: “Esto miles” (Sê soldado). Os postulantes eram muitíssimos, e de toda parte ouvia-se clamar: “Sire, sire, a mim! A mim!”.

 

Finalmente o imperador sentiu faltarem-lhe as forças: “Não posso mais”, suspirou; mas o grito dos pedintes crescia a cada passo: “A mim! A mim!”. Então ele pegou a espada e atirou-a sobre o povo, exclamando: “Amai a minha espada e a minha guerra: faço-vos todos cavaleiros”. “Todos! Todos!” Um brado de alegria irrompeu por toda a cidade: cada um queria beijar a espada imperial. À noite, Bolonha ardeu de fogo e ecoou de músicas triunfais.

 

Este episódio da história bolonhesa serve-me para imprimir na vossa mente o conceito do sofrimento cristão. O nosso Rei imortal, Jesus Cristo, passa pelas cidades deste mundo. Todo aquele que quer ser seu cavaleiro, todo aquele que quer triunfar com Ele no dia final da sua vitória, deve deixar-se percutir pela sua espada: a Cruz. Por pouca dor Ele nos retribuirá uma alegria infinita; por breve guerra, conduzir-nos-á a uma vitória eterna.

 

1- Amai, pois, a sua cruz! E ama-lá-eis quando, com fé, com paciência, suportardes as tribulações que a cada dia da vida encontrareis. Considerai como fêz Jesus Cristo, o Rei divino, e depois segui-o: factus oboediens usque ad mortem, mortem autem crucis. (Fil., II, 8). E por que nos rebelarmos quando a Providência de Deus nos fere com a sua espada nos haveres, na família, na saúde? Não sabemos que, se Deus nos toca, é para nos fazer seus cavaleiros no Paraíso? E havemos de imprecar contra Ele?

 

2- Amai, pois, a sua guerra! Ela é guerra contra as seduções do mundo. Sempre e por todos os lados estamos cercados de perigos espirituais: o mundo é todo uma malignidade.

 

Amai a sua guerra! Ela é guerra contra nós mesmos. Há em nós duas partes contrastantes: uma parte é animal e terrena, a outra é espiritual e celeste; a primeira eleva-nos ao bem, a segunda abaixa-nos ao mal. É esta parte de nós que devemos sufocar e renegar com as suas inclinações perversas, com os seus afetos venenosos.

 

Se tivermos amado a cruz e a guerra contra o mundo e contra nós mesmos, não sentiremos pavor ao aparecimento do Sinal do Filho do Homem, no dia do juízo. “Eis a cruz!” clamarão os Anjos; outros chorarão, porém não nós, que naquele momento a saudaremos com as palavras de Santo André Apóstolo: “Salve, ó cruz, longamente carregada! Salve, ó cruz, com alegria esperada! Acolhe-me sob a sombra do teu braço direito, porque fui discípulo dAquele que penduraram em ti!”

 

2- Amigos do Crucifixo.

 

Para nos tornarmos amigo do Crucificado não há caminho melhor do que nos fazermos amigo dos pobres, dos doentes, de todos os que sofrem, de todos os que, de qualquer modo, estão crucificados na alma ou no corpo.

 

Na Turíngia não havia dor que Santa Isabel da Hungria não suavizasse, não havia necessidade que ela não socorresse, não havia desventura que ela ignorasse. Acorria às choupanas dos doentes, assistia os moribundos, vestia os nus, recolhia e instruía os órfãos. Nas grades do seu palácio, os pobres apinhavam-se cada dia, e nenhum se retirava sem algum consolo.

 

Uma vez ela deixou entrar nos seus aposentos um doente asqueroso; antes, ela mesma com suas mãos finas e cândidas começou a curar-lhe as chagas, a lavá-las, a beijá-las... Os servos, horrorizados, exclamaram: “Que estais fazendo! Que estais fazendo!...” Porém Isabel, tranqüilíssima, respondeu: “Beijo as chagas de meu Senhor Jesus Cristo: assim elas não mais me farão pavor no dia do juízo. É nesse dia que eu penso, e para Ele, como posso me preparo.

 

Era verdadeiramente uma rainha sábia, da sabedoria do Evangelho. De fato, o Evangelho diz abertamente o valor e a estima que será dada às boas obras no juízo universal. O grande Rei dirá aos que forem acolhidos à sua direita: “Vinde, benditos de meu Pai, a tomar posse do reino que desde o princípio do mundo eu vos tinha preparado. Achaste-me com fome e deste-me de comer; vistes-me nu e me vestistes; encontrastes-me peregrino na estrada e me abrigastes; soubestes-me prisioneiro e me visitastes; e, se estive doente, assististes-me”. E os justos, admirados, perguntar-lhe-ão: “Talvez te enganes, já que nunca achamos famintos, nem te vimos nu, e nem mesmo peregrino pela estrada, e nem também prisioneiro nem doente...”. “Não, não! - responderá o Rei – não me engano: tudo aquilo que fizeste a ao mais pequeno, ao mais esquecido entre os homens, a mim mesmo o fizestes”.

 

S. João Crisóstomo adverte-nos a não considerarmos como uma perda o bem que fazemos, mas sim como um ganho; nós damos pão, e em troca receberemos o Paraíso; damos uma roupa , e em troca recebermos a veste nupcial para entrarmos no banquete dos céus; concedemos hospedagem sob o nosso teto, e teremos toda a eternidade; perdoamos pouco, e seremos perdoados em muito; enxugamos as lágrimas alheias e seremos alegrados para sempre. Digo-vos que nem mesmo um copo de água pura oferecido por amor de Deus, será perdido! Antes vos digo que no dia do juízo final nós não possuiremos senão aquilo que houvermos dado.

 

Conclusão.

 

S. Felipe Benizi, religioso da Ordem dos Servos de Maria Virgem, estava morrendo.

 

Além da doença, além da dor, havia dias em que o atormentava uma terrível visão. Parecia-lhe já se achar perante o tribunal de Deus, e em torno dele surgiam os demônios a exprobrar-lhe os pecados de sua vida passada, mesmo os mais remotos, mesmo os mais pequenos... ante essa vista, ante essas palavras, o agonizante abria os olhos horrorizado, tremia, e não tinha mais esperança. “Dai-me o meu livro! Dai-me o meu livro!” gritava ele com voz apavorada.

 

Dos presentes, alguns correram a tomar um livro, outros, outros; mas ele o recusava a todos, sem achar repouso. Finalmente, um percebeu que os olhos do moribundo se haviam fixado num Crucifixo ali ao lado; tomou-o e colocou-lhe entre as mãos gélidas e suadas.

 

Mal o teve, como um sedento ele o pôs sobre a boca para o beijar ansiosamente: beijou o lenho da cruz, beijou as chagas d’Aquele que a ela estava suspenso. Seus olhos iluminaram-se como ao surgir de uma aurora interior; a sua fronte expandiu-se numa doce serenidade; o seus lábios distenderam-se num dulcíssimo sorriso. E assim la se foi ele ao encontro do juízo de Deus.

 

Amara a Cruz, amara o Crucifixo com todas as suas forças. Que haveria de temer.

 

 

6- PREVINAMOS O JUÍZO DE DEUS.

 

Lc. XXI, 25-33.

 

No céu o sol, a lua e as estrelas empalidecerão; na terra, os homens tremerão na expectação. E eis que o Filho do Homem virá sobre nuvens com poder e glória, a julgar os vivos e os mortos.

 

Com estas palavras cheias de mistério e de pavor, Jesus nos anuncia o juízo universal. Alguns, quiçá muitos, pensarão: “Quem sabe quantos milênios ainda deverão passar até que chegue o fim do mundo?” Contudo, embora esteja longe o último dia de todo o gênero humano, porventura daí se segue que esse último dia esteja longe também para cada um de nós? Em verdade, para cada um de nós o mundo acaba no dia da nossa morte; então, para esse, o sol se apagará, e a lua findará de pratear os telhados, os hortos e os campos, e as estrelas desaparecerão todas juntas na imensa treva que pesará sobre as suas pupilas extintas; então o divino Juiz virá julgar.

 

De nós, ninguém conhece o dia e a hora do seu juízo, e no entanto ele é inevitável, e não está longe. A verdadeira sabedoria consiste em preveni-lo, praticando os três conselhos repetidos muitas vezes pelo Senhor.

 

Estai alerta, porque não sabeis quando virá.

 

Não julgueis, e não sereis julgados.

 

Fazei misericórdia, e achareis misericórdia.

 

1- Estai alerta.

 

No Evangelho, é uma sucessão incessante de advertências à vigilância, à preparação, na espera fiel de Cristo que volta.

 

Será como um ladrão que chega de noite, quando ninguém o suspeita. Será como um laço que vos prende pelo caminho quando menos pensais. Será como um grito fulmíneo que estronda ao ouvido e rompe os sonhos lisonjeiros da vida longa, de ganhos, de prazeres: “Estulto, esta noite morrerás”. Será como um rei que de improviso aparece no meio do salão dos convidados, perscruta como a pupila severa, e descobre aquele que esta sem veste nupcial. “Pegai-o, e lançai-o fora, nas trevas!”

 

Será como o esposo que chega no meio da note, enquanto todos dormem, toma consigo quem tem a lâmpada provida de óleo, e aos outros que batem para entrar responde: “Não vos conheço e não vos abro”. Será como o proprietário que volta quando quer, e chama os seus súditos para prestarem conta dos talentos que,em partindo, lhes confiara. Ai do servo iníquo que os não houver feito render! Será, enfim, como um pai de família que partiu para uma viagem misteriosa, deixando sua casa e sua fazenda em mãos dos servos, fixando a cada um a sua obra, e recomendando ao porteiro vigiar.

 

“Diga-nos quando voltará”. “Não posso dizê-lo. Talvez uma manhã ao canto do galo, ou talvez ao meio dia, enquanto se esta comendo. E quiçá uma noite, acordando, ouvireis o meu passo na estrada. O que digo a vós, digo-o a todos: vigiai!” (Mc. 13, 33-37).

 

O patrão foi-se para longe.

 

Algum servo prudente e fiel começou logo a executar as ordens recebidas, preparando sem desperdício e distribuindo com pontualidade, no momento oportuno, a comida aos familiares. Feliz o servo que, à sua chegada, o patrão achar fazendo assim! Em verdade vos digo, ele o porá à testa de tudo quanto possuí.

 

Ao invés, algum outro servo indolente e mau, passado algum tempo disse consigo mesmo: “Meu patrão esta demorando... quem sabe quando virá?... Talvez nem venha mais”. E começou a descuidar o seu trabalho, a litigar e a espancar os companheiros de serviço, a comer e a beber com os bêbedos. Desgraçado do servo que o patrão achar fazendo assim! Sobrevindo num dia em que não será esperado, numa hora que o servo não sabe, o patrão mandará matá-lo, expulsá-lo-á para entre os hipócritas malignos; para lá onde haverá pranto e ranger de dentes. (Mt. 24, 45-51).

 

Portanto, cristãos, toda a nossa vida neste mundo é uma espera, é um tempo de advento. Mas, especialmente, deve ser uma espera fervorosa nesta parte do ano litúrgico que se chama justamente “Advento”.

 

Ninguém se engane, dizendo consigo: “O meu patrão esta demorando... quem sabe quando virá?... tenho tempo”. Ninguém ouse ficar em pecado mortal: ponde-vos todos na graça de Deus; vivei sempre em graça de Deus.

“Estejam vossos flancos cingidos e vossas lâmpadas acesas: sede semelhantes aqueles que esperam o seu patrão...”. (Lc. 12, 35-36).

 

2- Não julgueis.

 

Outro conselho do Juiz divino para prevenir nosso bem é o de nunca julgarmos o próximo. “Não julgueis, e não sereis julgados”. Eis aqui alguns motivos que nos persuadirão melhor a praticá-lo.

 

a) Não devemos julgar, porque ninguém nos constituiu no encargo de juiz para com o nosso próximo. Todos estamos no mesmo plano, todos somos irmãos; só um esta acima de nós, superior e juiz de todos: a seu tempo Ele virá. Entrementes, ninguém usurpe esse oficio que é seu só.

 

b) Não devemos julgar, porque cada próximo nosso é súdito e servo de Deus. Quer ele caia, quer fique em pé, isto é lá com o seu patrão, e não conosco. (Rom. 14, 4-10).

 

c) Não devemos julgar, porque somos incapazes de ser imparciais: no olho do próximo nos incomoda até a palha, e no nosso suportamos até uma trave. “Quantos homens – escreve S. João Crisóstomo – caem neste defeito! Se vêem um padre que tem duas vestes, repreendem-no opondo-lhe a palavra do Senhor; e eles passam o dia trabalhando por avareza, e fraudam. Se vêem que come bem, acusam-no; e eles continuam a passar bem e a embriagar-se. Não pensando que assim acumulam os pecados e preparam para si um juízo inescusável e duríssimo”. (Hom. 23, 2).

 

Cristãos, neste tempo do Advento, cada um de nós deve estar tão ocupado em se corrigir dos seus defeitos, graves e numerosos, que não perceba os alheios. Não devemos achar nem gosto nem tempo para qualquer palavra de critica ou de murmuração.

 

 

3- Fazei misericórdia.

 

Já desde agora nós sabemos exatamente como se desenrolará o juízo, e que palavras serão pronunciadas pelo Juiz.

 

Quando o Filho do Homem vier na sua glória com todos os seus anjos, então sentar-se-á no trono, e dirá aos que estiverem à sua direita: “Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do reino que vos esteve preparado desde a criação do mundo. Porque tive fome, e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; fui estrangeiro e me acolhestes; estive nu e me vestistes; doente, e me assististes; em prisão, e viestes visitar-me”.

 

E, admirados, os justos responderão: “Senhor, quando foi que te encontramos com fome e te demos de comer? Com sede e te demos de beber?... Prisioneiro e te visitamos?” E o rei lhes responderá; “Em verdade vos digo; todas as vezes que fizestes isso a qualquer um de vossos irmãos, a mim o fizestes”.

 

À admiração dos maus o rei dará ainda a mesma resposta, porém invertida: “Em verdade vos digo: todas as vezes que não fizestes isto a qualquer um de vossos irmãos, a mim o recusastes”. E estes irão para o castigo eterno... (Mt., 25, 31-46).

 

Muitos que agora se julgam cristãos perfeitos porque observam exteriormente as práticas religiosas, porque assistem às cerimônias oficiais, então ver-se-ão repelidos; e, ao contrário, muitos que agora fazem humildemente o bem e se julgam pecadores, ouvirão então as palavras que lhe abrirão as portas da alegria: “Era eu, aquele órfão; era eu aquele surdo-mudo, aquele idiota; era eu aquele velho do asilo; era eu aquele operário a quem dava trabalho honesto e recompensa suficiente, era eu que chorava naquele leito de hospital lá no fundo do corredor; era eu aquele prisioneiro na sua cela, quando tu o consolavas”.

 

Onde quer que há uma miséria, um sofrimento, uma humilhação, uma necessidade, ó cristãos, aí há oculto e mascarado o nosso Juiz. Usemos de misericórdia com esses, e Ele nos fará misericórdia.

 

Conclusão.

 

Para concluir, ouvi como é sábio este outro conselho que esta no Evangelho de S. Mateus: “Enquanto ainda estas a caminho, põe-te de acordo com o teu adversário. Do contrário, no instante em que chegares, ele te entregará aos guardas e serás encarcerado”.

 

Enquanto ainda somos peregrinos neste mundo, ponhamo-nos, pois, em paz com o Senhor, a quem havemos ofendido. Não esperemos para quando chegarmos à morte.

 

Corre tu, antes, a apresentar-te perante ele com o arrependimento, com a confissão. Corre a apresentar-te a Ele, antes que ele te faça comparecer perante si. Previne para não seres prevenido.

#

 

2º Domingo do Advento

 

Pensamentos sobre os Evangelhos e sobre as festas do Senhor e dos Santos.

 

Pe. João Colombo.

Imprimatur: Mons. J. Lafayette

 

Escrito entre 1927-1938.

Primeira edição em 1939.

 

- O PRECURSOR

 

São Mateus. 11, 2-10.

 

Estamos próximos do Santo Natal. E, por três domingos consecutivos – hoje, o vindouro e mais o outro – a Igreja, no Evangelho, envia-nos S. João para nos dizer: “Preparai os corações, pois o Senhor está para vir”.

 

Mas quem é esse S. João Batista que vem censurar-nos pelos nossos pecados, e persuadir-nos a fazer maior bem? Seria útil conhecê-lo um pouco. Escutai o trecho evangélico deste segundo Domingo do Advento, e da própria boca de Cristo conhecereis quem é o Precursor.

 

Estamos nas prisões de Maqueronte, e nelas João está recluso. Todos sabem por quê. E, até lá dentro, naquele lugar de martírio e de injustiça, chega a fama dos milagres realizados por Jesus. O Precursor, cuja alma impetuosa ardia do desejo de fazer conhecer ao mundo inteiro o verdadeiro Messias, enviou-lhe dois discípulos com esta mensagem: “És tu o Salvador, ou devemos esperar outro?”

 

João bem sabia que era ELE; mas, ante aquela pergunta, Jesus seria forçado a manifestar-se, e então também toda gente o reconheceria e o aclamaria.

 

O Divino Mestre acolheu com benevolência aquela mensagem, porque entreviu o amor com que a enviava, e mal os dois discípulos do Batista regressaram, Ele voltou-se para a multidão e disse:

 

“Quem fostes ver no deserto? Acaso uma cana agitada pelo vento?

 

“Quem, pois, fostes ver? Acaso um homem vestido na moda? Não; esta gente não se acha no deserto, e sim no palácio dos reis.

 

“Então, quem fostes ver? Acaso um profeta? Sim, digo-vos; um profeta e mais do que um profeta. Ele é o Anjo, predito por Malaquias, o qual caminhará adiante do Senhor”.

 

Poucas palavras, mas esculturais: ressalta delas, de um golpe, a grande figura de João Batista.

 

Por dentro, sem fraqueza: ele não é um caniço.

Por fora, sem molezas: não se vestia com luxo.

Por dentro e por fora, sem mancha de pecado: um anjo.

 

1- Não foi um caniço.

 

“Que fostes ver no deserto? Acaso um caniço agitado pelo vento?”

 

Aquela multidão que acorrera para escutar João devia conhecer muito bem essa planta, símbolo de fraqueza e de volubilidade. Devia tê-la visto, nas margens palustres do Jordão, tremer no ar, e curvar-se até à terra ao vento: se o vento soprava do Mar Morto, o caniço curvava-se para o mar de Genesaré; porém, mal o vento, mudando de direção, soprava do mar de Genesaré, o caniço curvava-se para o Mar Morto.

 

Era, pois, João por acaso, uma cana agitada pelo vento? Não; era um carvalho que não se curva a nenhum vento. Não como nós, que pela manhã fazemos um propósito e à noite o achamos transgredido; não como nós que, mesmo se nos confessamos cem vezes, cem vezes somos os mesmos de antes; não como nós, que somos caniços que se dobram a todo vento de tentação.

 

Um jovem monge era muito tentado. Uma vez, em que já não podia mais, correu a ter com Santo Isidoro, lançou-se por terra diante dele, e soluçava:

 

“Padre, por que não me ajudais?”

 

O santo soergueu aquela alma transtornada pelo vendaval, e, tomando-a consigo, disse: “Queres que eu te ensine a resistir?”

 

O jovem levantou os olhos cheios de lágrimas: “Foi para isto que eu vim”.

 

“Então eis o remédio; oração e mortificação”. O monge obedeceu, e todos os dias rezava e se mortificava: mas as tentações não cessavam. Então ele voltou a Santo Isidoro, e novamente lhe pediu remédio.

“Como! Caíste em pecado?”

“Não, graças a Deus”.

“Que queres então?”

“Quereria ficar sem tentações”.

 

Experiente da vida, o velho santo sorriu, e respondeu-lhe: “Vê: eu tenho setenta anos, e nem sequer um dia pude descansar; porém nunca me dobrei ao demônio, como um caniço, porque tenho rezado e me tenho mortificado. Vai, e faze o mesmo”.

 

Este episódio explica-nos bem duas coisas: explica-nos por que razão S. João Batista nunca cedeu a qualquer tentação, explica-nos por que razão, ao contrário, nós cedemos tão amiúde.

 

Próximo a todo homem há um demônio, inimigo de Deus e de nós, e o dia inteiro ele suscita pensamentos de ódio, desejos de coisas alheias, imaginações impuras. Há, pois, na vida momentos em que a tentação é tão forte que quase nos faz desesperar. São aqueles maus momentos que S. Francisco também experimentou quando, no inverno, se lançou na neve; são aqueles maus momentos que S. Bento também experimentou quando se lançou em cheio nos espinhos; são aqueles maus momentos que também experimentou Santa Catarina, quando exclamava: - Ó Senhor, mas onde estás? – são aqueles maus momentos em que o vento da tentação procura quebrar-nos como um caniço. Pois bem, recordemo-lo: sem oração e sem mortificação, é impossível resistir.

 

 

2- Não foi um efeminado.

 

“Que fostes ver no deserto? Acaso um homem luxuosamente vestido?”

 

O Precursor vivia na solidão havia muitos anos, sozinho, sem casa, sem tenda, sem servos, sem nada afora aquilo que vestia. E vestia uma pele de camelo, cingida ao flanco por um cinturão de couro. Aparecia alto, ossudo, queimado do sol.

 

A figura austera do Batista, e o louvor que Jesus fez do seu vestir, é uma forte censura para não poucos cristãos e cristãs que alimentam a vaidade do vestir: querem-no de luxo, moderno, escandaloso. Em tais trajes ousam até transpor o limiar da igreja, pôr-se diante dos puríssimos mármores do altar, diante do Crucificado nu e sangrento na cruz, diante de Jesus que vive na miséria dos nossos sacrários.

 

O que causa mais dor é ver como até as crianças, inocentes e ignaras do mal, pelos próprios pais já são vestidas pouco cristãmente. Esses pequenos que Jesus amava, que queria estreitados ao seu coração, crescem assim, mui depressa, na escola do mau exemplo. Ó mães que vos comprazeis em profanar a inocência de vossos filhos, sabei que o Senhor não pode abraçá-los desse modo; e, sem o abraço de Jesus, que há de ser de vossos filhos?

 

Bem sei as desculpas com que alguns procuram justificar-se, porém elas não podem ser acolhidas como boas.

 

a) Dizem eles: mas é a moda, é a moda que usa assim; nós vivemos no mundo, e temos de nos adaptar a ele.

 

Mostrarei a tolice desta desculpa com um exemplo: Dionísio de Siracusa era curto de vista e caminhava cambaleando, e não raras vezes sucedia-lhe topar em alguma coisa, derrubar mesinhas e quebrar vasos.

 

Parecia incrível, contudo, naquela corte, para agradar ao tirano, todos os cortesãos apertavam as pálpebras fazendo de ceguetas, e andavam tenteando, investindo contra cadeiras e mesas, e às vezes rolando pelas escadas. (O fato é narrado por Plutarco).

O mundo não só é um tirano de vista curta, mas é cego de ambos os olhos; e os que seguem a sua moda são mais cegos e mais estúpidos do que ele, e uma vez ou outra acabam rolando pelas escadas para ir ter no inferno.

 

b) Mas eu nunca tive intenção má seguindo as modas.

 

Desculpa por demais ingênua para ser válida.

 

Não quero discuti-la: lembrai-vos porém, de que, se não tendes idéias más, as fazeis vir aos outros.

 

Há na História Sagrada uma frase expressiva.

 

Um rei terrível, com cento e vinte mil infantes e vinte dois mil cavalos, sitiou a cidade de Betúlia: fez mesmo desviar o único rio que lhe dava água, e atormentou-a com a sede. Chorando lágrimas desesperadas, os sitiados prostravam-se na terra nua, invocando socorro do Céu.

 

Então surgiu uma viúva; vestiu os vestidos preciosos de quando era esposa feliz, ornou-se com colares de ouro e com jóias, e depois, sozinha, transpôs a porta e saiu da cidade sitiada, rumo ao inimigo em armas. Viram-na os soldados e conduziram-na ao general Holofernes. Viu-a, contudo, Holofernes e não a matou, porque sandália ejus rapuerunt eumBastaram duas sandálias para fazerem perder a cabeça aquele terrível guerreiro; e ele perdeu-a deveras, porquanto, naquela noite, cortou-lha Judite. (Judit. 10).

 

Mas de quantas outras pessoas, caídas em baixo, poder-se-ia repetir; dandalia ejus rapuerunt eum. (Judit. 16,11).

 

c) Então – dirão alguns – devemos realmente vestir-nos com pele de camelo, à moda de S. João?

 

Não é isto o que eu digo. Digo-vos somente a palavra do Apóstolo: “Nolite conformari huic saeculo”. (Rom. 12, 2). Não queirais seguir a moda escandalosa deste mundo.

 

3- Foi um anjo.

 

“Que fostes ver no deserto? Acaso um profeta? Sim, digo-vos, um profeta, e mais do que um profeta. Um anjo que anuncia o Senhor”.

 

Pode-se louvar mais um homem? Nunca ninguém foi assim exaltado pelos lábios de Cristo. No Evangelho, porém, (Jo. 10, 40) há uma referência a S. João talvez pouco meditada.

 

Passado o Jordão, Jesus chegou onde o Batista costumava batizar. Os caniços trêmulos na margem, o deserto que aparecia numa extensão amarelada e uniforme, a água pura do rio impetuoso evocaram ao Messias aquela pessoa tão cara a Ele, e que um rei adúltero trucidara.

 

Comovido, e como que para se repousar naquela melancólica lembrança, Jesus passou ali. Et mansit illic. Todos compreenderam que o Mestre pensava em João Batista, mas não compreendiam como Ele pudesse amar tanto um homem que não tinha feito sequer um milagre.

 

Antes, muitos ousaram dizer-lhe: “Aliás, João Batista não fez milagresJoannes quidem nullum signum fecit”. (Jo. 41).

 

E Jesus não respondeu. Mas é tão fácil compreender a razão por que João não fez milagres! Foi para que pudéssemos imitá-lo na sua santidade. Por isto nestes domingos do Advento, a Igreja no-lo propõe como modelo.

 

Venham, pois, os avarentos mirar a sua cobiça num que recusou todos os bens terrenos. Venham os soberbos mirar a sua arrogância num que pregava: “È necessário que eu seja desprezado e que Ele, Cristo, seja honrado pelos homens”. Venham os desonestos mirar a sua alma enlameada num que viveu virgem a vida toda. Venham os gulosos mirar a sua voracidade num que não se alimentava senão de ervas e de mel silvestre.

E deste confronto deduzam um propósito de vida nova.

 

Conclusão.

 

Quando os Hebreus, arrancados da sua terra, foram confinados na Pérsia, alguns tementes a Deus tomaram o fogo sagrado do altar e esconderam-no num vale onde havia um poço fundo, sem água. E dentro dele depositaram-no em segurança, de tal forma que por todos foi ignorado aquele lugar.

 

Mas, quando, findos os anos de escravidão, eles voltaram a pátria, logo procuraram o fogo sacrifical. Foram ao vale, destamparam o poço fundo, mas ali o fogo se apagara, e eles não acharam mais do que água estagnada.

 

Então Neemias mandou que tirassem daquela água e pusessem-na sobre o altar, sobre a lenha, e se esperasse pelo nascer do sol. Apenas por trás das densas nuvens refulgiu o primeiro raio de sol, um grande fogo acendeu-se sobre o altar, e todos ficaram maravilhados. (II Mac. 1, 19-22).

 

Também nós hoje, confrontando a nossa alma com a de S. João Batista, achamos que no fundo do nosso coração não há mais o fogo do amor de Deus, porém a água estagnada da nossa tibieza, ou, pior, há a água lodosa dos pecados e das paixões.

 

Cristãos! Tomemos, chorando, este nosso coração cheio de misérias, e ponhamo-lo sobre o altar; apenas o Menino Jesus, sol das almas, no Natal que está próximo, raiar sobre o mundo, vê-lo-á, compadecer-se-á dele, e tornará a acender aquele fogo que, com os nossos pecados, nós extinguimos.

 

 

2- FORTALEZA

 

No Evangelho, do 2º domingo do advento, Jesus tece os mais belos louvores à fortaleza de S. João Batista; “Que fostes ver no deserto? Que foi contemplares ao longo das margens do Jordão? Não era, não, um caniço agitado pelo vento! Não era um homem molemente vestido”.

 

Quando Jesus falava, devia ter na mente os espessos canaviais que se formam ao longo das águas e que, batidos pelo sopro dos ventos, vergam ora para um lado, ora para outro.

 

Hoje o Batista, que não se deixou dobrar nem pela prepotência de um tirano coroado, nem pelas sensualidades da carne, deve ensinar-nos a sermos fortes contra o respeito humano, fortes contra as paixões.

 

1- Fortes contra o respeito humano.

 

Frederico II, imperador da Prússia, costumava ter no seu palácio e à sua própria mesa muitos homens insignes pela ciência ou pelas artes. Singular e extravagante como era, quis ele, um dia de sexta-feira, convidar a jantar um príncipe romano, católico, para lhe tentar a fé e por à prova a sua coragem religiosa. O imperador não era católico.

 

Mas as iguarias eram feitas com carne, e o príncipe romano, tranqüilo e desembaraçado, deixava-as passar, contentando-se com enganar a fome apenas com alguns pedacinhos de pão.

 

O imperador observava sem falar; mas, depois, entre brincalhão e sério disse: “Por que não comeis? Acaso não vos agrada a cozinha da Alemanha?”

 

“Não, Majestade, a vossa cozinha é excelente para os outros dias da semana, mas hoje, para um católico, é má. A Igreja proíbe comer carne na sexta-feira”.

 

Ante essa nobre e franca resposta, Frederico replicou: “Admiro-vos: prestastes uma grande homenagem à vossa religião! Agora passai a sala vizinha, onde estão preparadas comidas de magro. Também eu irei fazer-vos a honra que mereceis”.

 

Aquele príncipe de Roma não era um caniço agitado pelo vento. Era um homem de caráter. E tanto mais quando se achava a mesa do Imperador, entre tantas personalidades ilustres que não pensavam como ele.

 

Assim deveriam ser todos os cristãos. Se estivermos convencionados de que a nossa religião é a única verdadeira, de que Deus existe, de que Jesus Cristo é a única salvação, e de que fora d’Ele e da sua Igreja não há senão ruína eterna. Devemos nos sentir capazes de manifestar estas idéias mesmo exteriormente. Mas infelizmente ainda há cristãos de meias medidas, os quais não querem renunciar à sua fé, mas, ao mesmo tempo, não tem a coragem das suas convicções. São escravos de um sentimento vil que os dobra como caniços sob o vento. Tal sentimento chama-se respeito humano: um belo nome, mas pessimamente aplicado. Primeiramente é preciso respeitar a Deus, primeiramente é preciso respeitar a própria fé, e depois tenha-se também consideração com nossos irmãos.

 

Tende isto em mente quando, entre pessoas que falam mal, que vestem mal, que ofendem abertamente as leis de Deus, sentirdes medo de agir diversamente delas.

 

Aliás, freqüentemente sucede o que ocorreu ao príncipe católico à mesa de Frederico II. Aqueles mesmos que gracejam ou fazem as admirações, são os primeiros a admirar e a estimar os bons que têm a coragem das suas idéias. Às vezes, uma fé sincera e franca vale a conquista de almas para as quais os fatos valem bastante mais do que as palavras.

 

Recordemos, além disto, aquilo que Jesus afirmava aos seus discípulos e a todos aqueles que o seguiam: “Diante do meu Pai que está nos céus, eu também me envergonharei de quem se houver envergonhado de mim diante dos homens”. (Mt. 10, 33)

 

2- Fortes contra as paixões.

 

Antes de começar a fundar as grandes obras de caridade, S. Vicente de Paulo era pároco de uma pequena aldeia na França. A fama de sua santidade difundira-se pelas terras vizinhas, e, para ouvir as suas prédicas, para confessar-se com ele, acorriam até mesmo alguns que havia tempo não estavam em ordem com o Senhor.

 

Havia um conde famoso pelos muitos duelos que havia sustentado. Todas as vezes que era ofendido, mesmo levemente, ele desafiava o seu adversário para combater com a espada, e era sempre tão afortunado, que já se não contavam as suas vítimas. Uma vez, porém, ouvindo uma prédica de S. Vicente, ele foi tocado pela graça de Deus e converteu-se. Vendeu as suas terras, e, com o preço obtido, fundou mosteiros e consolou os pobres. Era preciso que S. Vicente o moderasse, tanta era a generosidade com que ele se dera ao Senhor. Mas restava-lhe ainda a espada que tantas vezes lhe servira para ofender o senhor, e ele não sabia decidir-se a separar-se dela.

 

Aquela espada mantinha sempre aceso nele um pouco de afeto a sua vida passada; e, como aos primeiros fervores haviam sucedido momentos de frieza, se ele continuasse a conservar aquela arma talvez voltasse a vida de antes. Mas, um dia, possuído da vergonha de tal fraqueza, ele para o seu cavalo, desce, traz a espada e quebra-a em mil pedaços contra uma rocha, e, tornando a montar, exclama: “Agora, finalmente, sou livre”.

 

Comparáveis a espada daquele conde são as paixões que cada um de nós traz consigo desde o nascimento. Alguns são inclinados à soberba, à vanglória, à arrogância. Outros, por sua vez, amam as coisas terrenas, tem o coração por demais apegado ao dinheiro, aos negócios. Outros, ainda, sentem a ânsia de gozar, e quereriam sempre e só satisfazer os seus maus instintos.

 

Ter as paixões não é um mal: é apenas sinal de ser homem. Porém elas podem tornar-se espadas cortantes, instrumentos de pecado, quando não são sujeitadas à lei de Deus. Se, com a firmeza de uma vontade resoluta, não colhermos as rédeas aos nossos pensamentos, aos nossos instintos, às nossas inclinações, tornamo-nos caniços agitados pelo vento, e, após um período breve de fervor e de bondade, logo nos dobramos para uma vida desregrada.

 

Não são os frágeis caniços, e sim as árvores robustas, que sabem resistir ao sopro ruinoso do vento; os caniços findam na corrupção da lama.

 

Para evitar este péssimo fim, é preciso seriamente despedaçar aquelas espadas. Um golpe só não basta. A vitória sobre as nossas paixões não é tão fácil e tão pronta como pode ser o quebrar a espada do duelo. É preciso resistir sempre e todo dia, toda hora que passa devemos dar dois golpes decisivos, persuadidos de que só a morte as quebrará para sempre.

 

Porém, quanto mais avançamos nesta luta espiritual, tanto mais nos tornamos fortes, e a graça de Deus, que se une à nossa vontade, dá à alma cristã uma doce segurança de viver no amor do Senhor.

 

Conclusão.

 

“Feliz o homem que não anda segundo o conselho dos ímpios, e põe a sua complacência na lei do Senhor. Ele é como uma árvore que é plantada ao longo de correntes de águas, a qual dará fruto a seu tempo, e tudo que ela faz resulta bem”. (Salmo I).

 

Os maus, ao contrário, são como caniços que o vento, passando, abaixa; antes, são como uma nuvem de pó que o vento levanta e dispersa. Impii tanquam pulvis quem projicit ventus.