Sextas Moradas
Capítulo 1
Mostra que, começando o Senhor a fazer maiores graças, há maiores provações. Descreve algumas por que passam os que estão nestas moradas. É bom para quem enfrenta tribulações interiores.
1. Comecemos, então, a ajuda do Espírito Santo, a falar das sextas moradas. A alma já está ferida do amor de com Deus e se consome em desejos de voltar a gozar aquela visão do Senhor que traz poderosamente gravada em si. Sempre que surge ocasião, procura desobrigar-se, como lhe permite seu estado de vida, de tudo que os impeça de estarem a sós.
Como disse, nesta oração não se vê nada, nem com os sentidos, nem com a imaginação (estou esclarecendo isso porque comparei essa graça a uma troca de olhares entre Deus e a alma).
A alma já está bem determinada a não procurar outro amor. Mas o Senhor não atende logo ao seu grande anseio de que se faça o noivado, pois quer que O deseje ainda mais e que lhe custe algo esse que é o maior de todos os bens. Embora tudo seja pouco para tão imensa graça, digo-lhes, filhas: aquela visão que já teve d’Ele é realmente necessária para convencer a alma a seguir adiante. Oh, valha-me Deus, quantas tribulações interiores e exteriores ela padece antes de entrar nas sétimas moradas!
2. Às vezes fico pensando que, se soubesse de antemão, dificilmente a fraqueza humana se determinaria a passar por tudo o que falta sofrer, por maiores que fossem os benefícios esperados. A menos que já tivesse chegado à última morada, pois nela a alma não teme mais nada que se oponha ao seu desejo de sofrer tudo por amor a Deus. Lá ela está quase continuamente em profunda união com Sua Majestade, e dele lhe vem a sua força.
Quero lhes contar algumas das tribulações que certamente se passa. Talvez nem todas sejam levadas por esse caminho, embora duvide muito que vivam livres de sofrimentos cá na terra, de uma maneira ou de outra, as almas que gozam tão genuinamente as consolações do céu.
3. Não pretendia tratar disso, mas talvez seja grande alívio, para quem esteja passando por essas aflições, saber o que sofrem outras almas que recebem graças semelhantes, pois, diante de tamanhas dificuldades, realmente parece que está tudo perdido. Não direi pela ordem que acontecem, mas sim como me vêm à memória.
Vou começar pela menor tribulação que é uma gritaria das pessoas mais próximas e mesmo de outras com as quais essa alma não tem intimidade e que até então nunca haviam se interessado por ela que “se faz de santa”, que “faz de tudo para enganar o mundo e levar os outros a se sentirem maus”, “porque cristãos melhores que ela dispensam esses formalismos” (note-se que não há formalismo nenhum, apenas zelo para guardar bem o seu estado).
Aqueles que considerava seus amigos afastam-se dela e fazem as críticas mais duras, dizendo que “está perdida e muito enganada”, que “são coisas do demônio”, que “vai acabar como aquela outra que se desencaminhou, pois isso é sinal de perda da virtude” e que “engana os confessores”. Procuram os confessores e lhes contam histórias de pessoas que se perderam assim, com mil zombarias e frases como essas.
4. Sei de uma pessoa que teve muito medo de não haver padre que a confessasse, tamanha era a perseguição que sofria. Eram tantas críticas que nem vou me deter nelas. O pior é que essa hostilidade não passa logo, mas dura a vida inteira, bem como a distância que quase todos mantêm dessas pessoas.
Vocês vão dizer que também há os que falam bem. Oh, filhas, mas como são poucos os que acreditam nessa graça comparados aos que a abominam! Além do mais, essa é outra aflição pior ainda. Porque a alma vê claramente que, se tem algum mérito, é dom de Deus, não seu, de modo nenhum, pois pouco antes era muito desafortunada e se envolvia em grandes pecados. Por isso, ouvir falar bem de si é um tormento intolerável, pelo menos no princípio. Depois nem tanto, pelas seguintes razões: a primeira, porque a experiência ensina que tão depressa falam bem como mal, e assim pouco importa o que dizem; a segunda, porque o Senhor lhe dá maior entendimento para reconhecer que nenhuma virtude tem origem nela mesma, mas vem dele.
Sabendo disso, ela contempla as próprias virtudes como se pertencessem a outra pessoa e, esquecida de que tem aí alguma parte, louva a Deus; a terceira, reconhecendo que certas almas progridem ao ver as graças que Deus lhe faz, pensa que Sua Majestade tomou esse meio (de a considerarem boa, não sendo) para beneficiá-las; a quarta, como tem mais em conta a honra e a glória de Deus que a sua, já não receia como antes que os elogios possam desencaminhá-la, como viu suceder a alguns conhecidos.
E pouco importam as perseguições, desde que, ao menos uma vez, Deus seja louvado por meio dela. Venha depois o que vier.
5. Essas são algumas das razões que afastam boa parte do desgosto provocado pelos elogios, embora quase sempre a alma sinta algum, a menos que não lhes dê atenção. Realmente, se ela consegue fazer isso, até a pior aflição de todas (ver-se elogiada em público sem merecer) deixa de ser uma grande provação.
A partir daí, tampouco se incomodará com a gritaria dos conhecidos. Ao contrário, até se alegrará, como quem ouve música muito suave. Podem acreditar, é verdade! As perseguições já não a acovardam, mas a fortalecem, pois, como ensina a experiência, a alma progride muitíssimo quando é impelida por elas. E já não pensa que seus detratores ofendem a Deus, pois compreende que Sua Majestade permite que a maldigam para seu maior proveito. Como entende isso perfeitamente, sente um amor particular e muito terno por eles. Parece-lhe que esses são os seus amigos mais sinceros e lhe ajudam mais que todos os outros.
6. O Senhor costuma ainda dar enfermidades gravíssimas. Essa provação é muito maior que as anteriores, em especial, se vem acompanhada de dores agudas. Quando são realmente violentas, parece-me ser o maior sofrimento exterior que há, porque dores muito intensas descompõem tanto o interior como o exterior e atormentam a alma de tal maneira que ela não sabe o que fazer de si. E, de muito boa vontade, aceitaria qualquer martírio rápido para se livrar delas. É verdade que, salvo raríssimas exceções, não duram muito, uma vez que, enfim, Deus não dá mais do que podemos suportar. Sua Majestade dará primeiro paciência. Além disso, é comum haver outros grandes padecimentos e variadas enfermidades.
7. Conheço uma pessoa que, desde que o Senhor começou a lhe fazer essa graça há quarenta anos, não passou nem um dia sem dores e outros padecimentos. E vejam que estou falando apenas de falta de saúde física, sem mencionar outras grandes tribulações. É verdade que tinha sido muito ruim. Diante do inferno que bem merecia, tudo lhe parece pouco. Aquelas que não tenham ofendido tanto a Sua Majestade serão levadas por outro caminho. Mas eu sempre escolheria o de padecer, nem que fosse só para imitar a Nosso Senhor Jesus Cristo, mesmo que não houvesse nenhum outro ganho. Na verdade, porém, sempre há muitos.
Oh, e que poderia dizer dos sofrimentos interiores? Aqueles de que falei há pouco pareceriam pequenos se eu pudesse lhes contar tudo o que a alma passa aqui. Mas isso é impossível. O que posso fazer é tentar descrevê-los por alto.
8. Comecemos pelo tormento que é encontrar um confessor tão inexperiente e cauteloso que nada considera seguro: teme tudo e suspeita de qualquer coisa incomum, principalmente se encontra alguma imperfeição na alma beneficiada com essas graças. Supõe que devem ser como anjos aquelas a quem Deus as concede (coisa impossível enquanto estiverem nestes corpos). Logo tudo é condenado e atribuído ao demônio ou à melancolia. Há tanta melancolia no mundo que não me surpreende. O demônio semeia tanto mal dessa maneira, que os confessores fazem muitíssimo bem em temê-la e ser cautelosos.
Contudo a pobre alma, que vai ao confessor com a mesma apreensão de quem se apresenta a um juiz e é condenada, não deixa de sofrer grande tormento e perturbação. Só entenderá como é violenta essa aflição quem já passou por ela. É uma das maiores tribulações que essas almas padecem, em especial se foram ruins, pois temem que, por seus pecados, Deus permita que sejam enganadas pelo demônio.
Quando Sua Majestade faz essa graça à alma, ela tem certeza de que não pode ter vindo de outro espírito senão de Deus. Mas, como esse sentimento passa rápido e como a lembrança dos pecados (que nunca faltam) está sempre viva, patenteando suas imperfeições, logo recomeça o tormento. Se o confessor lhe transmite segurança, a angústia diminui por algum tempo, embora sempre volte. Mas, quando ele a assusta ainda mais, é quase insuportável, principalmente se ela atravessa um período de aridez espiritual. Aí sente tal estranheza, como se nunca tivesse pensado em Deus nem jamais viesse a pensar. E, quando ouve falar de Sua Majestade, parece-lhe que é uma pessoa muito distante.
9. Mas tudo isso não é nada comparado à sensação de que não sabe se explicar e está enganando os confessores. Por mais que reflita e se convença de que não deixou de confessar nem mesmo a menor falta, a consciência não tem alívio. A razão fica obscurecida a tal ponto que não consegue enxergar a verdade. Só crê nas fantasias da sua imaginação, pois aqui ela impera, e nos desatinos que o demônio lhe apresenta para fazê-la acreditar que está reprovada por Deus (Nosso Senhor deve lhe dar licença para provação da alma).
São tantos os assaltos, acompanhados de um aperto interior tão doloroso e intolerável, que não sei a que comparar, senão aos tormentos do inferno. Nenhum consolo é possível nessa tempestade. Se busca ajuda do confessor, parece que acodem a ele todos os demônios para fazê-lo atormentá-la ainda mais.
Um confessor que cuidava de uma alma nesse estado percebeu que ela se encontrava em perigoso apuro, sendo molestada por tantas aflições ao mesmo tempo. Passada a crise, pediu para avisá-lo quando se visse novamente assim atribulada. Mas era sempre muito pior. Por fim, ele entendeu que o remédio já não estava em suas mãos, tanto que, se aquela alma tomasse um livro (e era pessoa que sabia ler muito bem), acontecia-lhe não entender nada, como se não conhecesse nem uma letra sequer, porque o seu entendimento estava completamente incapacitado.
10. Enfim, não existe socorro nessa tempestade. Não há o que fazer, senão aguardar a misericórdia de Deus que, repentinamente, com uma só palavra, ou por meio de uma circunstância imprevista, afasta todas essas aflições tão de repente que parece nunca ter havido nenhuma névoa naquela alma. E ela fica cheia de sol e de grande consolação.
Como quem sobreviveu a uma batalha perigosa e alcançou a vitória, louva a Nosso Senhor, pois sabe que foi ele quem lutou por ela. E reconhece que certamente não tinha recursos para lutar. De fato, parecia-lhe que todas as armas com que podia se defender estavam nas mãos do seu adversário. Assim ela vê claramente a sua miséria e o pouquíssimo que podemos fazer por nós mesmas, se o Senhor nos desampara.
11. Ela nem precisa meditar para compreender isso. A experiência de ver-se totalmente incapacitada lhe faz entender que não somos nada e como somos miseráveis.
Apesar de toda essa tormenta, a alma não ofende a Deus, nem o faria por coisa nenhuma deste mundo. Por isso, acredito que deve permanecer todo esse tempo na graça de Deus. Mas aqui a graça está tão escondida que ela não consegue sentir nem uma pequena centelha de seu amor por Deus, tampouco que o amou um dia. Se fez algum bem, ou se Sua Majestade lhe fez alguma graça, tudo lhe parece sonho e fantasia. Os pecados, estes sim, vê com certeza que fez muitos.
12. Oh, Jesus, como dói ver uma alma assim desamparada! E quão pouco lhe ajuda qualquer consolação do mundo. Se algum dia vocês passarem por isso, irmãs, não pensem que os ricos e os que vivem em liberdade terão melhor remédio para esses momentos. Não, não! Penso que a situação deles é comparável à dos condenados à morte aos quais fossem oferecidos todos os prazeres do mundo. Nenhum lhes daria alívio. Ao contrário, aumentariam o seu pesar.
Aqui também é assim. Essas aflições vêm do alto, e contra elas nada podem as consolações da terra. Quer este grande Deus que reconheçamos a sua divina realeza e a nossa miséria humana. Entender isso é fundamental para o que direi depois.
13. E que fará a pobre alma quando esse estado se prolonga por vários dias? Se reza, é como se não rezasse. Não encontra consolo na oração, porque ela não lhe penetra o interior. Nem sequer entende o que está recitando, embora reze vocalmente. Enfraquecidas, as faculdades da alma não lhe permitem fazer oração mental, de jeito nenhum. Estar só é imenso mal. E se lhe fazem companhia ou lhe falam é outro tormento. Por mais que se esforce para não atrair as atenções, anda tão abatida e com tal aspereza que todos notam. Saberá dizer o que tem? É inexprimível. São aflições e sofrimentos espirituais sem explicação. O melhor remédio (não digo para pôr fim a essa angústia, pois desconheço, mas para que se possa suportá-la) é ocupar-se em obras de caridade e atividades exteriores. E esperar a misericórdia de Deus que nunca falta aos que confiam nele. Seja para sempre bendito, amém.
14. Há outro tipo de tribulações exteriores que são produzidas por demônios. Como, na maioria das vezes, não são muito frequentes nem muito penosas, não há razão para falar delas. Por mais que incomodem, não chegam a incapacitar assim as faculdades da alma, a meu ver. Tampouco perturbam tanto a alma, já que a razão ainda é capaz de ver que eles não podem fazer mais do que o Senhor lhes permite. Enquanto a razão está no comando, tudo é pouco comparado às aflições que acabei de relatar.
15. Trataremos ainda de outras aflições interiores nestas moradas, quando falarmos dos diversos tipos de orações e graças do Senhor. Algumas produzem maiores padecimentos que as já descritas, como se verá pelo estado em que deixam o corpo. Apesar disso, não merecem ser chamadas de tribulações. Na verdade, são grandes graças do Senhor. Quem as recebe entende que são favores muitíssimo superiores aos seus merecimentos. Essas grandes aflições vêm pouco antes de se entrar nas sétimas moradas. Seguem-se ainda muitas outras, das quais mencionarei apenas algumas, porque todas seria impossível. Mas não vou tentar explicar o que são, porque vêm de outra linhagem, muito mais alta. Se não pude dizer muito das de casta mais baixa, menos ainda poderei dessas outras. O Senhor nos dê para tudo o seu favor, pelos méritos de seu Filho, amém.
Capítulo 2
Trata de algumas maneiras muito sublimes pelas quais Nosso Senhor desperta a alma, onde aparentemente não há nada que temer.
1. Pode parecer que nos esquecemos da nossa pombinha. Não é verdade, pois as aflições que mencionei a fazem levantar voo mais alto. Comecemos então a ver como o Senhor se entende com ela.
Antes de firmar o compromisso de noivado, o Senhor lhe concede a graça de desejá-lo por meios tão refinados que a própria alma não compreende. Como poderei descrevê-los às irmãs que ainda não passaram por isso? São impulsos vindos do mais íntimo da alma, tão suaves e sutis que não sei a que comparar.
2. É bem diferente de tudo o que podemos experimentar aqui neste mundo, diferente até mesmo dos gostos espirituais de que falei. Muitas vezes, estando a pessoa distraída e sem pensar em Deus, Sua Majestade a desperta como um cometa veloz ou um trovão (embora não se ouça nada). A alma percebe claramente que foi um chamado de Deus. Entende tão bem que, algumas vezes, em especial nos começos, estremece e até incomoda-se, conquanto não seja nada que lhe doa. Sente-se ferida saborosissimamente, mas não sabe quem a feriu nem como. Reconhece, sem dúvida, que é coisa preciosa e jamais queria sarar daquela ferida.
Não pode fazer nada além de queixar-se amorosamente a seu Amado. Percebe então que ele está presente, mas não quer se mostrar para deixar-se gozar. É grande aflição, ainda que saborosa e doce. Não queria senti-la, mas não pode evitar. Tampouco queria ficar sem ela, pois a contenta muito mais que o êxtase saboroso e sem aflição da oração de quietude.
3. Estou me desdobrando, irmãs, para explicar-lhes essa operação de amor, e não sei como. Parece contraditório dizer que o Senhor está muito próximo da alma, e, ao mesmo tempo, chama-a (como se estivesse longe dela) com um aceno tão evidente que não deixa dúvida e com um silvo tão penetrante que é impossível não ouvir e compreender. Creio que, quando ele lhe fala assim, sem palavras, a partir das sétimas moradas, toda a gente que está nas outras moradas do castelo não ousa mover-se (Os sentidos, a imaginação e as faculdades da alma).
Oh, meu poderoso Deus, como são grandes os vossos segredos, e quanta diferença entre as coisas do Espírito Santo e tudo o que podemos ver e entender nesta vida! Nada deste mundo se compara a essa graça que, no entanto, é tão pequena comparada a outras muito maiores que operais nas almas.
4. Deus opera de maneira tão grandiosa que a alma se desfaz em desejos. Mas não sabe o que pedir, porque sente claramente que o Senhor está com ela. Vocês poderão dizer: se é assim, que mais deseja? por que sofre? que benefício maior pode esperar? Não sei. Sei que essa dor parece lhe penetrar as entranhas. E, quando ele arranca a seta que a fere, é como se verdadeiramente levasse junto suas vísceras, tal é o amor que sente.
Estava pensando agora: deste braseiro ardente que é o meu Deus deve saltar sobre a alma uma centelha que a faz sentir aquele fogo. Mas como não é suficiente para aniquilá-la, ela experimenta um misto de dor e prazer que, por sua vez, resulta naquela operação. Acho que essa é a melhor comparação que já fiz.
Essa dor saborosa (e não é dor) não se fixa em nenhuma criatura. Às vezes dura um bom tempo, outras, de pronto se acaba, segundo a vontade do Senhor, pois não pode ser controlada por nenhum artifício humano. E, mesmo quando se prolonga, não é contínua, mas vai e volta em intervalos seguidos. Enfim, jamais se detém. Por isso, nunca termina de abrasar a alma. Tão rápido como acende, a centelha se apaga. E a alma fica com desejo de tornar a padecer aquela dor amorosa.
5. Aqui não há dúvida. Não pensem que seja algo produzido pela natureza nem causado por melancolia, nem engodo do demônio, ou devaneio. Fica muito claro que é um impulso interior vindo de onde está o Senhor, que é imutável. É muito diferente de outras devoções nas quais o grande embevecimento produzido pelo deleite espiritual nos faz duvidar. Não há embevecimento dos sentidos e das faculdades da alma que observam perplexos e, a meu ver, sem poder estorvar, aumentar e muito menos impedir aquela aflição prazerosa.
Quem recebeu essa graça de Nosso Senhor poderá reconhecê-la lendo isto. Louve-o muitas e muitas vezes, pois não precisa temer engano. Tema ser ingrata depois de receber tamanho benefício e procure esforçar-se para servir e melhorar em tudo a sua vida. E verá como ganha mais e mais. Sei de uma pessoa que recebeu essa mercê durante alguns anos. E só com isso sentia-se tão feliz que, se servisse ao Senhor uma multidão de anos com grandes tribulações, já estaria muito bem paga. Bendito seja ele para sempre, amém.
6. Vocês devem ter notado que há mais certeza da autenticidade dessa graça do que das outras de que falei. A meu ver, é por estas razões: a primeira, porque o demônio jamais poderá proporcionar uma aflição saborosa como essa. Pode oferecer sabor e deleite que pareça espiritual, mas não é capaz de unir tamanha aflição com quietude e gosto da alma. Todos os seus poderes operam em nosso exterior, e as aflições que ele dá nunca são, a meu ver, saborosas nem com paz, mas inquietas e com guerra. A segunda razão é porque essa tempestade saborosa vem de outra região diferente daquelas que ele pode dominar. A terceira, pelos enormes proveitos que ficam na alma: geralmente são determinar-se a padecer por Deus, desejar ter muitas tribulações e ficar muito mais decidida a apartar-se dos contentamentos e conversações do mundo, entre outros.
7. Certamente não é alucinação, porque a mente não consegue imitar isso. É tão real que não é possível haver engano, pensando-se que é sem ser. Não há como duvidar que aconteceu de fato, porque esses ímpetos são percebidos tão intensamente como um grito aos ouvidos. Se paira alguma suspeita, é porque não são verdadeiros.
A melancolia também não produz esses efeitos, já que ela fabrica e opera seus enganos apenas na imaginação. Essa graça, ao contrário, vem do interior da alma. Pode ser que eu me engane, mas até ouvir outras razões de quem entenda, manterei essa opinião. Conheço uma pessoa muito prudente que nunca duvidou da autenticidade dessa oração.
8. Nosso Senhor também costuma empregar outras maneiras de despertar a alma: a qualquer hora, estando a rezar vocalmente e alheia ao que se passa no seu interior, vem-lhe uma excitação prazerosa, como se de repente um perfume muito forte se espalhasse por todos os seus sentidos, fazendo notar a presença d’Ele. (Não estou dizendo que se sente perfume nenhum, é só uma comparação para mostrar como o Senhor desperta na alma o desejo prazeroso de se deleitar com ele.) Com isso, ela se dispõe a fazer grandes obras e louvar muito a Deus.
Essa graça nasce da mesma fonte da precedente, ou seja, no mais íntimo da alma. Mas aqui não há nada que cause aflição. Nem mesmo os desejos de gozar a Deus são penosos (em geral, é assim). Tampouco me parece haver motivo para temer engano, pelas razões já mencionadas. É mercê para receber com ação de graças.
Capítulo 3
Prossegue no mesmo assunto e diz como Deus fala à alma quando quer. Alerta sobre como conduzir-se nesse assunto sem nunca seguir a própria opinião. Ensina como descobrir se é engano. É muito proveitoso.
1. Deus recorre ainda a outro meio de despertar a alma. Embora, de certo modo, pareça ser graça maior que as anteriores, poderá ser mais perigosa. Por isso, vou me deter um pouco mais nela. São algumas maneiras pelas quais o Senhor fala à alma. Às vezes é como se ela ouvisse uma voz vinda de fora, outras, do mais interior de si, outras, da parte superior da alma e outras vezes parece tão real que chega a ser percebida pelos ouvidos e é confundida com a voz natural. Frequentemente, porém, pode ser ilusão, especialmente em pessoas de imaginação fraca ou melancólicas (falo de considerável estado melancólico).
2. A meu ver, será melhor não dar muito crédito a pessoas melancólicas ou de imaginação fraca, mesmo que digam ver, ouvir e entender. Também não se deve inquietá-las, dizendo que é coisa do demônio. Precisam ser ouvidas como pessoas enfermas. A prioresa ou o confessor deve aconselhá-las a não dar importância ao que ouvem, pois isso não é essencial para servir a Deus, e muitos têm sido enganados pelo demônio desse modo, embora talvez não seja o caso delas. Enfim, procurem não afligir ainda mais o seu temperamento doentio, pois, se lhes dizem que é melancolia, nunca sairão desse estado: vão jurar que veem e ouvem, porque acreditam piamente.
3. Na verdade, será preciso considerar a possibilidade de proibi-las de fazer essa oração. E tentar convencê-las, o mais possível, a não prestar atenção às vozes que dizem ouvir. O demônio costuma aproveitar-se dessas almas enfermas para fazer mal às outras. Tanto as enfermas como as sãs devem desconfiar dessas vozes até terem certeza de onde vêm.
Creio que sempre será melhor desacreditá-las logo no início. Se são falas de Deus, isso ajudará a prosseguir, pois até aumentam quando colocadas a prova (é assim que funciona). Mas não aflijam muito nem inquietem a alma que ouve essas vozes, porque verdadeiramente ela está no limite de suas forças.
4. Voltando ao que dizia, todas as vozes que mencionei acima podem vir de Deus, do demônio, ou da própria imaginação. Mostrarei, se puder, com o favor do Senhor, como reconhecer essas diferentes origens e quando elas são perigosas.
Entre gente de oração, há muitos que as ouvem. Se são consolação ou aviso de faltas dirigidos apenas a vocês mesmas, fiquem à vontade para acreditar ou não, sem risco de pecar. Venham de onde vierem, sejam engano ou não, não se preocupem. Mas fiquem avisadas: se vêm de Deus não significa que vocês sejam melhores que ninguém, pois ele muito falou aos fariseus. Todo o bem está no proveito que se tira dessas palavras.
Quanto às vozes que contrariam a Sagrada Escritura, não façam mais caso delas do que se as ouvissem do próprio demônio. Mesmo aquelas produzidas pela fraca imaginação devem ser encaradas como uma tentação contra as coisas da fé. Resistam a elas sempre para que se afastem aos poucos. De fato, acabarão por desaparecer, já que têm pouca força.
5. Voltando ao assunto, para saber se as vozes são de Deus ou não, pouco importa se elas vêm do interior, da parte superior ou do exterior. Os sinais mais confiáveis, a meu ver, são estes: o primeiro e mais importante é o poder e autoridade que o Senhor tem de falar e operar. Explico-me melhor: uma pessoa está mergulhada naquela grande tribulação e alvoroço interior de que falei, com o intelecto enfraquecido e padecendo de aridez espiritual. E basta uma palavra que diga somente “Não se aflija”, para que ela fique sossegada e com muita luz. E num instante desaparece aquela angústia que, de tão grande, parecia que, se o mundo inteiro e todos os letrados se juntassem para ajudá-la, não poderiam fazer nada, por mais que tentassem. Ou então está aflita e assustada porque o seu confessor e alguns conhecidos disseram que ela tem espírito demoníaco.
E com uma só palavra que lhe diga “Sou Eu, não tenha medo”, desaparece todo temor e fica consoladíssima, sem que ninguém possa convencê-la do contrário. Ou está ainda muito aflita, porque não sabe como encaminhar alguns assuntos importantes. Mas, percebendo que lhe dizem “Sossegue, pois tudo acabará bem”, adquire grande confiança, e a aflição se dissipa. Acontece o mesmo em muitas outras ocasiões.
6. O segundo sinal é uma imensa tranquilidade da alma, com recolhimento, paz e devoção, que a dispõe para louvar a Deus. Dizem que, ao menos nesta morada, não é o Senhor quem fala, mas sim algum anjo. Oh, Senhor, se uma palavra enviada por meio de um servo vosso tem tal força, que efeito produzirá vossa própria voz na alma que está unida a vós por um amor mútuo?
7. O terceiro sinal é que, por muito tempo, essas palavras não se apagam da memória. Algumas nunca são esquecidas, ao contrário das que ouvimos dos homens. Mesmo que sejam grandes letrados e muito sérios, suas palavras não se fixam tão bem na memória. E, se fazem alguma previsão para o futuro, tampouco lhes damos tanto crédito. Já as palavras do Senhor transmitem grandíssima certeza. Às vezes, porém, em coisas aparentemente impossíveis, o intelecto pode vacilar um pouco, duvidando que se realizarão.
No entanto, a alma conserva uma segurança inabalável, mesmo quando tudo se passa ao contrário do previsto. E, ainda que transcorram anos sem se cumprir, ela não deixa de acreditar que Deus encontrará outros meios que os homens não compreendem para, enfim, realizá-las. E de fato tudo acontece como esperado. É verdade que a alma não deixa de se afligir quando surgem muitos desvios no caminho. Se a espera é grande, chega mesmo a desconfiar que foi coisa do demônio ou fantasia da imaginação. Contudo essas dúvidas não duram muito, e logo ela se dispõe novamente a dar a vida, se for preciso, para defender aquela verdade.
O demônio levantará todas essas inquietações para perturbar e acovardar a alma. Principalmente se há imensas dificuldades a superar, até que se realize uma obra que fará grande bem às almas, para maior glória e serviço de Deus. Que não fará o inimigo então? O mínimo que ele pretende é enfraquecer a fé, pois é grande pecado não crer que Deus pode fazer obras que o nosso entendimento não alcança.
8. Mas, a despeito de qualquer dificuldade, sempre lhe fica, não sei onde, uma centelha viva de que tudo se cumprirá. Os confessores com quem ela trata desses assuntos procuram convencê-la de que são disparates, apontando os obstáculos que impedem a realização daquelas previsões. E, mesmo quando ela reconhece que todas as esperanças humanas estão mortas, não consegue apagar aquela chama. Por fim, como já disse, a alma fica imensamente satisfeita e alegre vendo a realização daquilo que Sua Majestade lhe revelara. Muito mais do que pela própria obra, ainda que tenha se empenhado nela com todas as suas forças. E não deseja fazer outra coisa a não ser louvá-Lo dia e noite.
9. Não sei por que a alma quer tanto a confirmação dessas falas de Deus. Se fosse apanhada em uma mentira, creio que não sentiria tanto. É como se assim ela pudesse rebater todas as críticas de uma só vez. Certa pessoa que ouvia essas vozes lembrava-se frequentemente do profeta Jonas, que receava não se cumprisse sua profecia sobre a destruição de Nínive. Enfim, como são falas do Espírito de Deus, é justo ser fiel, desejando que não considerem mentiroso Aquele que é a suma verdade. Daí a grande alegria quando, depois de mil rodeios e superados desafios dificílimos, vê a previsão concretizada. Preferia sofrer enormes tribulações a deixar de fazer aquilo que certamente foi o Senhor quem lhe mandou. Talvez nem todas as pessoas tenham essa fraqueza (se é que é fraqueza), mas eu não posso condená-la.
10. Quando as vozes são fruto da imaginação, não há nenhum destes sinais: nem certeza, nem paz, nem satisfação interior. Nesse caso, acredito que a pessoa entra em um profundo recolhimento interior e fica tão fora de si que perde contato com a realidade exterior. Os sentidos ficam entorpecidos como os de quem dorme (talvez esteja mesmo dormindo) e supõe ouvir vozes e ver coisas que pensa serem de Deus. Enfim, esses fenômenos deixam na alma efeitos semelhantes aos produzidos pelos sonhos.
Conheço algumas pessoas que ouvem essas vozes quando se deixam embevecer muito em oração de quietude e sono espiritual. A meu ver, é porque são fracas de compleição ou imaginação. Afora essa explicação, não sei o que poderia ser. Ou talvez, tendo insistentemente pedido algo a Nosso Senhor, acreditam que lhes falam aquilo que gostariam de ouvir. Isso realmente acontece às vezes. Entretanto quem tiver muita experiência das falas de Deus não se deixará enganar pela imaginação.
11. Do demônio há sim muito que temer. Mas, estando presentes os sinais mencionados, pode-se ter certeza de que são falas de Deus. Contudo, se as vozes tratam de assunto sério, e se é preciso tomar uma decisão importante para o sucesso de uma obra ou negócios de terceiros, jamais façam nada, nem mesmo em pensamento, sem consultar um confessor letrado, prudente e servo de Deus. Não deixem de fazer isso, ainda que estejam convencidas de ser fala de Deus. Sua Majestade quer que vocês sejam muito cautelosas e não ignorem as suas ordens. O Senhor nos mandou colocar o confessor em Seu lugar. E ninguém pode duvidar que os Evangelhos sejam verdadeiramente palavras Suas.
Quando são de fato autênticas, as falas de Deus nos encorajam em assuntos difíceis. E Nosso Senhor não deixará de iluminar o confessor para que ele creia que é espírito de Deus. Do contrário, vocês não estão obrigadas a fazer aquilo que as vozes mandam. Considero muito perigoso agir de outra maneira. Jamais se deixem guiar pela própria opinião nesses assuntos. Por isso, advirto-as, irmãs, da parte de Nosso Senhor: nunca façam isso.
12. O Senhor fala ainda à alma de outra maneira, ou seja, com visão intelectual (explicarei adiante o que é isso), cuja autenticidade me parece muito fácil constatar. Passa-se no mais íntimo da alma, como se ela percebesse claramente as palavras ditas em segredo pelo próprio Deus. O modo como se experimenta essa visão somado às graças que ela opera demonstram que o demônio não pode ter parte aqui. Os grandes efeitos que produz comprovam isso. Pelo menos, sabe-se seguramente que não procede da imaginação.
Além disso, quem ficar atento poderá se certificar de que é genuína fala de Deus, pelas seguintes razões: a primeira, porque ela é muito clara e nítida. Percebe-se a falta de uma só sílaba e, sendo citação, a troca de uma palavra por outra, mesmo que não mude o sentido. Já as vozes criadas pela imaginação não têm tal nitidez, e as palavras não soam de maneira tão distinta, mas causam a impressão de ser coisa sonhada.
13. A segunda é porque geralmente a pessoa nem estava pensando no que ouviu. As falas de Deus vêm de surpresa, fora de hora e até mesmo durante uma conversa. Às vezes, elas respondem ao que se pensa no momento presente ou em alguma ocasião anterior. Muitas vezes, porém, as falas dizem respeito a eventos futuros que nunca se pensara que poderiam suceder. Nesse caso, a imaginação não seria capaz de produzi-las para iludir a alma, apresentando-lhe aquilo que ela não conhecia, não desejava nem se determinara a fazer.
14. A terceira razão é que a pessoa percebe as falas de Deus como quem ouve. Tratando-se, porém, de vozes criadas pela imaginação, é como se a própria pessoa fosse compondo, pouco a pouco, o que deseja que lhe digam.
15. A quarta, porque as palavras de Deus são muito diferentes, e com uma só se compreende muito, coisa que o nosso intelecto não conseguiria fazer tão depressa.
16. A quinta, porque muitas vezes, juntamente com as palavras, por um modo que não sei explicar, compreende-se sem palavras muito mais do que elas significam. Falarei mais disso noutra parte, pois é coisa muito refinada e para louvar a Nosso Senhor.
Há quem fique cheio de dúvidas e não chegue a conclusão nenhuma acerca dessas vozes. Sei em especial de certa pessoa que passou por isso (seguramente deve haver outras) e tem sido muito cuidadosa, porque o Senhor lhe dá essa graça muitas vezes. O maior receio que tinha a princípio era o de ser ilusão.
Quando é trapaça do demônio, logo se percebe, mesmo que ele use muitos truques e se apresente como anjo de luz. A meu ver, a principal artimanha que ele emprega aqui é dizer as palavras com muita clareza, como se viessem do próprio Espírito de Verdade. Contudo ele não conseguirá falsificar os efeitos que mencionei nem deixar aquela paz e lucidez na alma, e sim inquietação e alvoroço. Mas fará pouco ou nenhum dano se a alma é obediente e segue o meu conselho de não fazer nada, por mais que ouça vozes.
17. Para saber se são favores e graças do Senhor, observem atentamente se, por causa disso, consideram-se melhores que as outras. E se, quanto maior for a mercê, não se sentirem mais indignas, creiam que não será espírito de Deus.
Podem ter certeza de que, à medida que aumentam as graças recebidas, diminui o conceito que a alma tem de si mesma, mais se lembra de seus pecados, mais se esquece daquilo que tem a ganhar e mais emprega sua vontade e energia em só querer a honra de Deus. Tampouco se lembra de buscar os próprios interesses. Mais do que nunca, teme distorcer de algum modo a Sua divina vontade e se convence de que não merece aquelas graças, e sim o inferno.
Desde que as vozes produzam esses efeitos, a alma não tem motivo para suspeitar dos benefícios e graças que recebe na oração. Ela deve se entregar à misericórdia do Senhor, que é fiel e não deixará que o demônio a engane, ainda que seja sempre bom andar com temor.
18. Aquelas que o Senhor não leva por esse caminho podem supor que eventualmente essas almas não se deem conta do que lhes dizem as vozes interiores. Estando muito desatentas, poderiam talvez não as ouvir nem lhes dar atenção e assim não correriam o risco de serem enganadas. A isso respondo que é impossível. Não estou me referindo àquelas vozes falsas que, a propósito, não podem fazer mal se a pessoa não alimenta ambição alguma nem dá trela à imaginação. Sendo verdadeiramente falas de Deus, não será possível deixar de ouvi-las. O Espírito faz cessar todos os pensamentos e atrai a atenção para si de tal modo que me parece seria mais fácil que uma pessoa capaz de ouvir perfeitamente não notasse alguém gritando ao seu ouvido, não lhe desse atenção e dirigisse o pensamento e o intelecto para outro lugar. Por certo, isso não é possível aqui. Não há ouvidos que se tapem nem poder de concentração capaz de se fixar em outra coisa que não seja o que dizem as falas de Deus.
Aquele que fez o Sol parar a pedido de Josué (Josué 10, 12-13), creio eu, pode paralisar as faculdades da alma e todo o interior. Com isso, a alma reconhece que outro Senhor maior que ela governa o castelo e fica cheia de devoção e humildade. Definitivamente, é impossível não ouvir as falas de Deus.
Queira a divina Majestade nos conceder a graça de só desejar contentá-lo. Esqueçamo-nos de nós mesmas, como tenho dito, amém. Praza a Deus que eu tenha conseguido explicar o que pretendia e que isso possa servir de aviso a quem recebe essas graças.
Capítulo 4
Trata de quando Deus suspende a alma em oração com arrebatamento ou êxtase ou rapto (é tudo a mesma coisa, a meu ver) e como isso é necessário para lhe dar grande ânimo e prepará-la para receber muitas graças de Sua Majestade.
1. Que sossego pode ter a pobre borboletinha em meio a essas e tantas outras provações? Mas tudo é conduzido para que ela deseje gozar ainda mais o seu Amado. Sua Majestade, que conhece a nossa fraqueza, vai capacitando-a com essas e muitas outras graças para que ela tenha coragem de se unir a tão grande Senhor e tomá-lo por esposo.
2. Vocês devem estar rindo do que acabo de dizer. Realmente pode parecer disparate, pois não há mulher de condição tão humilde que não tenha coragem de casar-se com um rei. Mas notem que isso é verdade apenas no que se refere aos reis deste mundo. Tratando-se, porém, do Rei do céu, eu lhes asseguro que é preciso ter mais coragem do que vocês podem imaginar, porque a nossa natureza é muito tímida e baixa diante de graça tão elevada. Tenho certeza que, se Deus não nos desse ânimo, seria impossível que nos atrevêssemos a receber essa mercê, por maiores que fossem os benefícios esperados.
Vocês verão o que faz Sua Majestade para concluir esse noivado. Pelo que entendo, ele começa por arrebatar a alma, separando-a de seus sentidos. Sem isso, se ela se visse tão perto desta grande Majestade, estando ainda em posse de seus sentidos, acredito que não seria possível continuar viva.
Notem que falo de arrebatamento autêntico, e não dessas fraquezas de mulheres que temos em nossos mosteiros, onde tudo parece nos transportar em êxtase. Creio já ter dito que há pessoas de compleição tão fraca que quase morrem com uma simples oração de quietude.
Como tenho convivido com muitas pessoas espirituais, vou dizer o que sei a respeito de alguns tipos de arrebatamento. Talvez não consiga explicar tão bem como fiz em outra parte onde tratei desse e de outros assuntos que já mencionei aqui. Acho que vale a pena voltar a falar disso, nem que seja só para que todas as moradas fiquem juntas neste Castelo.
3. Há um tipo de arrebatamento que começa quando a alma é tocada por alguma palavra de que se lembrou, ou que ouviu de Deus, mesmo fora da oração. Parece que Sua Majestade faz crescer, desde o interior da alma, aquela centelha de que falamos, com pena de vê-la padecer tanto tempo desejando encontrá-lo. Toda abrasada como a fênix mitológica, a alma é renovada. Penso que piedosamente pode-se acreditar que suas culpas são perdoadas (entenda-se que com as condições exigidas e os meios oferecidos pela Igreja). Assim purificada, o Senhor a une a si sem que ninguém perceba, a não ser os dois. Mas nem a própria alma saberia explicar depois o que lhe aconteceu, embora mantenha ativas as faculdades interiores. Esse arrebatamento não é como um desmaio ou coisa parecida em que não se vê nada do que se passa no interior ou no exterior.
4. Acredito que a alma nunca esteve tão desperta para as coisas de Deus nem com tamanha lucidez e compreensão de Sua Majestade. Pode parecer ilógico, pois, se as faculdades e os sentidos encontram-se tão absortos que podemos até dizer que estão mortos, como ela pode captar esse segredo? Eu não sei nem talvez nenhuma criatura, senão o próprio Criador. Só ele sabe muitas coisas que se passam nestas duas últimas moradas.
Estas sextas e sétimas moradas poderiam muito bem juntar-se, porque não há porta fechada entre elas. Mas como há certas coisas que só se manifestam aos que chegam à última morada, achei melhor separá-las.
5. A alma que experimenta esse arrebatamento é capaz de relatar alguns segredos que o Senhor lhe revela sobre coisas do céu em visões imaginárias. Ficam impressos na memória de tal maneira que nunca mais esquece. Mas, quando são visões intelectuais, geralmente não consegue descrever. Nesse grau de oração deve haver algumas revelações tão sublimes que não convém dá-las a conhecer aos que vivem neste mundo. No entanto, há muitas outras visões intelectuais menos elevadas que a alma pode revelar quando recupera os sentidos.
Possivelmente algumas de vocês não saibam o que sejam visões, em especial, intelectuais. Explicarei isso a seu tempo, porque recebi ordem superior de fazê-lo. Ainda que pareça inadequado, talvez seja útil para certas almas.
6. Vocês me dirão: se a alma não guarda lembrança dessas graças tão elevadas que o Senhor lhe faz, que proveito elas trazem? Oh, filhas, é tal que não se pode avaliar. Embora não saiba comunicá-las, ficam registradas no mais profundo da alma e jamais são esquecidas.
Mas, se não formam nenhuma imagem nem são percebidas pelas faculdades da alma, como podem ser lembradas? Isso eu também não entendo. Mas sei que algumas verdades da grandeza de Deus se fixam de tal modo na alma que, ainda que não tivesse fé em quem ele é e que está obrigada a adorá-lo como Deus, acreditaria a partir daquele momento, como fez Jacó quando viu a escada pela qual os anjos do Senhor subiam e desciam(Gênesis 28, 12.). Penso que ao vê-la ele deve ter entendido segredos que não soube traduzir em palavras. Se não recebesse luz interior, não entenderia tão grandes mistérios apenas vendo uma escada.
7. Não sei se acerto no que digo, porque, embora tenham me contado, não me lembro muito bem.
Tampouco Moisés soube dizer tudo o que viu na sarça ardente(Êxodo 3, 2), senão o que Deus quis que dissesse. Mas, se Deus não mostrasse à sua alma alguns segredos para que visse e acreditasse firmemente que era Deus, Moisés não se meteria em tamanhas e tão variadas dificuldades. Ele deve ter compreendido coisas sublimes dentro dos espinhos daquela sarça que lhe deram ânimo para fazer tudo o que fez pelo povo de Israel.
Portanto, irmãs, não procuremos entender as coisas ocultas de Deus. Tal como cremos que ele é poderoso, por certo também havemos de crer que um vermezinho tão limitado como nós não pode compreender todas as suas grandezas. Louvemo-lo muito por querer que entendamos algumas.
8. Estou me perguntando com que poderia comparar essas visões intelectuais, e não me ocorre nada apropriado. Mas imaginem o seguinte: entrem no aposento de um rei ou grande senhor (creio que se chama sala de estado), onde há uma enorme coleção de vasos de vidro e porcelana, além de muitos outros objetos dispostos de tal maneira que quase todos são vistos logo ao entrar.
Certa vez, levaram-me a um desses aposentos na casa da duquesa de Alba, onde, voltando de viagem, estive por obediência aos meus superiores, que foram importunados pelos pedidos dessa senhora. Fiquei abismada ao entrar e perguntava-me para que serviria aquela profusão de objetos. Por fim, concluí que se podia louvar ao Senhor diante de tamanha riqueza de cores e formas.
Agora estou achando graça ao ver como tal cena cai bem aqui. Ainda que eu tenha me demorado naquele aposento, havia tanto para ver que logo me esqueci de tudo, de maneira que não consegui reter na memória nenhuma daquelas peças, como se nunca as tivesse visto. Nem mesmo saberia dizer de que material eram feitas. Mas, em conjunto, lembro-me delas.
Aqui também é assim. A alma está unida a Deus nesse aposento do céu supremo que devemos ter dentro de nossas almas (se Deus está em nós, certamente está numa dessas moradas de que tratamos). Acredito que nem sempre o Senhor deve querer que a alma arrebatada veja esses segredos, porque na maioria das vezes ela está tão entregue a gozá-Lo que lhe basta tão grande benefício. Algumas vezes, porém, gosta que ela se desembeveça e veja num relance o que há naquele aposento. E, depois de voltar a si, ela guarda a imagem geral das grandezas que viu. Mas não consegue descrever nenhuma em particular, pois a sua capacidade natural não vai além daquilo que Deus quis lhe revelar sobrenaturalmente.
9. Estarei dizendo que foi uma visão imaginária? Não. Não é disso que estou tratando agora, e sim de visão intelectual. Como não tenho letras, a minha rudez não sabe dizer nada. Se o que escrevi até aqui sobre essa oração está bem dito, com certeza, não fui eu quem disse.
Tenho para mim que, se a pessoa a quem Deus deu arrebatamento não chega, em algum momento, a compreender esses segredos, é porque não foi arrebatamento, mas sim alguma fraqueza humana que pode acometer pessoas de compleição delicada como nós mulheres. Talvez tenha ficado embevecida por conta de alguma exaltação do espírito que sobrepujou a sua fraca natureza, como creio ter dito na oração de quietude. Mas isso não tem nada a ver com arrebatamento.
Quando é arrebatamento, Deus rouba toda a alma para si. Trata-a como se já fosse sua esposa e lhe mostra um pedacinho do reino que ela ganhou. Por menor que seja, tudo o que há neste grande Deus é imenso.
Como não quer estorvo de nada, nem das faculdades da alma, nem dos sentidos, depressa manda fechar as portas de todas as moradas do castelo. Só aquela em que ele está fica aberta para permitir a nossa entrada. Bendita seja tamanha misericórdia! Com razão serão malditos os que não quiserem aproveitar-se dela e perderem este Senhor.
10. Oh, minhas irmãs, não é nada o que deixamos para trás, nada o que fazemos e nada tudo o que pudermos fazer por um Deus que assim quer se unir a uns vermezinhos como nós! E, se há esperança de gozar deste bem ainda nesta vida, que estamos esperando? Que pode ser mais importante? Por que haveríamos de deixar por um só instante de buscar a este Senhor, como fazia a esposa dos Cantares por bairros e praças?
Oh, que grande fraude é tudo o que há nesta vida se não contribui para esta união! Mesmo se durassem para sempre, ainda assim, todos os deleites, riquezas e gozos deste mundo não passariam de abominação e imundície comparados às riquezas que havemos de gozar sem fim no céu. E até mesmo estas não são nada diante da glória de possuir ao Senhor de todos os tesouros do céu e da terra.
11. Oh, cegueira humana! Até quando, até quando continuaremos com os olhos cheios de terra? Embora cá entre nós, nestes mosteiros, não pareça haver tanta que nos cegue de vez, vejo uns argueirinhos, umas manchinhas que, se deixamos aumentar, bastam para nos fazer muito mal. Pelo amor de Deus, irmãs, aproveitemos nossas faltas para reconhecer o quanto somos miseráveis. Desse modo, poderemos usá-las para remediar a nossa pouca visão, como fez o Senhor, curando o cego com lodo. Reconhecendo nossas imperfeições, crescerá em nós o desejo de suplicar-lhe que tire bens das nossas misérias para em tudo contentarmos Sua Majestade.
12. Desviei-me muito do assunto sem perceber. Perdoem-me, irmãs, e saibam que, chegando a essas grandezas de Deus (quero dizer, chegando a falar delas), não posso deixar de lamentar muito ao ver o que perdemos por nossa culpa. É verdade que o Senhor só dá essas graças a quem quer. Mas daria a todas, se ansiássemos por Sua Majestade como ele anseia por nós. Não deseja outra coisa senão ter a quem dá-las, e sua riqueza não diminui por isso.
13. Voltando então ao que dizia, quando quer arrebatar a alma, o Senhor manda fechar as portas das moradas e até as do castelo e da cerca. Começa por lhe tirar o fôlego de tal maneira que ela não consegue falar de jeito nenhum, embora às vezes fique em posse dos sentidos por mais algum tempo. Outras vezes, tira-lhe tudo de repente. As mãos e o corpo esfriam-se como se não tivesse alma. Algumas vezes, não se sabe se respira. Mas fica assim por pouco tempo, porque, atenuando-se o êxtase, o corpo se reanima para, em seguida, tornar a morrer e dar mais vida à alma. No entanto, esse grande transe não dura muito.
14. Quando cessa, pode acontecer de a vontade ficar tão embevecida e o intelecto tão distante que a pessoa permanece assim o dia inteiro ou, por vezes, alguns dias. Aparentemente a alma não consegue atentar para mais nada, senão para a vontade de amar. Fica muito desperta para isso e adormecida para apegar-se a qualquer criatura.
15. Oh, que grande agitação assalta a alma quando volta inteiramente a si! Que grandes desejos de servir a Deus de todas as maneiras que ele quiser servir-se dela! Se as orações passadas já produzem os efeitos que descrevi, que não fará uma graça tão elevada como essa?
A alma queria ter mil vidas para consagrá-las todas a Deus e que tudo no mundo fossem línguas para louvá-lo. Tem desejos grandíssimos de fazer penitência. Acredita que não faz muita, porque, com a força do amor, mal percebe a que faz. Vê claramente que os mártires não faziam grande coisa ao suportar tantos sofrimentos, porque, com a ajuda de Nosso Senhor, é fácil. Essas almas até se queixam quando Sua Majestade não lhes oferece oportunidade de padecer.
16. Quando essa graça é feita em segredo, considero que é imensa. Mas se é diante de outras pessoas, é tal a vergonha e o embaraço que, de alguma maneira, a alma se desembevece. Fica aflita e inquieta, pensando no que dirão os que a testemunharam, porque conhece a malícia do mundo e sabe que não a lançarão porventura à conta do que é. Ao contrário, aquilo que deveria ser motivo para louvarem ao Senhor talvez lhes dê ocasião para fazerem mau juízo.
De certo modo, essa aflição envergonhada pode parecer falta de humildade. Mas a verdade é que a alma já abriu mão da própria honra. Se ela deseja ser vituperada, que importa o que pensam dela? Uma pessoa que passava por essa aflição da parte de Nosso Senhor compreendeu isso quando ele lhe disse “Não te aflijas, porque ou eles louvarão a mim, ou murmurarão contra ti. E, em qualquer caso, tu ganhas”. Soube depois que essa pessoa se sentiu muito encorajada e consolada por essas palavras. Por isso, caso alguma de vocês se veja nessa aflição, deixo aqui esse alento.
Parece que Nosso Senhor deseja que todos saibam que aquela alma já é sua e ninguém há de tocar nela. Permite que atinjam o corpo, a honra e os negócios, pois de tudo isso resultará mais glória para Sua Majestade. Mas a alma, isso não. Se ela não se aparta de seu Amado (e seria muito culpável atrevimento se o fizesse), ele lhe será amparo contra o mundo inteiro e até contra todo o inferno.
17. Não sei se consegui esclarecer algo sobre arrebatamento. Dizer tudo é impossível, como tinha avisado. Creio que conhecer os seus efeitos é muito útil para ver como são diferentes daqueles produzidos pelos arrebatamentos fingidos (disse que são fingidos não porque quem os tem queira enganar, mas porque está enganado). Quando os sinais e efeitos não correspondem aos desta grande graça, a pessoa fica desacreditada de tal maneira que, com razão, desconfia-se depois de qualquer um a quem o Senhor a concede verdadeiramente. Seja ele para sempre bendito e louvado, amém, amém.
Capítulo 5
Continua no mesmo assunto e mostra como Deus levanta a alma num voo do espírito diferente do já descrito. Mostra algumas das razões por que é imprescindível ter coragem. Conta algo acerca dessa graça prazerosa que o Senhor faz. É muito proveitoso.
1. Há outro tipo de arrebatamento que eu chamo de voo do espírito. Embora seja essencialmente tudo igual, no interior percebe-se de maneira muito diferente.
Às vezes sobrevém de súbito um movimento rápido da alma. Parece que o espírito é transportado com tal velocidade que se sente grande temor, em especial nos começos. Foi por isso que eu disse que quem recebe essas graças de Deus precisa ter muita coragem7. E também grande fé, confiança e resignação para permitir que Nosso Senhor faça da alma o que quiser. É assustador ver a própria alma ser arrebatada, sem saber quem a leva, para onde nem como. Temos lido alguns relatos segundo os quais às vezes até o corpo vai junto. A alma está em plena posse dos sentidos, mas não tem certeza de que é Deus quem a arrebata, ao menos no início desse movimento.
2. Há algum meio de resistir? De jeito nenhum. Uma pessoa conhecida me disse que é pior. Segundo ela, essa graça é dada à alma que se mostra, com muita persistência e confiança, determinada a se colocar nas mãos de Deus, oferecendo-se toda de plena vontade.
Parece que o Senhor quer lhe mostrar que a recebe como sua e que ela já não é dona de si mesma. E com um movimento extraordinariamente impetuoso a arrebata. A alma se deixa levar como uma palha ao vento. Abandona-se nas mãos de quem é tão poderoso, porque compreende que só lhe resta fazer da necessidade uma virtude. Comparei esse arrebatamento a uma palha levada pelo vento, e decerto é isso mesmo, pois este nosso admirável e poderoso gigante arrebata o espírito tão facilmente como um rapagão ergue uma palha.
3. É algo parecido com aquele tanque d’água de que falávamos nas quartas moradas (se bem me lembro), que lá se enchia sem nenhum sobressalto, com grande suavidade e mansidão.
Nosso grande Deus controla os mananciais das águas e não permite que o mar ultrapasse os seus limites. Mas aqui ele abre todas as fontes que abastecem esse tanque. E com grande ímpeto levanta-se uma onda tão poderosa que ergue alto o barquinho da nossa alma. Assim como nem o barco, nem o piloto, nem a tripulação podem resistir às ondas furiosas de uma tempestade que os lançam aonde querem, assim também aqui a alma não consegue deter-se nem dominar seus sentidos e faculdades. Quanto ao corpo, nem se lembra que ele existe.
4. Creiam, irmãs, que só de escrever isto me assombro, vendo como este grande Rei e Imperador revela aqui seu imenso poder. Que impacto não produzirá então sobre quem passa por isso? Tenho para mim que, se Sua Majestade se mostrasse assim aos que andam muito perdidos pelo mundo, ainda que não fosse por amor, ao menos por medo, não ousariam voltar a ofendê-lo pecando.
Oh, avaliem então qual será o dever de fidelidade das que foram, de maneira tão sublime, alertadas para a necessidade de se empenhar ao máximo em não desgostar a este Senhor! Por Ele, suplico, irmãs, àquelas a quem Sua Majestade tiver feito essas graças ou outras semelhantes, que não se descuidem, limitando-se a receber graças sem nunca produzir obras. Vejam que quem muito deve, muito terá de pagar.
5. Também será preciso ter muita coragem, pois essa graça intimida muitíssimo. Se Nosso Senhor não socorresse a alma, ela ficaria em grande apuro ao perceber como retribui pouco tudo o que Sua Majestade faz por ela. E mesmo esse pouquinho é cheio de faltas, erros e frouxidão.
Será melhor esquecer o quão imperfeitamente faz qualquer obra, se é que faz, lembrar-se de seus pecados e confiar-se à misericórdia de Deus. Já que não tem meios de pagar, que a socorra a piedade e misericórdia que ele sempre tem para com os pecadores.
6. Se vocês fizerem isso, talvez o Senhor lhes responda como o fez a uma pessoa que se encontrava muito aflita diante de um crucifixo, pensando que nunca teve nada que pudesse dar a Deus ou abandonar por ele: disse-lhe o Crucificado, consolando-a, que ele lhe dava todas as dores e sofrimentos de sua paixão e que ela os considerasse seus para oferecê-los ao Seu Pai. Aquela alma ficou tão reconfortada e feliz, segundo entendi dela mesma, que nunca mais se esqueceu disso. E, cada vez que se sente abatida diante da própria miséria, recorda-se dessas palavras e fica animada e consolada. Eu poderia contar outras histórias como essa. Sei muitas porque tenho convivido com várias pessoas santas e dadas à oração. Mas não o faço para que vocês não pensem que sou eu.
Essa história me parece muito proveitosa para que vocês entendam como agrada ao Senhor que nos conheçamos a nós mesmas, procurando continuamente examinar e reexaminar nossa pobreza e miséria. Assim compreendemos que não temos nada que não venha dele.
Por isso, minhas irmãs, é preciso coragem para receber essa e tantas outras graças que o Senhor oferece à alma que trouxe até aqui. A meu ver, as pessoas humildes são as que necessitarão de mais coragem para esse voo do espírito, porque se consideram mais indignas. Que o Senhor nos dê coragem, por ser ele quem é.
7. O voo do espírito é de tal maneira vertiginoso que a alma parece realmente sair do corpo. Certamente ela não desmaia, embora, pelo menos por alguns instantes, não saiba dizer se está no corpo ou não. Quando termina, fica com a impressão de que esteve presente de corpo e alma em outra região muito diferente desta em que vivemos, onde há uma luminosidade bastante distinta, além de outras coisas igualmente insólitas.
Não poderia inventá-las nem se passasse a vida inteira tentando. E acontece de lhe ensinarem ali num instante tantas coisas que, se por muitos anos aplicasse a imaginação e o intelecto para organizá-las, não conseguiria ordenar nem um milésimo do que aprendeu. É o que se chama de visão imaginária (não é visão intelectual), pois se vê com os olhos da alma muito melhor do que com os do corpo. E, sem palavras, sabe-se de coisas até então ignoradas. Por exemplo, se se vê um santo, conhece-o como se tivesse convivido muito tempo com ele.
8. Outras vezes, juntamente com o que veem os olhos da alma, apresentam-se outras coisas por visão intelectual, geralmente, multidões de anjos que acompanham o Senhor. Mas não se vê nada com os olhos do corpo nem da alma. Por caminhos admiráveis que eu não saberei descrever, toma-se conhecimento disso e de muitas outras coisas que não podem ser ditas. Quem já passou por isso e tem mais habilidade do que eu talvez consiga explicar, embora me pareça bem difícil. Não sei dizer se a alma está ou não no corpo enquanto tudo isso acontece. Pelo menos, não juraria que sim nem que não.
9. Muitas vezes tenho pensado que a alma e o espírito são como o Sol e seus raios. Os raios do Sol têm tanta força que chegam prontamente a nós. Mas o Sol mesmo continua lá no céu. Talvez a alma possa, sem abandonar o seu posto, projetar sua parte superior para além de si mesma, pela força do calor que lhe vem de Jesus, que é o verdadeiro Sol de Justiça.
Enfim, não sei o que digo. Mas sei que, com a mesma rapidez com que uma bala é disparada duma arma de fogo, levanta-se um voo no interior (não sei explicar melhor) e, embora sem ruído, faz um movimento tão intenso que não pode ser fruto da imaginação, de jeito nenhum. Estando já muito longe de si mesma (pelo menos é o que ela consegue perceber), grandes segredos são-lhe revelados.
Quando volta a si, é com imensos ganhos. Passa a considerar os bens do mundo tão insignificantes, comparados aos que viu, que mais parecem lixo. Daí em diante, vive em permanente aflição. As coisas que antes pareciam ser muito preciosas já não valem nada. Aparentemente o Senhor quis lhe mostrar algo do lugar que lhe reserva, para que suporte as aflições da caminhada desta vida sabendo onde vai descansar. Dá-lhe uma pequena mostra das riquezas do céu, tal como fizeram os enviados do povo de Israel, trazendo os frutos da terra prometida(Números 13, 23-26).
Não pensem que experiência tão breve deixe pouco proveito na alma. São tão grandes que só quem passou por ela sabe avaliar.
10. Basta isso para ver-se claramente que não é ilusão do demônio nem da imaginação. A imaginação não é capaz de criar isso. Os enganos do demônio tampouco podem imprimir na alma tanta renovação, paz, sossego e crescimento.
A alma ganha, em especial, três coisas em alto grau: a primeira é o conhecimento da grandeza de Deus, que se revela mais e mais, à medida que nos achegamos a ele; a segunda, conhecimento de si mesma e humildade ao ver que coisa tão baixa como nós, comparada ao Criador de tantas grandezas, ousa ofendê-lo e ainda se atreve a levantar os olhos diante dele; e a terceira, a constatação do pouquíssimo valor que têm as coisas do mundo que não podem ser aplicadas no serviço de tão grande Deus.
11. Essas são as joias que o Noivo começa a dar à sua noiva. E são tão valiosas que não as entregará a quem não saiba cuidar delas. Essas visões do Senhor ficam tão bem esculpidas na memória que creio ser impossível esquecê-las até que se possa gozá-las para sempre no céu. Seria grandíssimo mal não as guardar com o devido zelo. Mas Quem as dá também pode nos conceder a graça de não as perder.
12. Voltando à questão da coragem, bastará ter um pouco? Parece que a alma realmente se aparta do corpo, perde os sentidos e não entende o que se passa. É preciso, pois, que lhe dê coragem Quem lhe dá tudo mais. Vocês vão dizer que esses momentos de temor serão muito bem recompensados. Eu digo o mesmo. Seja para sempre louvado Aquele que tanto pode dar. Queira Sua Majestade dar-nos os dons com que possamos servi-lo, amém.
Capítulo 6
Descreve um efeito da oração de voo do espírito pelo qual se saberá se é autêntica. Trata de outra graça que o Senhor faz à alma para movê-la a louvá-lo.
1. Desejosa de gozar por inteiro Aquele que lhe dá graças tão elevadas, a alma vive em grande tormento que, no entanto, não deixa de ser saboroso. Sente enormes ânsias de morrer. Com lágrimas constantes, pede a Deus que a tire deste exílio. Tudo no mundo a cansa. Estando a sós, tem algum alívio, mas logo volta a se afligir. E, sem essa inquietação, já não pode ficar. Enfim, essa borboletinha não tem descanso.
A alma está tão abrasada de amor que qualquer coisa capaz de atiçar esse fogo a faz voar. Assim, nesta morada, os arrebatamentos são muito frequentes. E não há meio de evitá-los, nem mesmo em público. Por isso, logo vêm as perseguições e murmurações. Ainda que ela queira se tranquilizar, não pode, porque muitas pessoas a atemorizam, principalmente os confessores.
2. Se, por um lado, a alma parece gozar de grande paz interior, principalmente quando a sós com Deus, por outro lado, é atormentada pelo medo de ser enganada pelo demônio e ofender a Quem tanto ama. As murmurações pouco a incomodam, exceto as de seu confessor que lhe censura os frequentes arrebatamentos, como se ela pudesse contê-los.
Todos a aconselham a tomar outro caminho, pois esse é muito perigoso. Ela não faz outra coisa além de lhes pedir orações e suplicar a Sua Majestade que a reoriente. Ao mesmo tempo, porém, não pode negar o imenso lucro que vem alcançando, mesmo porque tudo o que leu, ouviu dizer e sabe dos mandamentos de Deus lhe dá a certeza de estar a caminho do céu. Já que não consegue desistir dessa graça, confia-se nas mãos de Deus. Mas até isso a atormenta, pois receia estar desobedecendo ao confessor.
Obedecer e não ofender a Nosso Senhor lhe parece ser a melhor precaução para não se deixar enganar pelo demônio. Por isso não cometeria um pecado venial deliberado nem sob a ameaça de ser dilacerada. E aflige-se intensamente vendo quantas vezes peca sem querer.
3. Deus dá a essas almas um grandíssimo desejo de não descontentá-lo em nada nem cometer a mais leve falta, se puderem. Só por isso, queriam fugir de todos e invejam os que vivem nos desertos. Ao mesmo tempo, desejam correr o mundo para ver se animam alguma alma a louvar mais a Deus. Se é mulher, sofre porque a sua natureza frágil não lhe permite fazer isso. E sente grande inveja dos que têm liberdade para anunciar a todos este grande Deus dos Exércitos.
4. Oh, pobre borboletinha impedida por tantas correntes que não a deixam voar como queria! Tende compaixão dela, meu Deus. Providenciai para que ela possa cumprir ao menos em parte os seus desejos de anunciar vossa honra e glória. Não vos recordeis de como são insignificantes os seus méritos nem da baixeza de sua natureza. Poderoso sois vós, Senhor, para deixar passar os filhos de Israel, abrindo passagem no imenso mar Vermelho e no grande rio Jordão(Êxodo 14, 21-22, e Josué 3, 15-16).
Não tenhais pena dela porque, amparada pela vossa fortaleza, pode suportar muitas tribulações. Ela está determinada e deseja padecê-las. Estendei, Senhor, o vosso poderoso braço para sustentá-la, de modo que ela não desperdice a vida em mesquinharias. Resplandeça a vossa grandeza em criatura tão frágil e indigna, para que o mundo O louve, compreendendo que nada que ela faça é mérito dela, mas vosso. Ela quer isso, custe-lhe o que custar. Daria mil vidas, se tivesse, para que, por meio dela, uma só alma vos louvasse um pouquinho mais. E acredita que essas mil vidas seriam muito bem empregadas assim, embora compreenda, com razão, que não é digna de padecer por vós nem mesmo uma dor muito pequena, quanto mais morrer.
5. Não sei por que nem para que disse isso, irmãs. Não entendi a mim mesma. Mas compreendamos que, sem dúvida nenhuma, são esses os efeitos dos arrebatamentos ou êxtases que chamei de voo do espírito. Não são desejos passageiros, mas se assentam firmemente na alma. Na primeira oportunidade, são colocados em prática, e assim vê-se que não são fingidos.
E por que digo que estão firmemente assentados na alma? Às vezes a alma se acovarda até diante da menor dificuldade. Fica tão intimidada que não tem ânimo para fazer nenhuma boa obra. Penso que o Senhor a abandona à sua fraqueza natural para sua edificação. Desse modo ela percebe que, se alguma vez teve forças para fazer o bem, veio de Sua Majestade. Então, ela compreende isso com uma clareza desconcertante e sente-se aniquilada. E adquire maior consciência da misericórdia e grandeza de Deus, que age por meio de criatura tão fraca. Geralmente, porém, essa alma é amparada pela graça de Deus, como disse antes.
6. Prestem muita atenção, irmãs: às vezes esses desejos de ver a Nosso Senhor oprimem tanto que não será recomendável estimulá-los. Tentem esquecê-los, se puderem. Disse se puderem, porque há casos, que mencionarei adiante, em que não é possível esquecer, como vocês verão.
Tratando-se de voo do espírito, algumas vezes, será possível esquecer sim, porque nesse caso a razão está inteiramente submissa à vontade de Deus, como se repetisse as palavras de São Martinho (“Senhor, se eu ainda sou necessário ao teu povo, não me recuso ao trabalho”).
Mas se o desejo de vê-Lo é muito aflitivo, por precaução, será aconselhável desviar o pensamento para outro lugar. Digo isso porque, como é desejo típico de pessoas já muito adiantadas, bem que o demônio poderá falsificá-lo para nos convencer de que estamos assim tão avançadas. Sempre é bom estar alerta e com temor.
Tenho para mim que o demônio nunca poderá proporcionar a quietude e a paz que essa aflição dá à alma, quando é genuína. O que ele faz é estimular alguma paixão, como as que nos fazem sofrer pelas coisas do mundo. Quem não tiver experiência, não se dará conta. Pensando que é grande graça, alimentará esse desejo aflitivo o mais que puder. E sua saúde sofrerá muito dano, porque essa provação é contínua ou pelo menos muito frequente.
7. Fiquem sabendo que uma compleição fraca também costuma causar essas aflições, especialmente em pessoas emotivas que choram por qualquer coisinha. Mil vezes se derramarão em lágrimas pensando que é por Deus, embora não seja.
Pode acontecer ainda que eventualmente o coração se incline mais para certos excessos de sentimentalismo do que para o amor a Deus propriamente dito. Há pessoas que não se contêm a cada palavrinha que ouvem ou pensam sobre Deus e se acabam de tanto chorar. Como estão convencidas de que as lágrimas são sempre bom sinal, não percebem o erro e não querem fazer nada mais além de lhes dar livre curso.
O demônio pretende aqui enfraquecê-las a tal ponto que, depois, não possam fazer oração nem cumprir a Regra dos nossos mosteiros.
8. Quase posso ouvi-las me perguntar o que fazer. Vocês poderão dizer que talvez eu esteja enganada, vendo perigo em tudo, ao ponto de desconfiar até de coisa tão boa como as lágrimas. Realmente pode ser que eu me engane, mas a verdade é que já vi algumas pessoas caírem nesse erro. Eu mesma nunca me enganei quanto a isso, porque não sou nada emotiva. Ao contrário, tenho um coração tão duro que às vezes chega a me dar aflição. Apesar disso, quando é legítima graça de Deus, o fogo lá dentro é tão grande que o coração destila como um alambique. É fácil saber se as lágrimas vêm daqui, porque pacificam e são muito confortadoras. Não produzem alvoroço e poucas vezes fazem mal. E, mesmo se não vêm de Deus, têm algo de bom: é que só trazem dano ao corpo (se a pessoa for humilde), e não à alma. Mas, não havendo humildade, desconfiem.
9. Não devemos pensar que tudo se resume em chorar muito. O principal é que nos esforcemos para adquirir virtudes, porque é isso que nos fará progredir. E que as lágrimas venham quando Deus quiser, pois não depende de nós. Quanto menos contarmos com elas, tanto maior será o benefício quando vierem, porque são água que cai do céu. Elas regarão a terra seca de nossas almas e serão grande ajuda para produzir bons frutos.
A água que nós mesmas tiramos, cavando e cansando-nos, não tem nada a ver com essa. Na maioria das vezes, cavaremos fundo, ficaremos moídas e não acharemos nem sequer uma simples poça d’água, muito menos uma nascente transbordante. Sendo assim, irmãs, é melhor colocarmo-nos diante do Senhor, reconhecermos a sua misericórdia e grandeza, e também a nossa baixeza. Dê-nos o que quiser, quer seja água, quer seja secura, ele sabe o que nos convém. Aceitando a vontade do Senhor, seguiremos tranquilas e o demônio não terá tanta oportunidade de nos armar ciladas.
10. Em meio a essas graças, que são ao mesmo tempo penosas e saborosas, às vezes Nosso Senhor dá uns entusiasmos e uma oração estranha que nem a própria alma compreende. Registro isso aqui para que, se vocês a receberem, saibam que é autêntica e o louvem muito.
Acredito que consiste em uma grande união das faculdades da alma. Nosso Senhor permite que elas se deleitem nessa graça, embora não entendam o que é que gozam nem como. O mesmo acontece com os sentidos. Parece ilógico, mas é isso mesmo. É um deleite da alma tão excessivo que ela não queria desfrutá-lo sozinha e deseja contar aos seus servos para que a ajudem a louvá-Lo. Todas as suas forças se aplicam inteiramente nisso.
Oh, que festas, que demonstrações de amor daria, se pudesse, para que todos partilhassem a sua alegria! É como se reencontrasse a si mesma. Tal como o pai do filho pródigo (Lucas 15, 21-24), queria convidar a todos e dar uma grande festa, pois a sua alma está, sem dúvida, em lugar seguro, ao menos por enquanto. Acredito que ela tem razão, porque não é possível que o demônio dê tanto gozo interior no mais íntimo da alma, com tanta paz e contentamento que só incitam a louvar a Deus.
11. É ímpeto de alegria muito difícil de conter. Deve ser por isso que São Francisco andava gritando pelo campo quando se deparou com alguns ladrões e lhes disse que era mensageiro do grande Rei. Assim como São Francisco, outros santos isolam-se nos desertos para louvar a Deus livremente. Conheci um, chamado Frei Pedro de Alcântara (creio que é santo, dada a sua vida), que era considerado louco porque fazia o mesmo. Oh, que boa loucura, irmãs! Queira Deus dá-la a todas nós!
Que magnífica graça é gozar dessa loucura aqui neste mosteiro onde sempre encontraremos quem há de juntar-se a nós para louvar, e não murmurar. No mundo, porém, o Senhor é tão pouco conhecido que não surpreende o mau juízo que fazem.
12. Oh, que tempos desventurados, que vida miserável vivemos! Felizes as almas que tiveram a boa sorte de deixar este mundo.
Para mim, é particular satisfação ver como as irmãs experimentam às vezes essa alegria interior. Não se sabe qual glorifica mais a Nosso Senhor por viver retirada neste mosteiro. Vê-se claramente que são louvores saídos do fundo da alma. Gostaria que vocês fizessem isso mais vezes, irmãs, porque, quando uma começa, incentiva as outras. Haverá melhor uso para a língua do que glorificar juntas a Deus, já que não faltam motivos?
13. Praza a Sua Majestade dar-nos essa oração muitas vezes, pois é muito segura e proveitosa. Mas notem que não podemos adquiri-la por nossos próprios meios, já que é muito sobrenatural.
Às vezes, chega a durar um dia inteiro. A alma fica como quem bebeu muito, mas não ao ponto de se privar dos sentidos. Ou como um melancólico que não perdeu inteiramente o juízo. E depois não se esquece daquilo que lhe veio à mente, nem poderia.
Notem que essas comparações são muito grosseiras e não fazem justiça a tão preciosa graça. Não sei descrevê-la melhor. Esse gozo é tão sublime que faz a alma se descuidar completamente de si e de tudo mais. Não consegue fazer outra coisa além de louvar a Deus. Juntemo-nos a essa alma, minhas filhas. Para que haveríamos de querer ter mais juízo? Como poderíamos obter contentamento maior? Juntem-se a nós todas as criaturas, por todos os séculos dos séculos, amém, amém, amém.
Capítulo 7
Descreve o remorso que sentem por seus pecados as almas que recebem de Deus as graças descritas no capítulo anterior. Explica que é grande erro não meditar, por mais espiritual que se seja, na humanidade de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, sua sacratíssima vida e paixão, sua gloriosa Mãe e santos. É muito proveitoso.
1. Aquelas que não alcançaram essas graças poderão supor que as almas com quem o Senhor se comunica tão intimamente sentem-se já muito seguras de que irão gozá-lo para sempre e por isso não têm mais nada a temer nem motivo para chorar seus pecados. Não é verdade. Quem já experimentou essas graças – se são verdadeiramente graças de Deus – sabe que seria grande erro pensar assim. Com efeito, a dor dos pecados aumenta à medida que se recebem mais favores de nosso Deus. Tenho para mim que esse tormento não nos deixará até que sejamos levadas aonde nada pode nos afligir.
2. Às vezes essa dor aumenta porque se faz sentir de maneira diferente: não porque a alma sinta medo dos sofrimentos que há de suportar para expiar seus pecados, mas por constatar o quanto foi ingrata com Aquele a quem tanto deve e que tanto merece ser servido. À medida que recebe graças cada vez maiores, ela vai se dando conta da grandeza de Deus e se espanta, pensando como pôde ser tão atrevida. Quando se recorda das mesquinharias pelas quais renunciava a tão grande Majestade, sente-se devorada pelo remorso e compreende que estava possuída por tamanha loucura que nunca poderá lamentar suficientemente. Lembra-se muito mais disso do que das graças recebidas (mesmo das que são tão elevadas como as que descrevi e as que ainda resta mencionar), como se, de tempos em tempos, fossem trazidas e levadas por um rio caudaloso. Por outro lado, os pecados permanecem grudados na memória como lodo, sempre presentes, e é pesada cruz.
3. Sei de uma pessoa que, antes de chegar aqui, queria morrer para ver a Deus. Mas, tendo chegado, passou a desejar a morte para não sofrer tão repetidamente a dor de ver como foi mal-agradecida a Quem tanto devia e havia de dever para sempre. Essa pessoa estava convencida de que não existia no mundo inteiro ninguém cujas maldades se igualassem às suas, porque, segundo pensava, ninguém que recebesse graças tão numerosas ousaria fazer Deus sofrer tanto.
Essas almas não têm nenhum medo do inferno. Mas se inquietam enormemente diante da possibilidade de perderem a Deus, embora isso não seja frequente. Temem acima de tudo que Deus lhes permita ofendê-lo e que se vejam novamente no estado miserável de outrora. Não pensam se o futuro lhes reserva penas ou glórias. E, se desejam não permanecer muito tempo no purgatório, é mais para não ficarem ausentes de Deus enquanto estiverem lá e menos para fugirem aos castigos que haverão de sofrer.
4. Convém que a alma nunca se esqueça do estado miserável do qual Jesus a resgatou, por maiores que sejam as graças recebidas depois. Embora seja penoso manter viva na memória a lembrança de sua condição inicial, não deixa de ser muito útil. Acho que penso assim porque fui muito ruim. É por isso que não consigo me esquecer de quem eu era. As que têm sido boas não terão do que se lamentar, embora seja prudente ficar de sobreaviso, porque sempre há quedas enquanto vivemos nestes corpos mortais.
Pensar que Nosso Senhor já perdoou e esqueceu nossos pecados não diminui nem um pouco essa dor. Até piora ver tanta bondade favorecer quem merecia o inferno. Creio que isso foi um enorme martírio para São Pedro e Santa Madalena. O grande amor que sentiam por Ele, as muitas graças recebidas e o conhecimento que tinham da grandeza e majestade de Deus, por certo, aumentaram muito o seu remorso.
5. Vocês também poderão pensar que graças tão sublimes são mais que suficientes para alimentar o amor. Consequentemente não será necessário meditar nos mistérios da sacratíssima humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Escrevi longamente sobre isso em outra parte e fui muito criticada. Disseram que não entendo dos caminhos por onde Nosso Senhor nos conduz e que, depois de dar os primeiros passos, o melhor que a alma tem a fazer é contemplar a divindade de Cristo, sem perder tempo com realidades corpóreas. No entanto, não conseguiram me convencer de que esse caminho seja bom. Pode ser que eu me engane, ou talvez estejamos todos dizendo a mesma coisa com palavras diferentes. A verdade é que eu me dei conta de que o demônio tentou me enganar, fazendo-me crer que não se deve meditar na humanidade de Cristo. Assim, estou tão escaldada que vou alertá-las de novo, embora já tenha dito muitas vezes, para que vocês sejam extremamente cautelosas neste ponto. Ouso pedir que não acreditem em quem discorda de mim.
Vou tentar explicar melhor do que antes. É preferível falar muito e deixar tudo bem esclarecido do que ser breve e correr o risco de desencaminhar quem entende pouco.
6. Certas pessoas não se permitem meditar sobre a paixão de Cristo. Menos ainda sobre a vida da Santíssima Virgem e dos santos, cuja memória nos traz grande proveito e alento. Francamente, não sei o que essa gente tem na cabeça. Só espíritos angélicos são capazes de estar sempre abrasados de amor e viver inteiramente separados das coisas corpóreas. Isso não é para nós que habitamos nestes corpos mortais. É imprescindível aproximarmo-nos de pessoas de carne e sangue que realizaram consideráveis façanhas por Deus. Precisamos tratar com elas e refletir sobre o seu exemplo de vida. E jamais devemos nos afastar propositadamente desta imensa graça e grande socorro que é a sacratíssima humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Não consigo acreditar que alguém o faça, a menos que não se conheça a si mesmo. Os que pensam assim fazem mal a si e aos que lhes dão ouvidos. Com certeza, não entrarão nesta nem na última morada, porque, se perdem o guia, que é o bom Jesus, não acharão o caminho. Terão muita sorte se conseguirem ficar em segurança nas moradas precedentes. O Senhor nos disse que ele é o caminho, que é luz, que ninguém pode ir ao Pai senão por ele e “quem me vê a mim, vê a meu Pai” (João 8, 12; 14, 6; e 14, 9). Alguns dizem que essas palavras têm outro sentido. Eu não sei qual poderia ser. Com esse, que a minha alma sempre sentiu ser verdadeiro, tenho andado muito bem.
7. Há pessoas que, mal Nosso Senhor lhes dá contemplação perfeita (muitas já falaram sobre isso comigo), gostariam de permanecer indefinidamente nesse estado, coisa que não é possível, certamente. E, depois de receber essa graça, já não conseguem meditar nos mistérios da vida e paixão de Cristo como antes. Não sei por que, mas isso é muito frequente. Por algum motivo, o intelecto fica incapacitado para a meditação. Talvez porque, como a meditação consiste em buscar a Deus, tendo-o encontrado uma vez, usando a força da vontade, a alma se acostuma a procurá-lo dessa maneira e já não quer cansar o intelecto. Parece que, depois de despertar a vontade, a alma evita fatigar o intelecto. E não faz mal. Porém, via de regra, será praticamente impossível reencontrá-Lo assim, ao menos até chegar a estas duas últimas moradas. Quem insistir perderá tempo, porque o mais das vezes será necessária a ajuda do intelecto para inflamar a vontade.
8. Notem, irmãs, como este ponto é importante. Vou explicá-lo melhor. A alma não quer fazer nada mais além de empenhar-se inteiramente em amar. Mas não pode, porque, embora a vontade não esteja morta, o fogo que deveria fazê-la arder esmoreceu. É preciso soprá-lo o quanto antes para que volte a se abrasar. Não é bom que a alma se demore nessa aridez, esperando cair fogo do céu para queimar o sacrifício que está fazendo de si a Deus, como fez Elias, nosso pai (1 Reis 18, 38) . Definitivamente, não convém ficar à espera de milagres. O Senhor os faz por amor, mas só quando quer. Sua Majestade deseja que nos consideremos tão ruins como se não fôssemos dignas de recebê-los. E quer que nos ajudemos a nós mesmas em tudo o que pudermos. Tenho para mim que isso vale para a vida inteira, por maior que seja o progresso na oração.
9. Quem já foi introduzido pelo Senhor nas sétimas moradas pouquíssimas vezes, ou quase nunca, precisa recorrer a esses expedientes (explicarei isso quando chegar lá, se me lembrar), pois caminha continuamente, de maneira admirável, na companhia de Cristo Nosso Senhor, já que sua divindade e humanidade estão sempre ao seu lado.
Mas aquelas em cuja vontade não se acendeu o fogo de que falei e não sentem a presença de Deus terão de buscá-la diligentemente. Sua Majestade quer que façamos isso, como fez a esposa dos Cantares. Quer que perguntemos às criaturas quem é o Criador, como diz Santo Agostinho, nas suas Meditações ou Confissões, creio eu. E que não fiquemos ociosas, perdendo tempo, esperando receber novamente a graça que ele nos deu uma vez. Pode ser que, no primeiro ano, ou mesmo em muitos anos, o Senhor não nos conceda nenhuma graça nova. Sua Majestade sabe o que faz. Não devemos procurar entender suas razões, nem há motivo para isso. Basta-nos saber qual é o caminho e como havemos de contentá-lo, cumprindo os seus mandamentos e conselhos, meditando na sua vida e morte e no muito que lhe devemos. Cuidemos disso zelosamente. E que o resto venha quando o Senhor quiser.
10. Alguns poderão dizer que não conseguem se deter nessas reflexões. E talvez tenham razão, pois, como expliquei há pouco, de certo modo, o intelecto fica incapacitado para a meditação.
Vocês já sabem que uma coisa é aplicar o intelecto na meditação e que outra coisa bem diferente é recorrer à memória para mostrar certas verdades ao intelecto. Não sei se estou conseguindo me fazer entender. Talvez eu não compreenda o suficiente para explicar com clareza. Em todo caso, vou dizer o que sei.
Chamo meditação o exame aprofundado com o intelecto, desta maneira: começamos pensando na graça que Deus nos fez dando-nos o seu único Filho, e não paramos aí, mas seguimos adiante, visitando os mistérios de toda a sua vida gloriosa. Ou podemos começar pela oração do horto das oliveiras, e o intelecto não para até estar pregado na cruz. Ou então escolhemos um passo da paixão, por exemplo, a prisão, e percorremos esse mistério, examinando minuciosamente tudo o que há para pensar e sentir, como a traição de Judas, a fuga dos apóstolos e tudo mais. É oração admirável e muito meritória.
11. Essa é a oração de que falei há pouco. É a ela que se referem aqueles que receberam de Deus graças sobrenaturais e contemplação perfeita, dizendo-se incapazes de praticá-la. Não sei por que, mas geralmente não podem mesmo. Apesar disso, creio que essas pessoas se recordam frequentemente desses mistérios e se detêm neles, em especial, quando a Igreja Católica os celebra, mesmo porque não seria possível que a alma favorecida por Deus com tantas e tão preciosas provas de amor se esquecesse dessas centelhas vivas que inflamam ainda mais o amor a Nosso Senhor.
A menos que não compreendam a si mesmas e não percebam que assim a alma entende esses mistérios de maneira mais perfeita: o intelecto os representa e imprime na memória com tal força que apenas a visão do Senhor caído por terra no horto com aquele suor espantoso basta não só para uma hora, mas para muitos dias de meditação. Num relance, vemos quem ele é e como temos sido ingratas diante de tão grande dor. E prontamente nasce a vontade (mesmo que sem emoção) de servir de algum modo a quem nos dá tamanha graça e de padecer alguma pena por quem sofreu tanto por nós.
Do mesmo modo, muitos outros pensamentos semelhantes tomam de assalto a memória e o intelecto, interrompendo a meditação. Creio que é por isso que aquelas pessoas se julgam incapazes de discorrer longamente sobre a paixão.
12. Se alguma de vocês não costuma meditar detidamente sobre a paixão de Nosso Senhor, é bom que procure fazê-lo. Certamente não será obstáculo para alcançar o mais elevado grau de oração. Recomendo que façam isso muitas vezes. Se o Senhor arrebatar a alma durante esse exercício, que seja. Mesmo que ela não queira, ele a fará suspender a meditação. Tenho certeza de que esse modo de proceder não atrapalha em nada, mas ajuda muito.
Estorvo seria se se gastasse muito tempo meditando com o intelecto da maneira que expliquei acima. (Estou me referindo agora àquelas pessoas que já alcançaram um grau elevado de oração e que não conseguem meditar com o intelecto, como disse há pouco.) Ou, talvez, pode ser que algumas consigam sim. Deus leva as almas por muitos caminhos diferentes. Enfim, quem não puder seguir por esse caminho não se recrimine nem se julgue inabilitada para gozar dos grandes bens que estão escondidos nos mistérios do nosso bem, Jesus Cristo. Ninguém, por mais espiritual que seja, vai me convencer de que não é bom pensar nele.
13. Há almas que, tendo experimentado os contentamentos e gostos que o Senhor dá na oração de quietude, pensam que é grande coisa deixar-se ficar ali, deleitando-se demoradamente. Mas creiam em mim e não se embeveçam tanto, como já disse em outro lugar. A vida é longa e cheia de provações. Para enfrentarmos as nossas com perfeição, devemos ter em mente os sofrimentos do nosso modelo Jesus Cristo e também os dos seus apóstolos e santos. O bom Jesus é muito boa companhia para que nos separemos dele e de sua Mãe sacratíssima. Ele aprecia muito que nos condoamos de suas dores, abrindo mão, de vez em quando, dos nossos contentamentos e gostos. Tanto mais, filhas, que o contentamento na oração não é tão frequente que não sobre tempo para isso.
Eu suspeitaria de quem me dissesse que não pode fazê-lo, alegando que permanece continuamente embevecida, sem nunca sofrer os reveses da vida. Procurem evitar esse erro, esforçando-se ao máximo para se desembevecer. Se não conseguirem, peçam à prioresa que lhes dê uma ocupação de tanta responsabilidade que afaste esse perigo. No mínimo, será grande risco para o juízo e a cabeça se durar muito.
14. Creio ter demonstrado que não convém, por mais espiritual que se seja, recear tanto as coisas corpóreas ao ponto de ver perigo até na humanidade sacratíssima de Cristo. Os que discordam costumam citar as palavras que o Senhor dirigiu a seus discípulos, dizendo que convinha que ele se fosse(João 16, 7). Não posso aceitar isso. Certamente ele não disse o mesmo à sua Mãe sacratíssima, porque ela tinha uma fé inabalável e sabia que ele era Deus e homem. Amava-o mais que todos e com tanta perfeição que isso a ajudava. Os Apóstolos não deviam estar àquela altura tão firmes na fé como ficaram depois.
De nossa parte, temos razões de sobra para estar firmes agora. Fiquem alertas, filhas. Considero esse caminho perigoso, pois, semeando aversão a tudo o que é corpóreo, o demônio poderia nos fazer perder a devoção ao Santíssimo Sacramento.
15. O engano em que caí não chegou a tanto. Eu não gostava de pensar muito em Nosso Senhor Jesus Cristo. Preferia ficar embevecida, esperando a satisfação que tinha experimentado antes. Mas logo vi claramente que ia mal, porque, como não podia tê-la sempre, o pensamento perambulava, e a alma ficava revoando como pássaro sem encontrar lugar de pouso. Assim perdia muito tempo e não progredia nas virtudes nem crescia na oração. Não entendia o motivo, pois aquilo me parecia muito apropriado. Finalmente fui alertada por certa pessoa serva de Deus e, só então, percebi claramente o meu erro. Ainda hoje sinto remorso por ter passado tanto tempo sem compreender que nada havia de ganhar dessa maneira. Mesmo se fosse possível, não quero nenhum bem que não seja adquirido por meio de Quem nos vêm todos os bens. Seja para sempre louvado, amém.
Capítulo 8
Mostra como Deus se comunica com a alma por visão intelectual. Faz alguns alertas e descreve os efeitos que produz quando é autêntica. Recomenda que se mantenha essa graça em segredo.
1. Quanto mais a alma progride, mais tempo passa em companhia deste bom Jesus. Para que vocês saibam, irmãs, que digo a verdade, vou lhes falar de como, quando Sua Majestade consente, não podemos mais passar sem ele. Vê-se isso nitidamente pelas maneiras e modos que Sua Majestade nos comunica. Ele também mostra o amor que tem por nós em aparições e visões admiráveis.
Para que vocês não se assustem, caso ele lhes conceda essas graças, vou descrever algumas brevemente, com a ajuda do Senhor. E, mesmo que nunca sejamos assim favorecidas, havemos de louvá-lo muito por se comunicar com criaturas tão pequeninas, ele que tem tamanha majestade e poder.
2. Estando a alma desavisada de que vai receber essa graça e sem sequer sonhar merecê-la, acontece sentir junto de si Jesus Cristo Nosso Senhor, embora não o veja nem com os olhos do corpo, nem com os da alma. Chamam a isso visão intelectual, não sei por quê.
Uma pessoa a quem Deus fez essa graça (além de outras que contarei adiante) ficou muito perturbada a princípio, sem entender o que se passava. Embora não pudesse vê-lo, estava convencida de que era Nosso Senhor que se mostrava daquela maneira. E não podia duvidar que aquela visão era real. Contudo sentia medo por não saber se vinha de Deus ou não, embora produzisse grandes efeitos que davam a entender que sim. Até então, ela não sabia nada acerca de visão intelectual nem imaginava que tal coisa pudesse existir. Por fim, suas dúvidas foram dissipadas pelos grandes efeitos produzidos pela visão, que assim mostrou ser autêntica. E ela entendeu claramente que o Senhor lhe falara desse mesmo modo em muitas outras ocasiões antes de receber essa graça. Até então, ela não sabia quem lhe falava, embora compreendesse as palavras.
3. As visões intelectuais não são como as imaginárias, que passam depressa. Chegam a durar muitos dias e às vezes até mais de um ano. Essa pessoa ficou tão perturbada que procurou seu confessor muito aflita. Ele lhe perguntou como sabia que era Nosso Senhor, já que não O via, e pediu que lhe descrevesse o Seu rosto. Ela respondeu que não seria possível, pois não via rosto nenhum e, portanto, não podia dizer mais nada. Apenas sabia que era ele quem lhe falava e que não era ilusão. Ainda que o confessor a deixasse muito assustada repetidas vezes, ela não vacilava, em especial quando o Senhor lhe dizia “Não tenhas medo, sou Eu”. Essas palavras tinham tal força que não admitiam dúvida, e ela ficava muito revigorada e feliz em tão boa companhia.
Compreendia que a presença constante do Senhor era grande ajuda para ser muito cuidadosa e não fazer nada que lhe desagradasse, pois sentia que seus olhos velavam sempre sobre ela. Cada vez que queria falar com Sua Majestade, em oração ou não, sentia-o tão próximo de si que não poderia deixar de ouvi-la. Quanto a compreender o significado de suas palavras, em geral, não era de imediato, e sim quando se fazia necessário e de maneira imprevista.
Sentia que ele andava ao seu lado direito, mas não do mesmo modo como percebemos uma pessoa junto de nós. Era uma sensação diferente e refinada que não sei explicar. Muito mais perceptível e real do que eu consigo dizer. Até se poderia desconfiar de melancolia, se não fossem os imensos benefícios e efeitos interiores produzidos, mesmo porque o demônio não seria capaz de fazer tanto bem ao ponto de a alma sentir tamanha paz, tão contínuos desejos de contentar a Deus e tal desprezo de tudo o que não a aproxima ainda mais dele. De fato, à medida que esses efeitos iam se revelando mais e mais, entendeu-se claramente que não era ação do demônio.
4. Contudo, essa pessoa ficava, por vezes, muito temerosa e confusa, pois não sabia de onde lhe vinha tanto bem. Éramos, eu e ela, tão íntimas, que nada se passava em sua alma que eu ignorasse, e por isso sou boa testemunha. Podem acreditar que é tudo verdade. Essa graça do Senhor inspira enorme assombro diante das suas grandezas e humildade ante a nossa pequenez.
Se fosse do demônio, seria tudo ao contrário. Seguramente é graça de Deus, pois nenhuma habilidade humana poderia produzi-la. E ninguém pense que seja mérito próprio, mas saiba que é dada pela mão de Deus. Embora eu creia que algumas das graças que disse antes sejam ainda maiores que esta, há nela algo especial, que dá um particular conhecimento de Deus. Dessa contínua presença de Deus nasce um amor terníssimo para com Sua Majestade. A alma sente uns desejos ainda maiores do que os já referidos de se colocar toda a seu serviço. E experimenta uma grande limpeza de consciência, porque em tudo o que faz transparece a companhia que traz junto de si. Mesmo sabendo que Deus está presente em tudo o que fazemos, a nossa natureza é tal que se esquece disso facilmente. Mas aqui não, pois a presença do Senhor mantém a alma desperta. Até mesmo as outras graças de que já falei tornam-se muito mais frequentes, pois a alma está enamorada e quase sempre diante de Deus, vendo-o ou sentindo-o junto a si.
5. Enfim, por tudo o que a alma ganha, sabe-se que é grandíssima graça e muito, muito de apreciar e agradecer ao Senhor que a dá sem merecimento dela. Não a trocaria por nenhum tesouro nem deleite deste mundo. E sente grande solidão quando o Senhor lhe tira essa mercê. Por mais que faça para reaver a sua companhia, nada surtirá efeito. O Senhor nos dá a graça da sua presença quando quer, e não podemos retomá-la por força da nossa vontade. Às vezes, a alma pode usufruir ainda a companhia de algum santo, que também traz grande proveito.
6. Vocês perguntarão: como se sabe que é Cristo ou sua Mãe gloriosíssima, ou um santo, se não se vê nada? Isso a alma não consegue explicar. Apenas sabe e com muita certeza. Quando o Senhor fala, é mais fácil. Mas reconhecer um santo que não vemos nem nos fala é coisa para se maravilhar (parece que o Senhor o coloca ali para ajudar aquela alma e lhe fazer companhia). Certas coisas espirituais são inexplicáveis. Por aí se deduz como a nossa natureza é baixa e incapaz de compreender as grandezas de Deus. Realmente não podemos alcançá-las.
Que a alma a receba com admiração e louvores a Sua Majestade e lhe dê especiais graças. Já que não é favor concedido a todos, há de ser muito valorizado, procurando-se servir mais, pois Deus a ajudará de muitas maneiras. Mas ela não se considera melhor que ninguém por isso, e sente-se como quem menos serve a Deus no mundo inteiro, porque se vê mais obrigada a servi-lo do que qualquer outra. E, à menor falta, o remorso lhe transpassa as entranhas, com grandíssima razão.
7. Vocês poderão notar que esses efeitos sobre a alma não são engano nem ilusão. Como disse, creio que não seria possível durar tanto tempo se fosse obra do demônio, trazendo tão notável benefício à alma e transmitindo-lhe tamanha paz interior. Coisa tão má não tem o costume nem pode, mesmo se quiser, fazer tanto bem. Logo haveria uns fumos de vanglória e sentimentos de superioridade. Além do mais, ver a alma sempre tão unida a Deus e com o pensamento tão ocupado nele daria tal raiva ao demônio que, nem se quisesse, voltaria a enganá-la assim. Deus é fiel e não lhe dará tanto acesso à alma que não pretende outra coisa senão agradar a Sua Majestade e dar a vida por sua honra e glória, mas ordenará tudo de modo que ela seja alertada logo.
8. Como a alma encontra-se sob o efeito dessas graças, por certo, Sua Majestade providenciará para que ela saia com vantagem, caso permita que o demônio tente enganá-la, e ele será posto a correr. Por isso, filhas, se algumas de vocês seguirem por esse caminho, não se assustem. Mas convém que se conduzam com temor e sejam cautelosas. Tampouco cometam a imprudência de pensar que, por receberem tantos benefícios, poderão se descuidar. Isso será sinal de que não é de Deus, principalmente se vocês não apresentarem os efeitos que descrevi.
É bom que logo no início dessas graças vocês peçam conselho em confissão a um padre muito letrado (são esses que irão nos orientar) ou a uma pessoa muito espiritual. Se não houver nem um nem outro, procurem alguém que seja muito letrado. Se possível, letrado e espiritual. Se lhes disserem que é ilusão, não se preocupem: se for, pouco mal ou bem poderá fazer à alma. Encomendem-se à Divina Majestade para que não consinta que sejam enganadas. Se lhes disserem que é o demônio, será maior provação. Creio, no entanto, que um bom letrado, ciente dos efeitos que descrevi, não lhes dirá isso. Mas, se disser, o Senhor que anda com vocês lhes dará consolo, garantirá a verdade e iluminará ao confessor para que ele as ilumine.
9. Se o Senhor não levou o seu confessor por esse caminho, ainda que seja pessoa dada a oração, logo se espantará e o condenará. Por isso, insisto para que encontrem um que seja muito letrado e, se possível, também espiritual. E peçam à prioresa licença para consultá-lo. Ainda que a alma vá segura por saber que o confessor é pessoa virtuosa, não deixem de avisá-la para evitar mexericos. E, depois de tratar desses assuntos com ele, aquietem-se e não comentem nada com ninguém. Às vezes, sem motivo real, o demônio inspira uns temores tão excessivos que levam a alma a não se tranquilizar depois da confissão, especialmente se o confessor se mostra apreensivo.
Ou então, ele mesmo, por inexperiência, poderá lhe sugerir que conte a outras pessoas o que por cautela deveria silenciar. Assim ela correrá o risco de se decepcionar ao descobrir que o seu segredo se tornou público, vendo-se inesperadamente perseguida e atormentada. Por conta disso, ficará exposta a muitos desgostos que poderão inclusive arranhar o bom nome da Ordem nestes tempos corrompidos em que vivemos. Será preciso conduzir esse assunto com muita discrição. Aconselho às prioresas agir com redobrada cautela.
10. A irmã que recebe graças semelhantes não se julgue melhor que as outras. O Senhor conduz cada uma como bem quer. Esse caminho é boa preparação para vir a ser grande serva de Deus, se nos empenhamos. Mas, às vezes, Deus leva por ele as mais fracas. Então não há aqui nada para se aprovar nem condenar.
Quem é virtuosa e serve a Nosso Senhor com mais mortificação, humildade e limpeza de consciência, será a mais santa. A verdade é que pouco sabemos com certeza antes que o verdadeiro Juiz dê a cada um o que merece. Lá nos surpreenderemos, vendo como o seu juízo é diferente daquilo que imaginamos aqui. Seja ele para sempre louvado, amém.
Capítulo 9
Trata de como o Senhor se comunica com a alma por visão imaginária e adverte para que não ambicionem seguir por esse caminho. Explica o motivo. É muito proveitoso.
1. Vamos falar agora das visões imaginárias. Dizem que o demônio pode se intrometer nessas graças mais facilmente do que nas anteriores. E deve ser verdade. Mas, quando elas vêm de Nosso Senhor, de algum modo, parecem-me mais proveitosas, porque se ajustam melhor à nossa natureza, com exceção apenas das incomparáveis graças que o Senhor dá na última morada.
2. Mas vejamos primeiro como o Senhor se manifesta na visão intelectual descrita no capítulo anterior. É como se, num estojo de ouro, houvesse uma pedra preciosa de grandíssimo valor e poder medicinal. Mesmo sem nunca a ter visto, temos certeza de que está ali, pois as suas propriedades curativas nos beneficiam enquanto a trazemos conosco. E por isso não deixamos de apreciá-la, porque, por experiência, sabemos que nos curou de algumas enfermidades para as quais é indicada. Mas não ousamos abrir o relicário e olhar para ela. Nem podemos, já que só a dona da joia sabe abri-lo. Embora tenha nos emprestado para que nos beneficiemos dela, ficou com a chave e, como é sua, abrirá quando quiser nos mostrar. E até poderá retomá-la, quando bem entender.
3. Digamos então que, às vezes, decide abri-lo por alguns instantes para agradar à pessoa a quem emprestou. Certamente, depois disso, essa pessoa se sentirá muito mais contente, lembrando-se do admirável brilho da pedra que lhe ficou gravado na memória.
O mesmo acontece na visão imaginária. Quando Nosso Senhor quer presentear a alma, revela-lhe claramente a sua sacratíssima humanidade, como ele quiser: ou mostra-se como era quando vivia neste mundo, ou como se apresentou depois da ressurreição. Embora seja com a rapidez de um relâmpago, essa imagem gloriosíssima se fixa tão bem na memória que penso ser impossível apagar-se, até que a alma a veja de novo onde possa gozá-la para sempre.
4. Disse imagem, mas não pensem que seja algo semelhante a uma pintura. Parece verdadeiramente viva e, por vezes, até fala com a alma para lhe revelar grandes segredos.
Os olhos se detêm nela por algum tempo, porém não mais do que se fixariam sobre o Sol, porque essa visão passa sempre muito depressa. Mas o seu brilho não chega a ferir a visão interior, pois não é como o sol que fere os olhos do corpo (não sei dizer nada sobre as visões que são percebidas pelos olhos do corpo, porque essa pessoa, de quem posso falar com tanta familiaridade, não tinha esse tipo de experiência).
A visão imaginária é percebida como se fosse uma luz difusa de um sol envolto por uma camada de diamante. Ou como um tecido de linho da Holanda através do qual as vestes transparecem. Geralmente a alma é arrebatada quando Deus faz essa graça, pois nossa baixeza não pode experimentar tão espantosa visão.
5. Disse espantosa porque é mais formosa e prazerosa que tudo o que poderíamos imaginar, mesmo se passássemos mil anos tentando. Vai muito além de tudo o que cabe em nosso intelecto e imaginação. A grandíssima majestade de Sua presença produz enorme assombro na alma. Não é preciso perguntar como ela sabe quem é, sem que ninguém lhe diga. O Senhor do céu e da terra se dá a conhecer muito bem, ao contrário dos reis deste mundo que, por si mesmos, são tidos em tão pouca conta se não os acompanham as suas cortes, ou se não dizem quem são.
6. Oh, Senhor, como nós os cristãos vos desconhecemos! Que será de nós naquele dia, quando voltardes para nos julgar, pois se, apresentando-se aqui à vossa esposa com tanta benevolência, ela sente tamanho temor, que será de nós então? Oh, filhas, que será de nós se ele nos disser com voz severa: “Afastai-vos de mim, malditos de meu Pai”? (Mateus 25, 41).
7. É muito proveitoso guardar a memória dessa graça que Deus dá à alma. São Jerônimo, embora santo, não se esquecia dela. Assim tudo quanto padecermos no rigor da nossa religião parecerá nada. Mesmo quando durar muito, será um momento comparado à eternidade.
Apesar de ser tão ruim, o medo que eu tinha dos tormentos do inferno não era nada comparado ao que sentia quando me lembrava que os condenados haverão de ver a ira destes olhos tão formosos, mansos e benignos do Senhor. Creio que o meu coração não suportaria tamanha dor. Essa angústia tem atravessado toda a minha vida.
Avalie-se então o que sofrem as pessoas a quem ele se mostrou nessa visão, temendo a possibilidade de verem a ira do Senhor naquele dia. Se a emoção de ver seus olhos amorosos é tão grande que se chega a perder os sentidos, qual não será a dor dos condenados ao vê-los irados? Tanto uma como outra estão acima das nossas forças. Deve ser por isso que essas pessoas são arrebatadas nessa visão imaginária. O Senhor socorre a sua fraqueza para uni-la à sua grandeza nessa sublime união com Deus.
8. Mas se a alma consegue se deter muito tempo olhando este Senhor, não creio que seja visão imaginária, e sim alguma ilusão criada pela imaginação a partir de uma profunda contemplação. E será como coisa morta comparada a esta de que falo.
9. Algumas pessoas têm a imaginação tão fraca ou o intelecto tão vigoroso (não sei bem qual dos dois) que se deixam embevecer pela própria imaginação e chegam a acreditar sinceramente que veem tudo aquilo em que pensam. Sei disso porque muitas dessas pessoas têm conversado comigo. Contudo, se experimentassem a verdadeira visão, entenderiam, sem dúvida, o engano em que caíram. Na verdade, elas mesmas vão compondo com a imaginação o que veem. Mas depois essa visão não produz nenhum efeito sobre elas, que ficam mais indiferentes do que se vissem uma imagem devota. E se esquecem de tudo mais rápido do que se fosse um sonho. Vê-se logo que não é para se levar a sério.
10. Na visão imaginária, entretanto, não é assim. A alma nem suspeita que está prestes a ver algo. Isso nem lhe passa pela cabeça. De repente, a visão surge muito próxima e agita todas as suas faculdades e sentidos, provocando grande espanto e desorientação. Em seguida, deixa-os em ditosa paz.
Do mesmo modo que São Paulo foi derrubado por aquele sobressalto tempestuoso do céu, assim é no mundo interior, onde também se faz intenso movimento. Mas, de repente, tudo volta à paz, e a alma fica tão instruída em verdades sublimes que não precisa de outro mestre. A verdadeira Sabedoria a ensinou sem nenhum esforço seu.
A alma sabe com certeza que essa graça vem de Deus. E, por mais que os outros tentem, não conseguem convencê-la de que está enganada. Mas, se o confessor também lhe põe medo, Deus permite que duvide e se pergunte se poderia ter sido enganada para expiação de seus pecados, embora ela acabe entendendo depois que tudo não passa de tentações em coisas de fé com as quais o demônio consegue fazer alvoroço, mas não pode lhe tirar a certeza. Quanto mais o demônio a combate, mais ela se convence de que ele não conseguiria lhe proporcionar tamanhos bens. Assim essa graça a faz ver que ele não pode tanto no interior da alma. Poderá sim falsificar alguma visão, mas não com tal verdade, majestade e operações.
11. Posto que a maioria dos confessores não têm experiência própria dessas visões, mostram-se receosos, e com razão. O que eles devem fazer é ficar atentos, esperar para ver que fruto elas produzem e observar se, pouco a pouco, vão aumentando a humildade e fortalecendo a virtude. Se for coisa do demônio, depressa dará sinal, e o apanharão em mil mentiras. Um confessor experiente precisará de pouco tempo para descobrir se vêm de Deus, da imaginação ou do demônio. Em especial, se Sua Majestade lhe deu o dom de conhecer os espíritos. Se tiver esse dom e ainda for letrado, mesmo que seja inexperiente, poderá reconhecer facilmente a visão verdadeira e a falsa.
12. É muito importante, irmãs, que vocês sejam simples e sinceras com o confessor. Não me refiro apenas à confissão de pecados, porque isso é óbvio, mas falem também sobre a sua oração. Sem isso, não lhes asseguro que vocês vão bem, nem que é Deus quem lhes ensina. Agrada-Lhe muito que tratemos àquele que está em Seu lugar como se fosse Ele mesmo. E deseja que o confessor entenda todos os nossos pensamentos e principalmente as nossas obras, por menores que sejam. Fazendo isso, não há razão para ficarem perturbadas nem inquietas, pois, mesmo que não seja de Deus, se vocês forem humildes e agirem com boa consciência, não lhes fará mal. Sua Majestade sabe tirar bens dos males. Pelo mesmo caminho por onde o demônio tentar desviá-las, vocês ganharão mais. Reconheçam que Deus lhes dá imensas graças e esforcem-se para contentá-lo cada vez mais e trazer sempre em mente a sua imagem.
Um eminente letrado dizia que o demônio é excelente pintor e que, se o inimigo tentasse iludi-lo, falsificando uma visão do Senhor, ele (o letrado) não se atreveria a blasfemar contra ela. Ao contrário, aproveitaria a oportunidade de avivar a sua devoção para com Aquele que é todo o nosso bem, reverenciando essa mesma visão. Assim faria guerra ao demônio com suas próprias armas. E agiria bem, a meu ver, pois, ainda que um pintor seja muito vil, não deixamos de venerar a imagem de Nosso Senhor que ele pintou.
13. Esse mesmo letrado dizia que não se deve fazer figa diante de uma visão. Segundo ele, temos de honrar a imagem do nosso Rei onde quer que a vejamos. E ele está certo, pois até mesmo aqui neste mundo ninguém gostaria de saber que um ente querido faz semelhante afronta ao seu retrato. Com muito mais devoção, tenhamos respeito por qualquer crucifixo ou qualquer retrato do nosso Imperador, não importa onde o encontremos.
Embora já tenha escrito isso em outra parte, alegro-me de o pôr aqui, pois conheço uma pessoa que ficou muito perturbada quando lhe mandaram fazer figa. Não sei quem inventou esse costume que tanto atormenta aqueles que não podem fazer outra coisa senão obedecer. Se algum confessor lhes der esse conselho, pensando que estão em erro, embora não estejam, recomendo que expliquem isso com humildade e não aceitem. Para mim, os argumentos do letrado que mencionei são extremamente convincentes.
14. A alma é muito beneficiada por essa graça do Senhor. Quando pensa nele ou em sua vida e paixão, sente grande consolo, recordando-se de sua mansíssima e formosa face. Do mesmo modo que nos alegra ver, aqui neste mundo, o rosto de uma pessoa que nos fez bem, garanto-lhes que tão agradável memória traz muito ânimo e proveito, além de muitos outros benefícios. Considerando, porém, que já falei bastante sobre os efeitos que essas graças produzem e como direi mais depois, não quero me cansar nem as cansar agora. Só vou avisá-las que, quando ouvirem dizer que Deus faz essas graças às almas, nunca lhe peçam que as leve por esse caminho, nem sequer o desejem.
15. Embora seja graça considerável, digna de reverência e de se ter em grande conta, não convém pedi-la, pelas seguintes razões: a primeira, porque é falta de humildade querer receber o que não merecemos, pois creio que não será muito humilde quem a desejar. Assim como um pequeno lavrador está longe de pretender ser rei, pois lhe parece ambição desmedida, assim também está o humilde para semelhantes coisas. Penso que esse tipo de pedido nunca será atendido, porque, antes de conceder tais graças, o Senhor nos dá um notável conhecimento de nós mesmas. Será que quem alimenta essas ambições compreende que já recebeu imensa graça por não estar agora mesmo no inferno?
A segunda, porque certamente será enganada, ou pelo menos correrá grande perigo de o ser. O demônio não precisa mais do que uma pequena porta aberta para fazer mil canalhices.
A terceira, é que a imaginação, movida por um grande desejo, faz com que a pessoa suponha ver e ouvir aquilo que almeja, tal como quem passa por alguma privação durante o dia e, querendo muito saciar o seu desejo, sonha à noite com a coisa desejada.
A quarta, é enorme atrevimento de nossa parte querer escolher o caminho, sem saber se há outro melhor. O Senhor nos conhece como ninguém. Deixemos que nos leve por onde ele sabe que é melhor para nós. E que em tudo se faça a sua vontade.
A quinta, vocês pensam que são poucas as provações que padecem aqueles a quem o Senhor faz essas graças? Não, são grandíssimas e muito variadas. Têm certeza de que poderiam suportá-las?
A sexta, porque talvez se tomassem o caminho por onde vocês esperavam ganhar, perderiam, como Saul perdeu sendo rei.
16. Enfim, irmãs, há outras razões além dessas. Creiam-me que o mais seguro é querer o que Deus quer, pois ele nos conhece e ama mais do que nós mesmas. Confiemo-nos em suas mãos para que seja feita a sua vontade em nós. Não poderemos errar se perseverarmos nessa determinação. Notem, entretanto, que não merece mais glória quem recebe muitas graças, porque na verdade fica mais obrigado a servir, já que recebe mais.
O Senhor não se opõe aos nossos esforços para merecer mais graças, pois depende de nós. Mas saibam que há pessoas muito santas que nunca souberam o que é ganhar uma dessas mercês. Ao mesmo tempo, há outras que as recebem, e não são santas.
E não pensem que tais graças sejam dadas facilmente. Antes que o Senhor as conceda uma vez, passa-se por muitas provações. E a alma não fica pensando se irá recebê-las de novo, mas sim em como retribuir as já recebidas.
17. Por certo, essas graças devem ser grandíssima ajuda para se adquirir virtudes da mais alta perfeição. Mas quem ganhá-las à custa do próprio trabalho merecerá muito mais. Conheço uma pessoa a quem o Senhor tinha feito algumas dessas graças. Na verdade, eram duas pessoas (uma era homem). Estavam tão desejosas de servir a Sua Majestade à própria custa, sem receber esses grandes favores, e tão ansiosas para padecer, que se queixavam a Nosso Senhor, porque lhes dava tais mercês e, se pudessem, recusariam. Refiro-me aqui às graças que o Senhor dá na contemplação, e não às visões de que falei, pois, enfim, estas trazem grandes benefícios e têm muito valor.
18. A meu ver, esses desejos são sobrenaturais e próprios de almas muito enamoradas que querem mostrar ao Senhor que não o servem em troca de salário. Elas nunca pensam que receberão glória por seus serviços. Não é isso que procuram. Só querem extravasar o seu amor, servindo de mil maneiras. Se pudessem, inventariam um modo de se consumir nesse amor. E, se fosse preciso aniquilar-se para maior honra de Deus, fariam isso de muito boa vontade. Seja louvado para sempre, amém, ele que revela sua grandeza, rebaixando-se para comunicar-se com tão miseráveis criaturas.
Capítulo 10
Mostra outras graças que Deus faz à alma por caminhos diferentes dos já descritos e o grande benefício que trazem.
1. O senhor recorre a essas aparições para se comunicar com a alma em diferentes circunstâncias: às vezes, para confortá-la em meio a alguma aflição; outras vezes, quando está para vir uma grande provação; e outras, para se presentear com ela e para presenteá-la. Mas não vejo necessidade de entrar em detalhes sobre isso aqui. Minha intenção é mostrar as várias graças que são recebidas nesse caminho, até onde eu as conheço, para que vocês compreendam, irmãs, quais são e que efeitos produzem.
Também vou avisá-las do seguinte: não pensem que qualquer devaneio da imaginação seja uma visão. É preciso que vocês aprendam a reconhecer a visão autêntica e não fiquem alvoroçadas e aflitas sem motivo. O demônio ganha muito e goza muito vendo uma alma angustiada e inquieta. Ele sabe como isso a impede de se dedicar inteiramente a amar e louvar a Deus.
Sua Majestade se comunica ainda por outras maneiras muito mais elevadas e menos perigosas que, segundo creio, o demônio não poderá falsificar. Mas, como são graças muito ocultas, mal podem ser descritas, ao contrário das visões imaginárias que são fáceis de explicar.
2. Estando a alma em oração e muito concentrada, vem-lhe de repente, quando o Senhor quer, um arrebatamento. E Ele lhe revela grandes segredos, como se ela os visse no próprio Deus. Essas, porém, não são visões da sacratíssima humanidade. Embora eu diga que se vê, não se vê nada realmente, porque não é visão imaginária, mas intelectual. Nela se descobre que todas as coisas são vistas em Deus, pois ele as encerra todas em si mesmo. É muito proveitosa.
Embora dure um instante, fica vigorosamente gravada e causa grandíssimo assombro. Vê-se claramente a maldade que é ofender a Deus, porque, estando dentro dele, praticamos grandes pecados. Mesmo tendo ouvido essa advertência muitas vezes, não a entendemos, ou não queremos entendê-la. Acho que não seríamos tão atrevidos se compreendêssemos isso. Vou fazer uma comparação para explicar melhor.
3. Façamos de conta que Deus é como uma mansão, ou melhor, um palácio muito grande e formoso. Então, se esse palácio é o próprio Deus, pode o pecador sair dele para fazer suas iniquidades? Certamente não. Dentro do palácio, isto é, dentro do próprio Deus, passam-se as abominações, desonestidades e maldades que nós os pecadores fazemos.
Oh, coisa temível, digna de muita reflexão e bastante proveitosa para nós que sabemos tão pouco e não entendemos essas verdades! Não seria possível ser mais atrevido e insensato! Reconheçamos, irmãs, a grande misericórdia de Deus que não nos aniquila imediatamente, apesar do sofrimento que lhe causamos. Demos muitas graças a ele e tenhamos vergonha de nos sentirmos ofendidas pelo que quer que se diga ou faça contra nós. A maior maldade do mundo é que Deus nosso criador sofre tantos insultos de suas criaturas dentro de si mesmo. Enquanto isso, nós nos sentimos ofendidas por qualquer palavrinha dita em nossa ausência e talvez sem má intenção.
4. Oh, miséria humana! Quando, mas quando, filhas, imitaremos em alguma coisa este grande Deus? Oh, e não pensem que fazemos grande coisa ao suportar injúrias! Sujeitemo-nos a tudo de muito boa vontade e amemos a quem nos insulta, pois este grande Senhor não deixou de nos amar, embora o tenhamos ofendido muito. Por isso, ele tem grandíssima razão em querer que nos perdoemos uns aos outros, por mais que tenhamos nos magoado mutuamente. Posso lhes assegurar, filhas, que, embora essa visão passe depressa, é imensa graça de Nosso Senhor. Para melhor aproveitá-la, é bom que nos lembremos dela a toda hora.
5. Também acontece, de repente e de maneira que não se sabe explicar, Deus mostrar em si mesmo uma verdade que parece deixar obscurecidas todas as verdades que há nas criaturas. E muito claramente dá a entender que só ele é a verdade que não pode mentir. Basta isso para se compreender o que Davi tinha em mente quando disse num salmo que todo homem é mentiroso(Salmo 115, 2). Sem essa graça, jamais poderíamos interpretar assim tais palavras, por mais que as ouvíssemos. Ele é a verdade que não pode faltar. Pilatos quis saber algo que estava muito além do seu entendimento quando, na paixão de Nosso Senhor, perguntou-lhe o que é a verdade (João 18, 38). Como sabemos pouco desta suprema Verdade!
6. Gostaria de continuar a explicação, mas são coisas que não podem ser ditas. Tiremos daqui, irmãs, a seguinte lição: para nos configurarmos ao nosso Deus e Esposo, busquemos guardar sempre a verdade. Não se trata apenas de não mentir, pois, nesse particular, glória a Deus, vejo que vocês já têm grande zelo em nossos mosteiros. Mas cuidemos também de andar em verdade diante de Deus e das pessoas, de todas as formas possíveis. Em especial, não querendo parecer melhores do que realmente somos; reconhecendo em nossas obras o que é graça de Deus e o que é mérito nosso; procurando a verdade no fundo de cada coisa; e dando pouco valor a este mundo que é todo mentira e falsidade e, como tal, não é duradouro.
7. Certa vez, eu estava meditando sobre a razão por que Nosso Senhor prezava tanto a virtude da humildade. E logo me veio à mente, sem pensar, de súbito, esta ideia: é porque Deus é a suma Verdade, e humildade é andar na verdade. É grande verdade o fato de que não temos nada de bom em nós mesmos. Somos apenas miséria e nada mais. Quem não entende isso, anda na mentira. Quem mais entende, mais agrada à suma Verdade, porque anda com ela. Que Deus nos conceda, irmãs, o favor de não perdermos nunca a capacidade de discernir quem somos, amém.
8. Nosso Senhor concede tais graças à alma que está determinada a fazer em tudo a vontade de Deus, como se já fosse verdadeiramente sua esposa. Ele quer lhe mostrar como ela há de cumprir a Sua vontade, além de lhe revelar as Suas grandezas. Não vejo motivo para tratar aqui de outras graças. Falei dessas duas porque me parecem muito proveitosas. Vocês não precisam temer que sejam engano. Apenas louvem ao Senhor que as dá. A meu ver, nem o demônio, nem mesmo a própria imaginação têm muito espaço aqui. Por isso, a alma sente grande contentamento.
Capítulo 11
Trata dos desejos que Deus dá à alma de gozá-lo, tão grandes e impetuosos, que a põem em risco de vida. E do proveito que essa graça do Senhor traz.
1. Todos esses favores que o Esposo tem feito à alma terão bastado para que essa pombinha ou borboletinha esteja satisfeita (não pensem que me esqueci dela) e tome assento onde há de morrer? Certamente não. Ao contrário, está muito pior. Apesar de recebê-las há muitos anos, geme continuamente e anda chorosa, porque cada nova graça aviva a sua dor. É que, conhecendo cada vez mais as grandezas de Deus, aumenta o desejo de gozá-lo. Ao mesmo tempo, porém, ela vai se conscientizando de como ainda está longe dele. E o seu amor cresce à medida que descobre mais e mais o quanto este grande Deus e Senhor merece ser amado.
Ao longo dos anos, esse desejo só fez crescer pouco a pouco, até fazê-la sofrer muito, como direi a seguir. Disse anos porque foi assim que se passou com a pessoa da qual tenho falado aqui, embora eu saiba que não há limites para Deus, já que num instante ele pode elevar a alma ao máximo grau de oração. Sua Majestade tem poder para fazer tudo o que quiser e deseja fazer muito por nós.
2. Acredito que aquelas ânsias, lágrimas, suspiros e grandes ímpetos de que lhes falei são movidos por uma forte comoção nascida do nosso amor. Mas mesmo que tudo isso seja muito doloroso, podemos suportar, porque parece suave como um fogo que vai se apagando em comparação a este transe que vou descrever agora: depois de se abrasar muitas vezes nesses grandes ímpetos, de repente, a alma sente-se tocada por um pensamento ligeiro ou por ouvir dizer que a morte tarda, e vem-lhe, não se sabe de onde nem porque, um golpe, como se fosse atingida por uma seta de fogo. Não estou afirmando que seja realmente uma seta, mas, seja lá o que for, seguramente tem origem sobrenatural.
Também não é golpe, embora use essa palavra, mas fere agudamente. A meu ver, não atinge o lugar onde se costumam sentir as dores, e sim o mais profundo e íntimo da alma.
Por onde passa, esse raio fulmina instantaneamente tudo o que encontra deste barro da nossa natureza. E, enquanto dura esse transe, é impossível pensar em Nosso Senhor, pois, num instante, as faculdades da alma ficam incapacitadas para tudo, menos para o que há de agravar essa dor.
3. Não queria que isso parecesse exagero, pois, na verdade, vejo que fico aquém. Não se pode dizer mais. É um arrebatamento dos sentidos e das faculdades da alma para tudo o que ajuda a piorar as aflições nascidas do seu amor. Pois o intelecto está muito vivo para entender com quanta razão a alma se angustia sentindo-se ausente de Deus.
Sua Majestade a socorre nesse momento com viva notícia de si. Mas, em vez de tranquilizá-la, isso aumenta a sua aflição, a tal ponto que ela começa a dar grandes gritos. Apesar de estar habituada a padecer dores intensas, não se contém, porque, como disse, essa dor não se faz sentir no corpo, e sim no mais íntimo da alma.
Depois disso, ficou claro para essa pessoa que os sofrimentos experimentados no purgatório são dessa mesma natureza. Assim ela descobriu que a alma é muito mais sensível à dor que o corpo. E que o fato de o espírito não ter corpo não o poupa de sofrer muito mais do que a gente que vive neste mundo.
4. Vi uma pessoa nesse transe e realmente pensei que ela fosse morrer. Não é coisa agradável de se ver, pois, na verdade, corre-se grande risco de vida. Ainda que dure pouco, deixa o corpo muito desconjuntado. Os pulsos ficam abertos como se a alma já quisesse se entregar a Deus. E não é para menos, porque lhe falta o calor do corpo, de modo que, com mais um pouco, Deus cumpriria os seus desejos.
Entretanto o corpo não dói, embora se desconjunte de tal maneira que depois fica dois ou três dias sem forças até para escrever e, aí sim, com grandes dores. Acredito que o corpo nunca mais recupera completamente as forças.
Creio que não se sente dor física durante esse transe porque a alma, estando muito sensível, não dá atenção às dores do corpo. É como sentir uma dor muito aguda num lugar e outras leves noutras partes que quase não são percebidas. Estou convencida de que, durante essa aflição, o corpo não sentiria dor alguma, mesmo se o fizessem em pedaços.
5. Vocês dirão que é imperfeição. Por que ela não se curva à vontade de Deus se está tão entregue a ele? É que, até aqui, podia fazer isso e assim suportava a vida. Agora não mais. Sua razão está tão perturbada que não consegue governá-la nem pensar. Só sabe penar. Se o seu Bem está ausente, para que viver? Sente uma solidão estranha, pois nenhuma criatura no mundo inteiro lhe faz companhia. Nem creio que as do céu fariam, a não ser Aquele a quem ama. Tudo a atormenta. Sente-se como quem está pendurado numa forca, sem poder firmar os pés no chão nem subir ao céu. Consumida pela sede, não pode alcançar a água. E não é sede que se possa suportar, mas tão extrema que nem toda a água do mundo a mataria. Também não queria saciar essa sede, senão com aquela água da qual Nosso Senhor falou à samaritana. Mas essa não lhe dão.
6. Oh, valha-me Deus, como afligis aos que vos amam, Senhor! Porém tudo isso é pouco comparado ao que lhes reservais. O que vale muito custa muito. Ainda mais se é para purificar a alma a fim de que ela alcance as sétimas moradas, tal como se limpam no purgatório aqueles que vão entrar no céu. À vista desse prêmio, qualquer sofrimento parece tão insignificante como a perda de uma gota d’água do mar. E vejam que a pessoa de quem lhes falo tinha suportado muitas dores, tanto corporais como espirituais, mas tudo era nada em comparação a essa.
Em vista da recompensa que espera receber, a alma vê claramente como essa dor é preciosa e imerecida. Por isso, sofre de muito boa vontade, mesmo sem receber nenhum alívio. E sofreria por toda a sua vida, se Deus quisesse, ainda que não morresse de uma vez, mas continuasse morrendo eternamente. De fato, o que se sente não é menos do que isso.
7. Avaliem então, irmãs, o que será a agonia daqueles que, lançados no inferno, não se encontram assim tão submissos ao Senhor, não gozam esse contentamento e gosto que Deus põe na alma nem veem proveito no próprio padecer.
Apenas sofrem sempre mais e mais. Como os tormentos da alma são muito mais intensos que os do corpo, os do inferno são por certo imensamente maiores que todos esses que venho relatando aqui. E pensar que serão para sempre, sem fim. Qual não há de ser a dor dessas almas desventuradas? Que aflições e padecimentos nesta vida tão curta se comparam aos terríveis e eternos sofrimentos do inferno? São todos menos que nada. Eu lhes garanto que é impossível fazer ideia de como é intensa a agonia da alma ali e como difere da do corpo. Quer o Senhor que nos esforcemos para entender isso e reconhecer o quanto lhe devemos por nos trazer a um estado em que, por sua misericórdia, temos esperança de que perdoe nossos pecados e nos livre do inferno.
8. Voltando ao que dizia (que deixamos essa alma em grande sofrimento), esse transe dura pouco. A meu ver, será de três a quatro horas, quando muito, porque, se durasse mais, a não ser por milagre, seria impossível que a nossa fraca constituição pudesse suportar.
Mas já aconteceu de não durar mais de um quarto de hora, e essa pessoa de quem lhes falo ficar em pedaços. Foi na Páscoa da Ressurreição. Ela sentia tanta secura que quase não se dava conta de que era Páscoa. No último dia, durante uma conversa, bastou ouvir uma palavra que lhe tocou especialmente o coração para sentir que sua vida quase chegava ao fim. E perdeu completamente os sentidos, tal foi a força do transe.
E pensar que se possa resistir! Não mais do que alguém, cercado pelo fogo, é capaz de controlar o calor das chamas para não se queimar. Não é sentimento que se possa ocultar. Todos notam que essa alma corre grande perigo, embora não saibam o que vai no seu íntimo. É verdade que lhe fazem companhia, mas como se fossem sombras apenas, pois é isso o que lhe parecem ser todas as coisas do mundo.
9. Se algum dia vocês se virem nessa situação, estejam avisadas para não cederem à fraqueza da nossa natureza humana. Nesse estado, a alma sente-se como se estivesse à beira da morte e é invadida por tamanha opressão que realmente parece faltar muito pouco para sair do corpo. Com medo da morte, chega a desejar que essa aflição se abrande. Mas certamente esse temor é fraqueza da nossa natureza, já que, por outra parte, a alma não deixa de querer padecer, mesmo porque nada pode aliviar esse sofrimento até que o próprio Senhor o remova. Ele o faz, quase sempre, com um grande arrebatamento ou alguma visão por meio da qual o verdadeiro Consolador a consola e a fortalece para que queira viver enquanto for sua divina vontade.
10. É experiência penosa. Mas a alma recebe grandíssimos benefícios e perde o medo de quaisquer tribulações que venham depois, porque, comparadas àquelas que experimentou, parece-lhe que não são nada. De tal maneira é favorecida, que gostaria de padecê-las muitas vezes. Mas não pode fazer isso por conta própria, de maneira nenhuma, pois depende da vontade do Senhor. Também não há meio de evitá-las nem resistir quando vêm.
Mais do que nunca, sente desprezo pelo mundo ao constatar que nada a socorreu naquele tormento. Fica muito mais desapegada das criaturas ao ver que só o Criador pode consolá-la e fartar a sua alma. Sente maior temor de ofendê-lo e procura ser ainda mais cuidadosa, pois descobre que, assim como pode consolar, ele também pode atormentar.
11. Há duas coisas neste caminho espiritual que, segundo creio, trazem risco de vida: uma é essa que acabo de dizer e que realmente traz perigo de morte, e não é pequeno; outra é a grande alegria e deleite que a alma goza em seguida, tão extremos que ela parece desfalecer, como se não lhe faltasse mais nada para acabar de sair do corpo. Na verdade, seria muita sorte. Aqui vocês entenderão, irmãs, que tive razão quando disse que é preciso ter coragem para desposar este divino Noivo. E se vocês pedirem essas graças ao Senhor, verão que ele também terá razão para lhes responder como o fez aos filhos de Zebedeu (Marcos 10, 35-38) , perguntando se podiam beber desse cálice.
12. Creio, irmãs, que todas responderemos que sim, e faremos muito bem. Sua Majestade dá força a quem necessita. Em tudo defende essas almas e responde por elas nas perseguições e murmurações, como fazia por Santa Madalena. Ainda que não seja com palavras, será por obras.
Enfim, antes que morram, paga-lhes tudo de uma vez, como vocês verão agora. Seja para sempre bendito e louvem-no todas as criaturas, amém.