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Terceiras Moradas

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Capítulo 1

 

Trata da pouca segurança que há enquanto vivemos neste desterro, mesmo para as almas que alcançaram um estado elevado. E de como convém andar com temor. Apresenta alguns pontos muito bons.

 

1. Que diremos aos que, pela misericórdia de Deus e com perseverança, venceram esses combates e entraram nas terceiras moradas, senão “bem-aventurado o homem que teme o Senhor”? (Salmo 111, 1).

 

Eu, que sou tão rude, estava aqui em grande apuro quando Sua Majestade fez a graça de me revelar o sentido desse versículo: com razão o chamaremos bem-aventurado, pois, se não volta atrás, segue o caminho seguro da salvação.

Vejam, irmãs, o quanto importa vencer as batalhas precedentes: por certo, o Senhor nunca deixa de conceder segurança de consciência, que é imenso benefício. Disse segurança, e fiz mal, pois não há segurança definitiva nesta vida. Entendam bem o que digo. Haverá segurança, desde que vocês não voltem atrás, deixando o que começaram.

 

2. Grande miséria é viver em contínuo sobressalto, como quem tem inimigos sempre à porta, sem sossego para comer nem dormir, com receio de que, a qualquer momento, eles possam achar uma brecha e arrombar essa fortaleza. Oh, meu Senhor e meu bem, como quereis que se deseje viver uma vida tão miserável? Seria impossível não pedir que nos tirásseis dela se não tivéssemos esperança de perdê-la por vós ou gastá-la em vosso serviço e, sobretudo, se não compreendêssemos que essa é a vossa vontade. Se é isso o que quereis, meu Deus, então morramos convosco, como disse São Tomé (João 11, 16) , pois viver sem vós e ainda correr o risco de perder-vos para sempre é como morrer mil vezes.

 

Por isso, filhas, o maior benefício que podemos pedir a Deus é estar já aqui em segurança como os bem-aventurados. Em meio a tantos perigos, que maior satisfação pode ter aquele que só deseja contentar a Deus? Vejam que alguns santos que caíram em graves pecados tinham essa disposição em grau elevadíssimo. Quanto a nós, porém, não podemos ter certeza de que Deus nos dará o auxílio especial que lhes deu para se reerguerem, fazendo as penitências que fizeram.

 

3. Escrevo com tal temor, que não sei de onde tiro forças. Deus sabe o que sinto cada vez que me lembro dessas verdades. Peçam, minhas filhas, a Sua Majestade que viva sempre em mim. De outro modo, que segurança terá quem gastou tão mal a vida como eu? E não fiquem tristes quando lhes digo isso. Vocês gostariam que eu tivesse sido muito santa. E têm razão em querer. Eu também gostaria. Mas que fazer se, somente por minha culpa, não fui? Não posso me queixar de Deus, que me ofereceu toda ajuda necessária para que se cumprissem os seus desejos. Digo isso com lágrimas e grande embaraço vendo que escrevo para aquelas que podem me ensinar. Dura obediência tem sido a que me impôs escrever este livro.

 

Praza ao Senhor (pois o que escrevo vem dele) que vocês aproveitem alguma coisa do que digo e, em retribuição, peçam-lhe perdão por esta miserável atrevida. Sua Majestade bem sabe que só conto com sua misericórdia. Já que não posso deixar de ser quem tenho sido, não me resta outro remédio senão esperar pela misericórdia de Deus e confiar nos méritos de seu Filho e da Virgem, sua Mãe, cujo hábito indignamente visto. E vocês, minhas filhas, que também o vestem, louvem a Deus por serem verdadeiramente filhas desta Senhora. Pois, tendo tão boa Mãe, não precisam se preocupar se eu sou ruim. Imitem-na. E avaliem qual deve ser a sua grandeza e a vantagem de tê-la como padroeira, pois nem os meus pecados, nem a minha pessoa puderam tirar o brilho desta sagrada Ordem.

 

4. Mas que fiquem todas avisadas: vocês não estão seguras nem mesmo pertencendo a esta Ordem sagrada e tendo tão boa Mãe. Davi era muito santo, e vejam o que foi Salomão (1 Reis 11, 1-10 e 2 Reis 23, 13). Tampouco confiem na vida enclausurada e penitente que levam aqui. Nem se julguem seguras porque falam sempre com Deus, exercitando-se continuamente na oração, longe das coisas do mundo que lhes causam tédio. Tudo isso é bom, mas não basta para afastar o temor das ciladas do inimigo. Lembrem-se sempre deste versículo e meditem sobre ele: Beatus vir, qui timet Dominum (“Bem-aventurado o homem que teme o Senhor”) (Salmo 111, 1).

 

5. Já não sei o que dizia, pois me desviei muito do assunto. Quando me lembro de mim, não consigo dizer nada de bom. Voltando então às almas que entraram nas terceiras moradas, o Senhor lhes fez imensa graça por terem vencido as primeiras dificuldades. Creio que há muitas dessas almas no mundo, pela bondade do Senhor. Esforçam-se muito para não ofender a Sua Majestade. Evitam até mesmo os pecados veniais. Fazem penitência, têm suas horas de recolhimento, gastam bem o tempo, exercitando-se em obras de caridade para o próximo. E são corretíssimas no falar, no vestir e no cuidado da casa. É estado desejável, por certo. Aparentemente, nada lhes impedirá a entrada na última morada. Nem lhes negará o Senhor, se elas quiserem. Que bela disposição para que Deus lhes conceda todas as graças.

 

6. Oh, Jesus, e quem não quer tão grande benefício, em especial, se já passou pela parte mais difícil? Todas dizemos que queremos. Mas, para que o Senhor possua a alma por inteiro, é preciso mais que palavras. Não basta dizer sim, como não bastou ao jovem rico a quem o Senhor perguntou se queria ser perfeito (Mateus 19, 16-22).

 

Esse Evangelho não me sai da cabeça desde que comecei a falar destas moradas. Somos exatamente como o jovem rico. Em geral esse é o motivo das grandes securas na oração, conquanto também haja outros. Não me refiro às tribulações interiores verdadeiramente intoleráveis por que passam muitas almas boas, sem culpa sua, das quais o Senhor sempre as tira com enorme proveito. Tampouco trato aqui das almas que sofrem de melancolia e outras enfermidades. Afinal, em todas as coisas, devemos nos submeter à vontade de Deus. Tenho para mim que a causa mais comum de secura espiritual é a que disse no início.

 

Como essas almas não cairiam em pecado por nada deste mundo (muitas nem mesmo em pecado venial deliberado) e como aplicam bem suas vidas e seus dons, não têm paciência de esperar até que a porta se abra e possam entrar onde está o nosso Rei, de quem se consideram servas (e são mesmo). Acontece-lhes algo parecido com o que vemos aqui neste mundo: embora um soberano tenha muitos vassalos, nem todos entram na câmara real. Entrem, entrem primeiro em si mesmas, minhas filhas, e reconheçam como somos indignas de entrar na presença de Sua Majestade.

 

Esqueçam-se de suas pequeninas obras. Sendo cristãs, vocês sabem que devem tudo o que realizaram e muito mais a Ele. Contentem-se em ser súditas de Deus. Quem muito quer acaba sem nada. Mirem-se no exemplo dos santos que entraram na sala deste Rei. Vejam a distância entre eles e nós. Não peçam aquilo que não merecem. Nem sequer devia passar-nos pela cabeça a ideia de pedir. Por maiores que sejam os nossos serviços, pouco merecemos, nós que temos ofendido a Deus.

 

7. Oh, humildade, humildade! Não sei que tentação me sugere que falta um pouco de humildade a quem se incomoda tanto com as securas espirituais. Não estou me referindo às enormes tribulações interiores de que falei há pouco, pois elas não têm nada a ver com falta de devoção, embora muitas vezes não queiramos entender isso. Provemo-nos a nós mesmas, minhas irmãs, ou prove-nos o Senhor que sabe como fazê-lo.

 

Contemplem o exemplo das grandes almas devotas. Basta ver o que fazem por Deus e logo compreendemos que não temos razão para queixa. Pois, se voltamos as costas ao Senhor e seguimos nosso caminho tristes como o jovem rico do Evangelho, depois de ouvir d’Ele o que devemos fazer para sermos perfeitas, que mais poderíamos esperar? Sua Majestade nos dá o prêmio em proporção ao amor que lhe votamos. Compreendam, filhas, que esse amor não será fabricado em nossa imaginação, mas provado com obras. E não pensem que Deus necessite de nossas obras. O que ele quer é ver a determinação da nossa vontade.

 

8. Pode parecer que já está tudo feito só porque vestimos o hábito de carmelitas de livre vontade e, por amor d’Ele, deixamos todas as coisas do mundo e tudo o que tínhamos, ainda que fosse tão pouco como eram as redes de São Pedro (Mateus 19, 27), pois quem dá tudo o que tem sempre pensa que dá muito.

 

A determinação da vontade que o Senhor espera é a disposição para perseverar e não voltar, nem mesmo em pensamento, a andar entre os vermes dos primeiros aposentos. Sem dúvida, a alma alcançará o que pretende se persistir em renunciar a tudo. Mas com a condição – prestem atenção a este aviso – que se considere um servo inútil, como disse São Paulo ou Cristo (Lucas 17, 10). Mas não pensem que por conta disso Nosso Senhor estará obrigado a conceder-lhes tais favores. Ao contrário, quem mais recebe fica mais endividado (Lucas 12, 48).

 

Que podemos oferecer a um Deus tão generoso que, além de nos criar, morrer por nós e sustentar a nossa vida, nos dá tudo o que temos? Não nos julguemos afortunadas imaginando que a nossa dívida para com o Senhor vá diminuindo por conta de tudo o que ele tem feito para nos servir, concedendo-nos a graça de fazermos boas obras. Disse essa palavra de má vontade, mas é isso mesmo, pois ele não fez outra coisa enquanto viveu neste mundo além de nos servir.

 

9. Vejam só, filhas, como falo de maneira atrapalhada. Não sei me expressar melhor. Meditem muito sobre tudo isso. O Senhor lhes mostrará como tirar humildade das securas espirituais, e não inquietação, como pretende o demônio. Estejam certas de que, se Ele não der consolações, dará imensa paz e aceitação aos que são verdadeiramente humildes. E com isso terão mais alegrias do que se recebessem muitas consolações.

 

Temos visto em alguns livros que frequentemente a Divina Majestade dá consolações aos mais fracos. Infelizmente parece que eles não as trocariam pela fortaleza espiritual dos que suportam as securas da alma. Somos mais afeitos a consolações do que a cruzes. Prova-nos, Senhor, tu que sabes a verdade, para que nos conheçamos (Salmos 25, 2 e 138, 23).

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Capítulo 2

 

Prossegue no mesmo assunto e trata das securas na oração. Mostra o que pode ocorrer. Diz como é necessário

provarmo-nos e como o Senhor prova os que estão nestas moradas.

 

1. Tenho conhecido algumas almas, creio até que sejam muitas, que chegaram a esse estado. Aparentemente vivem muitos anos em notável retidão e correção de corpo e alma. Mas, depois, quando parecem ter vencido o mundo, ou, pelo menos, estar bem desapegadas dele, Sua Majestade prova-as em coisas não muito grandes. E ficam tão inquietas e com o coração tão oprimido que me deixam desorientada e receosa. Aconselhá-las não é remédio. Como cultivam suas virtudes há tanto tempo, acreditam que podem ensinar aos outros e que têm razões de sobra para se sentirem assim.

 

2. Não sei o que fazer para consolá-las, a não ser mostrar grande compaixão por sua dor. Na verdade, porém, o que realmente causa dó é vêlas sujeitas a tamanha miséria.

 

Não devemos contestar suas razões, pois acreditam que sofrem por amor a Deus. Não percebem que é por causa da própria imperfeição, outro engano lastimável em gente tão adiantada. Não estou dizendo que deveriam se mostrar imperturbáveis diante das provações. Mas era de se esperar que tais sentimentos passassem rapidamente.

 

Muitas vezes, Deus quer que seus escolhidos tomem consciência da própria miséria e por isso diminui um pouco as Suas graças. Não é preciso mais nada, ousaria dizer, para que nos conheçamos bem depressa. Logo se entende porque o Senhor os prova dessa maneira: para que compreendam claramente a sua falta.

 

Às vezes elas sofrem mais ao ver que ainda não superaram nem mesmo as coisas mais grosseiras do mundo e que estão sujeitas às mesmas aflições pelas quais todos passam. Tenho para mim que esse tipo de provação é grande misericórdia de Deus. Revelando nossa falta de fé, ele nos oferece ocasião muito favorável para crescermos na humildade.

 

3. Entretanto, essas pessoas não tiram proveito dessa graça, porque elas canonizam em seus pensamentos o seu modo de proceder. E gostariam que os outros o canonizassem também.

 

Vou dar alguns exemplos que nos ajudam a reconhecer nossos erros, de modo que possamos nos provar a nós mesmas antes que o Senhor nos prove. Compreender isso de antemão será muito útil para nos convencermos da necessidade de estar vigilantes.

 

4. Suponham que uma pessoa rica e sem herdeiros perca a sua fortuna. Mas não que lhe falte o necessário para viver, porque ainda tem de sobra. Se ela fica tão perturbada e inquieta como se não tivesse um pedaço de pão para comer, como poderá Nosso Senhor lhe pedir que deixe tudo por ele? A desculpa costumeira é dizer que se sente assim porque deseja fazer caridade aos pobres. Mas tenho para mim que Deus prefere que eu aceite a sua vontade para a minha vida e, apesar disso, tente manter a serenidade. Se alguém não é capaz de fazer isso, porque o Senhor não o elevou a tanto, tudo bem. Mas reconheça que lhe falta liberdade de espírito e peça-a ao Senhor. Se pedir, ele dará.

Imaginem ainda que outra pessoa tenha o que comer e até lhe sobre. Se surgir oportunidade de enriquecer, recebendo uma herança, que seja. Mas se ela vai atrás de riqueza e, depois de a achar, continua procurando mais e mais, nunca chegará às moradas mais próximas do Rei, mesmo que tenha boas intenções. E deve ter, porque é pessoa virtuosa e dada à oração.

 

5. Acontece o mesmo se essas pessoas sofrem alguma ofensa ou pequena diminuição da honra. Muitas vezes Deus lhes concede a graça de suportarem bem a provação, porque Lhe agrada promover a virtude em público para que não sofra nenhum arranhão. O Senhor faz isso porque são pessoas virtuosas, ou talvez em reconhecimento de serviços prestados. Mas, lá no íntimo, elas sentem tal inquietação que não conseguem dominar nem esquecer tão cedo.

Valha-me Deus! Não são essas mesmas pessoas que meditam há tanto tempo sobre como padeceu Nosso Senhor? Não consideram muito vantajoso padecer e até dizem querer participar dos sofrimentos dele? E ainda pretendem ser imitadas como exemplo de vida cristã. Queira Deus que não culpem os outros por seu sofrimento e ainda o julguem meritório.

 

6. Pode parecer, irmãs, que falo a esmo e não com vocês, porque nada disso se passa em nossos mosteiros. Não temos riquezas nem as queremos, nem as procuramos. Tampouco há quem nos ofenda aqui. As comparações que faço não dizem respeito ao que vemos entre nós. Mas podemos tirar delas muitas outras coisas que talvez aconteçam por aqui, embora não convenha entrar em detalhes. Esses exemplos vão ajudá-las a ver se estão bem desapegadas daquilo que deixaram lá fora. Sempre surgem certas coisinhas (e talvez não seja tão fácil reconhecer que também são ocasiões de pecado) pelas quais vocês poderão se provar e saber se dominam suas paixões.

 

Creiam-me que não se trata apenas de vestir ou não o hábito de monja, mas sim procurar exercitar as virtudes e render totalmente a própria vontade à de Deus. E que esta vida seja o que Sua Majestade ordenar. Não queiramos que se faça a nossa vontade, mas a d’Ele. Se ainda não chegamos a ser assim tão fiéis, o remédio é ter humildade, que é o unguento para as nossas feridas. Se a temos realmente, pode até demorar, mas, na hora certa, o médico (que é Deus) virá para nos curar.

 

7. As penitências que essas almas fazem são tão comedidas como a sua vida. Querem muito viver para dedicar-se ao serviço de Nosso Senhor. E isso não é mau. Quando fazem penitência, são muito cuidadosas para não prejudicar a saúde. Não há perigo de que se matem, porque sua razão ainda está muito viva, e o amor não cresceu ao ponto de sobrepujá-la.

 

De nossa parte, gostaria que perdêssemos a razão para não nos contentarmos com essa maneira tão contida de servir a Deus, sempre passo a passo, sem nunca chegar ao fim. Seria muito bom se não nos enganássemos, acreditando que estamos progredindo quando, na verdade, nos perdermos no meio do caminho e nos fatigamos andando sem rumo.

Creiam que essa é uma travessia difícil. Então, filhas, se pudéssemos fazer uma viagem em oito dias, será que escolheríamos suportar, por um ano inteiro, ventos, neves, chuvas e estradas acidentadas? Não seria melhor tomar o caminho mais curto? Quanto mais se há perigo de sermos atacadas por serpentes. Oh, quanto eu poderia falar disso! Queira Deus que eu mesma tenha ultrapassado este ponto. Muitas vezes me parece que não.

 

8. Somos tão cuidadosas que tudo tememos e tudo nos assusta. E assim não ousamos passar adiante, como se esperássemos que alguém prosseguisse a jornada por nós. Já que isso não é possível, esforcemo-nos, minhas irmãs, pelo amor de Deus. Confiemos ao Senhor nossas precauções e temores. Esqueçamos nossas fraquezas humanas que tanto podem nos atrapalhar. Da saúde de nossos corpos cuidem os confessores e diretores espirituais. Ocupemo-nos apenas de caminhar depressa para ver ao Senhor. O cuidado da saúde poderia nos desviar de nossa meta, mesmo porque o alívio que vocês poderiam obter seria muito pequeno ou nulo. Estejam certas de que não terão mais saúde por isso.

 

Além do mais, não se trata de castigar o corpo. Isso é o de menos. O caminhar a que refiro é progredir em humildade. Se me entenderam bem, saberão que aqui está o erro das que não avançam. É preciso acreditar que andamos poucos passos e que nossas irmãs caminham muito rápido. E não só desejar isso, mas cuidar para que nos considerem as piores de todas.

 

9. Com humildade, chegaremos a um estado excelentíssimo. Sem isso, passaremos a vida estagnadas, em meio a mil aflições e misérias. Se não nos desapegamos de nós mesmas, nosso caminhar torna-se muito pesado e sofrido, porque vamos oprimidas pelo fardo de nossa miséria humana.

 

O mesmo não acontece aos que sobem aos aposentos que faltam. Lá o Senhor, justo e misericordioso, não deixa de nos recompensar, pois dá contentamentos sempre muito maiores do que merecemos. E alegrias incomparavelmente superiores aos prazeres e distrações desta vida. Mas não creio que dê muitos gostos, a não ser uma vez ou outra, mostrando-nos o que se passa nas demais moradas para nos encorajar a entrar nelas.

 

10. Pode parecer que contentamentos e gostos são tudo a mesma coisa. Mas acho que há grande diferença entre eles, se bem que posso me enganar. Direi o que penso nas quartas moradas. Como será preciso falar dos gostos que o Senhor dá ali, ficará melhor. Não pensem que não haverá proveito em saber diferenciar uns dos outros: isso lhes permitirá escolher o que é mais vantajoso. De todo modo, contentamentos e gostos são grande consolo para as almas que Deus eleva a esse nível. E assombro para quem supõe que já tem tudo. Se for humilde, dará graças a Deus; se não, sentirá amargura sem motivo, pois a perfeição não consiste em gozos. O prêmio caberá a quem mais amar e agir com justiça e verdade.

 

11. Sendo assim, talvez vocês queiram me perguntar para que serve falar dessas consolações interiores. Eu não sei. Perguntem a quem me mandou escrever. Não cabe a mim discutir com meus superiores, nem ficaria bem. Apenas obedeço. Mas há uma coisa que posso dizer com certeza: quando eu não recebia consolações nem sabia por experiência própria, nem imaginava, com razão, que saberia um dia, já teria sido grande alegria saber ou por raciocínios compreender que eu agradava a Deus de algum modo. Quando lia algo sobre as graças e consolos que o Senhor dá às almas que o servem, experimentava grandíssima satisfação. E minha alma louvava muito a Deus. Então, se eu, que sou tão ruim, fazia isso, as que são boas e humildes o glorificarão muito mais.

 

Ainda que uma só alma o bendiga uma só vez, já terá valido a pena falar dos contentamentos e deleites que deixamos de receber por nossa culpa, especialmente porque, se são de Deus, vêm carregados de amor e fortaleza com os quais se pode caminhar com menos esforço e crescer em obras e virtudes. Mas, se não os recebemos, não pensem que ele se importe pouco conosco. Se não é por nossa falta, justo é o Senhor (Salmo 118, 137), Sua Majestade nos dará por outros caminhos aquilo que nos nega por esse. O motivo só ele sabe, pois são muito bem guardados os seus segredos (Romanos 11, 33). Mas podem ter certeza de que ele nos dá o que mais nos convém, sem dúvida nenhuma.

 

12. As almas que, pela bondade do Senhor, chegaram aqui receberam grande misericórdia e estão muito perto de subir mais. Será muito proveitoso exercitarem-se na prontidão da obediência. E, mesmo se não são pessoas de vida consagrada, seria imensa ajuda ter um diretor espiritual a quem recorrer para não fazer nunca a própria vontade. Em geral, é daí que vêm nossos males. Não procurem alguém de temperamento igual ao de vocês mesmas, ou que seja excessivamente cauteloso em tudo, mas sim quem esteja bastante desiludido das coisas do mundo. Tratar com quem já conhece o mundo é excelente maneira de nos conhecermos a nós mesmas. Além do mais, é encorajador ver que algumas coisas aparentemente impossíveis são feitas com tanta serenidade pelos outros. Assistindo ao seu voo, atrevemo-nos a voar, como fazem os filhotes das aves que, embora não deem grandes saltos de início, pouco a pouco, imitam seus pais. É muito proveitoso.

 

Recomendo vivamente a essas pessoas que não se metam em ocasiões de pecado, mesmo que estejam muito determinadas a não ofender ao Senhor. Posto que ainda se encontram perto das primeiras moradas, poderão voltar a elas facilmente. Sua fortaleza não está fundada em terra firme, como a dos que estão exercitados em padecer. Esses já conhecem as tempestades do mundo e sabem quão pouco devem temê-las se não buscam seus prazeres. Sem isso, as almas inexperientes poderiam recuar no caminho, forçadas por uma grande perseguição do demônio que sabe urdi-las tão bem para lhes fazer mal. Até mesmo ao praticar boas ações, como tentar impedir pecados alheios, correriam o risco de ceder às tentações que lhes sobreviessem.

 

13. Olhemos as nossas faltas e deixemos as alheias. Pessoas muito devotas costumam se escandalizar de tudo. Mas talvez tenhamos muito a aprender com quem nos inquieta. Decerto levamos vantagem nos modos e na compostura exterior. Mas isso não é o mais importante, embora seja bom. Não há razão para acreditar que todos devam seguir desde já pelo nosso caminho. Não devemos tentar ensinar os caminhos do espírito aos outros. Talvez nem saibamos realmente quais sejam. Esse desejo que Deus nos dá, irmãs, de fazer bem às almas, se mal conduzido, pode nos levar a cometer muitos erros. O melhor que temos a fazer é seguir a nossa Regra: “procurar viver sempre em silêncio e esperança”. O Senhor cuidará dessas almas. De nossa parte, faremos muito em rogar sempre à Sua Majestade por elas. Seja para sempre bendito.