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Quintas Moradas

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Capítulo 1

 

Começa a tratar de como a alma se une a Deus na oração. Ensina a reconhecer a verdadeira união.

 

1. Oh, irmãs, como eu poderia descrever a riqueza, os tesouros e os deleites que há nas quintas moradas? Creio que seria melhor não dizer nada a respeito desta nem das que faltam, já que não é possível descrevê-las. Nem o intelecto pode compreendê-las, nem as comparações conseguem retratá-las, porque as coisas deste mundo são muito baixas para esse fim.

 

Meu Senhor, enviai luz do céu para que eu possa dar alguma luz a estas vossas servas. Não permitais que elas sejam enganadas pelo demônio transfigurado em anjo de luz. Algumas experimentam muito habitualmente esses gozos e só desejam contentar-vos. Disse algumas, mas há bem poucas que não entram nestas moradas de que tratarei agora.

 

2. Afirmei que a maioria chega a estas quintas moradas porque aqui há variados graus de oração. Mas creio que poucas entram em certos aposentos destas moradas. De todo modo, o simples fato de alcançar a porta já é imensa misericórdia de Deus, porque muitos são os chamados, e poucos os escolhidos (Mateus 22, 14).

 

3. Embora todas nós que vestimos este hábito sagrado do Carmelo sejamos chamadas à oração e à contemplação (porque esta é a nossa origem, vimos desta linhagem: de nossos santos Padres do Monte Carmelo que em tão grande solidão e com tanto desprezo pelo mundo buscavam este tesouro, esta pérola preciosa de que falamos), poucas nos dispomos realmente para que o Senhor nos faça encontrá-la.

 

Quanto ao exterior, vamos bem para alcançar a meta. Contudo, necessitamos de muitíssimas virtudes para chegar aqui e de não nos descuidarmos nem um pouco, já que, de certo modo, podemos gozar o céu na terra. Por isso, minhas irmãs, agora é pedir ao Senhor que nos dê o seu favor, não nos abandone por nossa culpa, mostre-nos o caminho e dê forças à alma para cavar até achar este tesouro escondido. Na verdade, ele está em nós mesmas, e é isso que eu gostaria de lhes mostrar, se o Senhor me capacitar.

 

4. Disse ser necessário pedir ao Senhor que dê forças à alma para vocês saberem que as do corpo não fazem falta a quem Deus não dá. Ninguém está incapacitado para adquirir Suas riquezas. Contanto que cada um dê o que tem, ele já se contenta. Bendito seja tão grande Deus.

 

Mas vejam, filhas, que nestas moradas Ele não permite que vocês retenham nada: pouco ou muito, quer tudo para si. E, conforme o que vocês tiverem dado (julguem por si mesmas), receberão maiores ou menores graças. Não há melhor prova para saber se nossa oração chega ou não a nos unir a ele.

 

Não pensem que esta oração seja semelhante a um sonho suave, como na morada passada. Disse sonho porque nos gostos de Deus parece que a alma está levemente adormecida (não totalmente, mas também não está desperta).

Aqui, porém, estamos inteiramente adormecidas, e bem adormecidas, para as coisas do mundo e para nós mesmas. Na verdade, fica-se sem sentidos durante o pouco tempo que dura e não se pode pensar, mesmo que se queira. Não é necessário nenhum artifício para suspender o pensamento. Até o amar, se ama, não entende como, nem o que é que ama, nem o que quer. Enfim, é como quem está totalmente morto para o mundo, para viver mais em Deus. É uma morte saborosa que arranca a alma de todas as suas funções, deleitosa porque parece que a alma se separa realmente do corpo para melhor estar em Deus, a tal ponto que não sei se lhe sobra vida para respirar (estava pensando nisso agora e parece-me que não, ao menos ela não percebe se respira).

 

Todo o intelecto se desdobra para entender algo do que a alma sente. Mas, como suas forças não bastam, fica transtornado e, embora não chegue a ficar inteiramente paralisado, também não dá nenhum sinal de vida, como se diz de uma pessoa que está tão desmaiada que parece morta.

 

Oh, segredos de Deus! Não me cansaria de tentar explicar, se acreditasse que seria capaz de encontrar um jeito. E assim direi mil desacertos. Se acertar alguma vez, louvemos muito ao Senhor.

 

5. Disse que essa oração não se assemelha a sonho porque, aqui nestas quintas moradas, as lagartixas não entram, por mais delgadas que sejam, pois nem há imaginação, nem memória, nem entendimento que possa impedir essa graça.

Nas quartas moradas, porém, até que se acumule muita experiência, a alma fica em dúvida sobre o que lhe aconteceu: se foi ilusão ou se estaria sonhando; se veio de Deus ou se o demônio se transfigurou em anjo de luz. Fica com mil suspeitas. E isso é bom, porque, como já disse, até a própria natureza pode nos enganar ali de vez em quando. Embora já não haja tanto lugar por onde as criaturas peçonhentas consigam entrar, umas lagartixas podem se esgueirar sim, pois são delgadas e se metem por toda parte. Mesmo que não façam mal(sobretudo se não lhes damos atenção, como recomendei), importunam muito, porque são pensamentos que procedem da imaginação e de outros lugares, como disse.

 

Mas aqui, nas quintas moradas, ousarei afirmar que, havendo verdadeira união com Deus, o demônio não poderá entrar nem fazer nenhum dano. Sua Majestade está tão perto e unido à essência da alma que ele não ousa aproximar-se, mesmo porque creio que não deve ser capaz de entender esse segredo. Se dizem que ele não compreende o nosso pensamento, é claro que perceberia menos ainda coisa tão secreta que Deus não confia nem mesmo ao nosso intelecto. Oh, que grande graça é chegar aonde esse maldito não nos faz mal! A alma recebe enormes benefícios quando Deus opera nela sem que ninguém O estorve, nem nós mesmas! Que não lhe dará Quem é tão generoso e pode dar tudo o que quiser?

 

6. Parece bobagem dizer que vocês devem se certificar de que é união com Deus, como se fosse possível haver outros tipos de união espiritual. Mas existem sim, com certeza. Ainda que seja em coisas vãs, como quando um casal se ama muito. O demônio também os transportará, não da maneira que Deus faz nem com o mesmo deleite, satisfação, paz e gozo.

 

Este aqui é um gozo superior a todos os prazeres mundanos, maior que todos os deleites e maior que todos os contentamentos. Considerando onde são gerados, esses gozos não têm nada a ver com os deste mundo, já que são sentidos de maneira muito diferente, como vocês devem saber. Certa vez, disse que é como se os do mundo alcançassem apenas a superfície do corpo, enquanto que os de Deus penetrassem até a medula. E disse bem, pois não sei explicar melhor.

 

7. Apesar disso, sinto que vocês não ficarão satisfeitas com essa explicação. Dirão que receiam errar, porque não é nada fácil sondar o interior.

 

Para quem tem experiência, basta o que já disse, porque a diferença é grande. Mesmo assim, quero lhes indicar um sinal claro de que Sua Majestade me fez lembrar hoje. Vocês não poderão se enganar nem duvidar se foi de Deus. Na minha opinião, é o sinal mais confiável. Em questões difíceis, por mais que esteja certa de compreender e dizer a verdade, sempre digo que me parece.

 

Se me enganar, estou preparada para acreditar no que os letrados disserem. Mesmo se não têm experiência própria, eles dão mostra de grande discernimento espiritual, pois foram escolhidos por Deus como luz da sua Igreja. Quando é uma verdade, Ele lhes dá luz para que a reconheçam. Não sendo insensatos, mas servos de Deus, nunca se espantam de suas grandezas e entendem que Ele pode muito mais. E quando se deparam com experiências místicas desconhecidas, confrontam-nas com outras já relatadas e assim veem que aquelas também podem ocorrer.

 

8. Tenho grandíssima experiência disso, e também de lidar com uns semiletrados espantadiços que me custaram muito caro. Deus sempre quis e ainda quer às vezes conceder essas e muitas outras graças às suas criaturas. Quem não acredita nisso está com a porta bem fechada e não pode recebê-las. Que tal coisa nunca lhes aconteça, irmãs. Creiam em Deus sempre mais e mais. Não prestem atenção se são bons ou ruins aqueles a quem Ele concede graças. Sua Majestade sabe o que faz, como já lhes disse. Não há por que nos metermos nisso. Com simplicidade de coração e humildade, devemos servir a Sua Majestade e louvá-lo por suas obras e maravilhas.

 

9. Voltando ao sinal que dizia ser confiável, vejam aquela alma de que falávamos. Deus a fez completamente boba para melhor imprimir nela a verdadeira sabedoria. Enquanto está unida ao Senhor, não vê, não ouve nem entende nada. Esse estado é breve, mas lhe parece muito mais longo do que realmente é. Deus se fixa no interior da alma de tal maneira que, quando ela volta a si, não pode duvidar, de modo algum, que esteve em Deus e Deus nela. Essa verdade fica gravada na sua memória com tanta força que, mesmo depois de anos sem voltar a receber aquela graça de Deus, não se esquece nem duvida que aconteceu de fato. Nada direi aqui acerca dos efeitos que produz, porque vou falar deles mais adiante 6 . Esse é um sinal muito confiável.

 

10. Vocês podem dizer então: como viu e entendeu isso, se não se vê nem se entende nada? Não digo que viu naquele momento, mas depois, claramente. Na verdade, não é uma visão, e sim uma certeza que fica na alma, e só Deus pode dar.

 

Certa pessoa não sabia que Deus estava em todas as coisas por presença, potência e essência. Depois de receber de Deus uma graça desse gênero, compreendeu isso. Perguntou então a um daqueles semiletrados que mencionei como é que Deus está em nós. Ele entendia tão pouco quanto ela, antes de ser instruída por Deus, e respondeu-lhe que está somente pela graça. Ela tinha tanta certeza da verdade que não lhe deu ouvidos e recorreu a outros que confirmaram o que já sabia. E isso a consolou muito.

 

11. Não se enganem pensando que essa certeza se assente sobre algo palpável, da mesma maneira que o corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo está no Santíssimo Sacramento, ainda que não o vejamos. Aqui não é assim, pois só existe a convicção da presença espiritual da Divindade. Mas, então, se não o vemos, de onde vem essa certeza? Isso eu não sei. São obras Suas. Só sei que digo a verdade. A quem não tem essa certeza, eu diria que sua alma não esteve unida inteiramente a Deus, mas apenas em parte, ou, na verdade, recebeu não esta, e sim alguma outra das muitas graças que Deus faz à alma.

 

Em todas essas coisas não havemos de buscar razões para ver como foram acontecer. Se o nosso intelecto não é capaz de entender, para que nos cansarmos tentando? Basta saber que é o todo-poderoso quem as faz e que não tomamos parte nisso. Não temos meios de compreender, por mais que nos esforcemos. O máximo que conseguimos é saber que é Deus quem opera. Não queiramos entender.

 

12. Lembrei-me agora de onde tirei a ideia de que não tomamos parte. É o que diz a esposa no livro dos Cantares: levou-me o Rei à adega do vinho ou “introduziu-me” (acho que é isso). Notem que ela não fala que entrou na adega. Diz também que buscava o seu Amado por toda parte (Cânticos 2, 4 e 3, 2).

 

Creio que essa adega é o lugar para onde o Senhor nos leva, quando quer e como quer. Por mais que tentemos, não podemos entrar por nós mesmas. Sua Majestade é quem nos introduz e entra junto no centro da nossa alma. Para melhor nos mostrar suas maravilhas, ele não permite que tenhamos parte nisso, a não ser rendendo-lhe inteiramente a nossa vontade. Nem deseja que as faculdades da alma e os sentidos lhe abram a porta, pois estão todos adormecidos. Ele quer entrar no centro da alma sem atravessar nenhuma porta, como entrou onde estavam Seus discípulos quando disse Pax vobis (“A paz esteja convosco”) (João 20, 19) e também quando saiu do sepulcro sem mover a pedra. Mais adiante vocês verão o quanto Sua Majestade quer que a alma o goze no centro de si mesma. E, ainda muito mais do que aqui, na última morada.

 

13. Oh, filhas, veremos muito se nos desapegarmos de nossa baixeza e miséria e se entendermos que não somos dignas de servir um Senhor tão grande que opera maravilhas muito além da nossa compreensão! Seja para sempre louvado, amém.

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Capítulo 2

 

Prossegue no mesmo tema. Explica a oração de união por meio de uma refinada comparação. Descreve os efeitos que produz na alma. É muito interessante.

 

1. Pode parecer que já mostrei tudo o que há para ver nesta morada. Mas, na verdade, falta muito, porque, como já mencionei, há variados graus de oração aqui. Não creio que saberei acrescentar mais nada acerca da união com Deus. Contudo há muitas outras coisas para contar sobre o que o Senhor opera na alma que se dispõe a receber essas graças. Vou descrever algumas e os efeitos que produzem.

 

Para me fazer entender melhor, quero usar uma comparação muito boa. Servirá também para vermos que, embora não possamos colaborar nessa obra do Senhor, faremos muito se nos dispusermos a receber essa graça.

 

2. Vocês já devem ter ouvido falar da maravilha de Deus que é a criação da seda. Só mesmo ele poderia inventar tal coisa. Eu mesma nunca vi, só ouvi falar. Então, se algo for distorcido, não é culpa minha.

 

Dizem que o bicho da seda nasce de uma semente parecida com pequenos grãos de pimenta, que fica como se estivesse morta até a época do ano em que o calor faz surgir as primeiras folhas das amoreiras. Alimenta-se e se cria dessas folhas. Depois de crescido, aloja-se nuns raminhos e com a boquinha tira de si mesmo a seda com a qual faz um casulo muito apertado onde se encerra. E assim se acaba essa lagarta que é grande e feia. Mas desse mesmo casulo sai uma borboletinha branca muito graciosa.

 

Se ninguém nos contasse, quem poderia imaginar? Que raciocínios poderiam nos levar a deduzir que uma coisa tão sem razão de ser, como uma lagarta, ou até mesmo uma abelha, seja tão dedicada e trabalhe com tanta habilidade para nosso proveito, ao ponto de a pobre lagarta perder a vida nessa labuta? Para um pouco de meditação basta isso, irmãs. Não preciso dizer mais nada. É suficiente para vocês se darem conta das maravilhas e sabedoria do nosso Deus. Que seria então se conhecêssemos a propriedade de todas as coisas? Será muito proveitoso meditar sobre essas grandezas e alegrarmo-nos por sermos esposas de um Rei tão sábio e poderoso.

 

3. Voltemos ao que dizia. Essa lagarta, ou melhor dizendo, essa alma começa a ter vida quando, com o calor do Espírito Santo, passa a valer-se do auxílio geral que Deus nos dá a todos, fazendo uso dos remédios que deixou na sua Igreja, como a confissão frequente, as boas leituras e os sermões. A alma que estava morta em seu descuido e pecados, mergulhada em ocasiões de pecado, começa a viver e vai se alimentando de tudo isso e de boas meditações até estar crescida, que é o que me interessa agora, pois o resto pouco importa.

 

4. Crescida pois essa lagarta (como disse, usando outra comparação desde as primeiras até as quartas moradas), começa a fabricar a seda e a construir a casa onde morrerá. Essa casa, queria dizer aqui, é Cristo. Acho que li ou ouvi dizer em algum lugar que nossa vida está escondida em Cristo ou em Deus (é tudo uma só coisa), ou que nossa vida é Cristo (Colossenses 3, 3-4). Mas isso não faz diferença para o meu propósito.

 

5. Pois vejam só, filhas, o que podemos fazer, com o favor de Deus, nesta oração de união: nós mesmas edificamos a nossa morada, que é Sua Majestade! Mas, se Deus é a morada e se nós podemos construí-la, significa então que podemos tirar algo de Deus e por algo nele? Sim, podemos! Mas entendam bem, não se trata de tirar nada de Deus nem acrescentar nada nele, e sim tirar de nós e acrescentar em nós mesmas, como faz o bicho da seda.

 

E, antes que possamos terminar esse trabalhinho que não é nada, Deus lhe acrescentará, com sua grandeza, tal valor que o próprio Senhor será o prêmio dessa obra. Se bem que tenha feito quase tudo sozinho, Sua Majestade quer juntar nossas pequeninas dores ao enorme martírio que padeceu para que seja tudo uma só coisa.

 

6. Eia, pois, minhas filhas! Apressemo-nos em trabalhar, tecendo esse casulo, despojando-nos de nosso amor próprio e de nossa vontade, desapegando-nos de qualquer coisa do mundo, fazendo penitência, oração, mortificação, exercitando a obediência e tudo mais que vocês sabem. Quem dera colocássemos em prática tudo o que nos ensinaram a fazer. Morra, morra esse verme assim que terminar de fazer aquilo para que foi criado. Vocês verão que contemplamos a Deus envolvidas em sua glória, como aquela lagarta, em seu casulo. Reparem que, quando digo contemplamos a Deus, estou me referindo ao modo como ele se faz sentir nesta oração de união.

 

7. Tudo o que disse até aqui foi uma preparação para vermos agora o que acontece a essa lagarta. Quando chega a este grau de oração, ela já está bem morta para o mundo. E do seu casulo surge uma borboletinha branca. Oh, grandeza de Deus! Como sai transformada a alma depois de mergulhar na glória de Deus, unindo-se intimamente a ele, embora por tão breve tempo!

 

Na verdade, a própria alma não se reconhece. Vê em si uma transformação comparável à de uma lagarta feia para uma borboletinha branca. Não sabe como pôde merecer nem de onde lhe veio tanto bem. Melhor dizendo, certamente sabe que não merece. Sente tal desejo de louvar ao Senhor que queria aniquilar-se e morrer por ele mil mortes. Começa a desejar padecer grandes tribulações e logo não consegue fazer outra coisa. Sente grandíssimos desejos de penitência, de solidão, de que todos conheçam a Deus. E uma imensa dor ao ver que ele é ofendido.

 

Na morada seguinte, trataremos desses efeitos mais detidamente. Embora o que há nesta morada e na próxima seja quase tudo igual, a intensidade dos efeitos é muito diferente. A alma que Deus fez chegar aqui verá grandes coisas, se se esforçar para seguir adiante.

 

8. Oh, ver a aflição dessa borboletinha é coisa para louvar a Deus! Já não sabe onde há de pousar. Depois de provar desse vinho, tudo no mundo a descontenta, em especial se Deus o dá muitas vezes. Apesar dessa agitação exterior, no íntimo ela nunca esteve mais quieta e sossegada em toda a sua vida, pois quase sempre recebe mais.

 

Reputa como nada as obras que fazia quando era lagarta, tecendo pouco a pouco o casulo. Nasceram-lhe asas. Como se contentará em prosseguir passo a passo se pode voar? Tudo o que faz por Deus lhe parece pouco diante de quanto almeja fazer. Não considera grande sacrifício tudo o que os santos passaram e entende por experiência própria como o Senhor ajuda e transforma a alma, ao ponto de ela não se reconhecer mais.

 

A fraqueza que sentia ao fazer penitência converteu-se em força. Se antes as tentativas de diminuir o apego excessivo aos parentes, amigos e bens materiais só faziam aumentá-lo, agora pesam-lhe certas obrigações sociais que é preciso cumprir para não faltar à caridade. Tudo a cansa, porque descobriu que as criaturas não podem lhe dar o verdadeiro descanso.

 

9. Acho que estou me alongando. Mas, na verdade, poderia dizer muito mais. Quem tiver recebido essa graça de Deus verá que não disse tudo.

 

Não é de admirar que essa borboletinha procure outro lugar de pouso desde que se achou renovada e estranha às coisas do mundo. Mas aonde irá a pobrezinha? Já não pode voltar para o lugar de onde saiu. Isso não está em nossas mãos, por mais que façamos. Só Deus pode nos dar essa graça.

 

Oh, Senhor, que novas tribulações começam para essa alma! Quem poderia esperar por isso depois de graça tão elevada? Enfim, de uma maneira ou de outra, haverá cruz enquanto vivermos. E se alguém disser que, depois de chegar aqui, encontrou descanso e contentamento permanente, eu diria que nunca chegou. Não foi senão algum gosto experimentado na morada anterior, se é que chegou ali, ajudado pela fraqueza humana. Ou talvez seja astúcia do demônio que lhe dá um tempo de paz para fazer depois guerra muito maior.

 

10. Não estou dizendo que não haja paz para quem alcança esta morada. Há sim e muito grande. As tribulações que a alma sofre aqui são de origem tão nobre e meritória que, apesar de muito intensas, produzem paz e contentamento. A tristeza provocada pelas coisas do mundo desperta nela o desejo penoso de deixar esta vida. E, se tem algum alívio, é pensar que faz a vontade de Deus, vivendo neste desterro. Mas nem isso basta para remediar a sua dor, porque, apesar de todos os benefícios recebidos, a alma ainda não está tão rendida à vontade do Senhor como ficará nas próximas moradas. Embora não deixe de se resignar, é com imenso pesar e muitas lágrimas, porque ainda não lhe foi dada virtude bastante para renunciar completamente à própria vontade. E sofre por isso cada vez que faz suas orações.

 

Também sofre muito, vendo que Deus é ofendido e pouco estimado neste mundo e por saber que muitas almas se perdem, tanto de hereges como de mouros. Mas as almas que mais a afligem são as dos cristãos em pecado mortal. Teme que muitos se condenem, embora saiba que Deus, por sua infinita misericórdia, pode lhes conceder a graça do arrependimento e salvação.

 

11. Oh, grandeza de Deus! Poucos anos atrás, ou, quem sabe, há apenas alguns dias, essa alma vivia despreocupada, sem cuidar senão de si. Quem a designou para tão penosas incumbências? Ainda que refletíssemos por muitos anos, não conseguiríamos avaliar a sua dor. Mas, valha-nos Deus, vocês dirão, se há tanto tempo meditamos no imenso mal que é ofender a Deus; se pensamos que esses que se condenam são filhos seus e nossos irmãos; se reconhecemos os perigos em que vivemos e o grande bem que é deixar esta vida miserável, tudo isso não basta para fazermos ideia do que sente essa alma? Não, filhas, porque a sua dor não é como as deste mundo. Estas podemos suportar, com a graça do Senhor, pois não alcançam o íntimo das entranhas. Mas aquelas outras parecem despedaçar a alma e moê-la, sem que ela busque isso e às vezes contra a sua vontade. Mas que é isso? De onde vem? Eu lhes direi.

 

12. Lembram-se da esposa dos Cantares que mencionei há pouco com outro propósito? E de como Deus a introduziu na adega do vinho e imprimiu nela a caridade? Pois é isso. A alma se entrega em Suas mãos. O seu imenso amor a faz completamente dócil, e ela se rende à vontade de Deus para que ele faça dela o que quiser. Deus concederá essa graça, penso eu, somente à alma que já toma por muito sua. Sem que ela entenda como, o Senhor a faz sair dali marcada com o Seu selo. Realmente a alma não faz mais do que a cera quando lhe imprimem o selo. A cera não o imprime em si mesma. Apenas está predisposta, quer dizer, está macia. E essa predisposição tampouco vem dela. Não é ela que se abranda, apenas fica quieta e consente. Oh, bondade de Deus, que tudo é feito à vossa custa! Só quereis o nosso sim e que não haja impedimento na cera.

 

13. Pois vejam, irmãs, o que o nosso Deus faz para que essa alma já se reconheça como sua. Dá-lhe do que tem, que é o mesmo que seu Filho teve nesta vida. Não poderia nos conceder maior graça. Quem, mais do que ele, devia querer sair deste mundo? Sua Majestade disse na Última Ceia: “Tenho desejado ardentemente” (Lucas 22, 15) . Mas como, Senhor, não recuastes diante da morte cruel que havíeis de sofrer, tão dolorosa e medonha? Não recuei, responde-nos o Senhor, porque o imenso amor que tenho pelas almas e o desejo de que elas se salvem supera sem comparação essas penas. Além disso, os grandíssimos sofrimentos espirituais que padeci e ainda padeço desde que vim a este mundo são suficientes para considerar como nada as dores físicas da minha paixão.

 

14. Tenho meditado muito sobre isso. E sempre me recordo de certa pessoa, minha conhecida, que tem sido atormentada pela visão de Nosso Senhor sendo ofendido. Segundo ela, é tão insuportável que preferia a morte a ter de rever tal cena.

 

Mas, se uma pessoa com pouquíssima caridade, se comparada à de Cristo (pode-se mesmo dizer quase sem nenhuma), sofre essa dor atroz, qual não terá sido o padecimento de Nosso Senhor Jesus Cristo? Que vida ele devia levar? Todas as coisas lhe eram presentes e estava sempre vendo as grandes ofensas que faziam a seu Pai. Sem dúvida nenhuma, acredito que esse padecimento de Nosso Senhor foi muitíssimo maior que os da sua sacratíssima paixão, porque sua morte significava o fim do martírio que era ver seu Pai sendo ofendido.

 

A isso somou-se a alegria de nos proporcionar a salvação e de mostrar o amor que tinha por seu Pai, padecendo na cruz por ele. Tudo isso diminuiu as dores da paixão, assim como também acontece aos que neste mundo fazem grandes penitências quase sem senti-las devido à força do amor, e até queriam fazer mais e mais, porque tudo lhes parece pouco. Pois qual não seria a alegria de Sua Majestade vendo-se em tão excelente ocasião de mostrar ao seu Pai quão zelosamente cumpria o dever de obediência e o mandamento de amar ao próximo? Oh, grande deleite é padecer, fazendo a vontade de Deus! Mas creio que era tão penoso ver continuamente tantas ofensas a Sua Majestade e tantas almas irem para o inferno que, se não fosse mais que homem, um só dia daquele desgosto bastava para acabar com muitas vidas, quanto mais com uma.

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Capítulo 3

 

Continua o mesmo assunto. Trata de outro tipo de união que a alma pode alcançar com o favor de Deus e de como isso é útil para aumentar o amor ao próximo. É muito proveitoso.

 

1. Voltemos à nossa borboletinha e vejamos algo das graças que Deus lhe dá nesta morada. Mas lembrem-se de que ela as receberá com a condição de que procure seguir adiante no serviço de Nosso Senhor e no conhecimento de si mesma. Se ela não faz mais nada depois de receber essa graça e, supondo-se já segura, se descuida da sua vida e se desvia do caminho do céu, que são os mandamentos, terá o mesmo destino da borboleta que sai do casulo e espalha as sementes que vão trazer outras à vida enquanto ela mesma morre para sempre.

 

Disse que espalha as sementes porque tenho para mim que Deus não permite o desperdício de tão excelente graça. Se a alma não quer se beneficiar dela, então que beneficie outras. Como fica cheia de bons desejos e virtudes enquanto persevera no bem, sempre ajuda outras almas. E do seu calor lhes comunica calor. Mesmo quando perde essa graça, ainda deseja que outras se beneficiem dela e gosta de falar dos favores que Deus faz a quem o ama e serve.

 

2. Conheci uma pessoa a quem acontecia isso. Estando muito perdida no caminho do céu, gostava que outras aproveitassem as graças que Deus lhe tinha feito, mostrando o caminho de oração às que não o conheciam. Fez-lhes muitíssimo bem. Depois o Senhor voltou a lhe dar luz. É verdade que ainda não tinha experimentado os efeitos que descrevi.

 

Quantos Judas deve haver entre os que o Senhor chama ao apostolado. Comunica-se com eles e os escolhe para fazê-los reis como Saul, e depois, por culpa deles mesmos, desencaminham-se! Disso concluímos, irmãs, que, para merecermos cada vez mais graças e não nos perdermos como esses, a única segurança que podemos ter é a obediência e a fidelidade à lei de Deus. Digo isso não só àquelas que já receberam tais graças, mas também às outras.

 

3. Esta morada está me parecendo um tanto obscura, apesar de tudo que já disse. É tão vantajoso entrar nela que não devem perder as esperanças aquelas a quem o Senhor ainda não deu graças tão elevadas. A verdadeira união poderá ser perfeitamente alcançada com a ajuda de Nosso Senhor, se nos esforçamos em procurá-la, não tendo a vontade ligada a outra coisa senão a vontade de Deus. Oh, quantos de nós dizem que não querem nada mais e morreriam por essa verdade! Pois eu lhes digo e repetirei muitas vezes que se realmente o fizerem vocês terão alcançado essa graça do Senhor.

 

E não pensem que o maior benefício da oração de união com Deus, da qual lhes falei pouco antes, esteja nos imensos gozos que ela proporciona. O que há de mais valioso nela é o fato de proceder dessa autêntica união da nossa vontade à de Deus. Ninguém poderá chegar a ela sem isso.

 

Oh, que união desejável é essa! Venturosa a alma que a tiver alcançado, pois viverá nesta vida com descanso e na outra também. Nada neste mundo a afligirá, a não ser que se encontre em perigo de perder a Deus ou que o veja ser ofendido. Nem enfermidade, nem pobreza, nem mortes, exceto a de quem fará falta na Igreja de Deus. Essa alma vê claramente que ele sabe o que lhe convém melhor do que ela mesma.

 

4. Notem que há diversos tipos de aflições, alguns dos quais surgem repentinamente, produzidos pela natureza humana. O mesmo se dá com os contentamentos e também com os afetos, como os que são movidos pela caridade de quem se apieda do próximo, a exemplo do que sobreveio a Nosso Senhor quando ressuscitou Lázaro.

 

Essas aflições repentinas não impedem a união com a vontade de Deus nem perturbam a alma com uma exaltação emocional apreensiva, agitada e prolongada, porque passam depressa. Parece que não chegam ao fundo da alma, mas se detêm na superfície dos sentidos e faculdades da alma, como também acontece aos gozos na oração de que já falei. Andam pelas moradas anteriores, mas não entram na morada da qual falarei por último, porque o acesso às sétimas moradas requer a suspensão das faculdades. O Senhor tem poder para enriquecer as almas por muitos caminhos e trazê-las a estas moradas sem passar pelo atalho que mencionei.

 

5. Mas fiquem avisadas, filhas: é necessário que a lagarta morra e mais à nossa custa. O bicho da seda se encoraja a morrer quando pressente a vida nova que está por vir. Mas, se queremos alcançar vida nova, é indispensável que, vivendo nesta vida, nós mesmas a matemos.

 

Eu lhes confesso que será com muito mais tribulação. Mas tudo tem seu preço. Assim a recompensa será maior se vocês saírem vitoriosas. Quanto a ser possível, não duvidem, desde que haja genuína união com a vontade de Deus. Essa é a união que tenho desejado toda a minha vida. É a que peço sempre a Nosso Senhor, a mais clara e segura. 6. Ai de nós! Poucas devemos chegar a ela. Quem entrou para a Igreja e se guarda de ofender ao Senhor pensa que já está tudo feito. Oh, mas ainda ficam umas lagartas que não se mostram até que cheguem a nos roer as virtudes, como fez a que roeu a hera do profeta Jonas (Jonas 4, 6-7), alimentando o amor próprio, a autoestima, o julgar o próximo e a falta de caridade, por menor que seja, e não querendo bem ao próximo como a nós mesmos. Com grande dificuldade conseguimos cumprir o dever de não pecar. Mas ficamos muito longe daquilo que deveria ser feito para nos unirmos inteiramente à vontade de Deus.

 

7. Que pensam, filhas, que é a Sua vontade? Que sejamos perfeitas para sermos um com Ele e com o Pai, como Sua Majestade pediu. Vejam quanto nos falta para chegarmos a isso! Confesso que estou escrevendo com muita aflição por me ver tão longe. E tudo por minha culpa. Não é preciso que o Senhor nos faça maiores favores para chegarmos aqui. Basta o que já nos deu: o seu Filho que nos ensina o caminho.

 

Mas não pensem que eu devo me conformar à vontade de Deus ao ponto de não sentir a dor da morte de meu pai ou meu irmão. Nem que, se me vierem dificuldades e enfermidades, terei de sofrê-las com alegria. Tudo isso é bom. Mas às vezes pode ser apenas uma questão de bom senso, porque, se não há remédio, o melhor é fazer da necessidade uma virtude. Quantas coisas semelhantes faziam os filósofos antigos, ou senão outras igualmente meritórias, por serem muito sábios!

 

Aqui, porém, o Senhor só nos pede estas duas coisas: amor à Sua Majestade e ao próximo. É nisso que temos de trabalhar. Praticando-as com perfeição, fazemos a Sua vontade. Assim estaremos unidas a Ele. Mas como ainda estamos longe de cumprir esses mandamentos! Queira Sua Majestade dar-nos tal graça para que mereçamos chegar a esse estado, pois depende de nós, se quisermos.

 

8. A meu ver, o sinal mais seguro para saber se guardamos esses dois preceitos é o amor ao próximo. Porque não se pode saber com certeza se amamos a Deus, mesmo que haja fortes indícios. Mas o amor ao próximo, sim. Podem ter certeza de que, quanto mais vocês progredirem no amor ao próximo, mais haverão de progredir no amor a Deus. O amor de Sua Majestade por nós é tão grande que, em paga do amor que dedicamos ao próximo, fará crescer de mil maneiras o que temos por Ele. Disso não posso duvidar.

 

9. É imprescindível nos conduzirmos com muita cautela nesse assunto. Se não cometemos nenhum deslize, está tudo feito. Creio que, devido à inclinação para o mal da nossa natureza humana, só chegaremos a amar perfeitamente o próximo se esse amor nascer da raiz do amor de Deus. Como isso é importante, irmãs! Procuremos nos conscientizar de como vamos nesse ponto, mesmo nas menores coisas.

 

Não prestemos atenção a ideias muito ambiciosas que nos ocorrem na oração, parecendo-nos que havemos de fazer e acontecer por amor ao próximo, ou mesmo por uma só alma que se salve. Se depois as obras não correspondem, não há razão para levá-las a sério. Digo o mesmo da humildade e de todas as outras virtudes.

 

O demônio é um grande trapaceiro. Dará mil voltas ao inferno para nos convencer de que temos alguma virtude que não temos. E ele sabe o que faz, porque assim causará muito mal. Essas virtudes fingidas nunca vêm sem alguma vanglória, já que nascem dessa raiz daninha, ao passo que as que Deus dá são livres de vaidade e soberba.

 

10. Às vezes fico observando certas almas que rezam cheias de fervor como se quisessem ser abatidas e publicamente afrontadas por Deus. Mas depois, se cometem a menor falta, não deixam de encobri-la, se puderem. E que Deus nos acuda se são denunciadas injustamente!

 

Quem não é capaz de suportar essas ninharias, não leve a sério o que no seu íntimo se determinou a padecer. Não foi genuína determinação da vontade. Se fosse, não se comportaria assim. Foi apenas algum efeito da imaginação por meio da qual o demônio faz seus assaltos e semeia enganos.

 

Poderá iludir muitíssimo a mulheres e pessoas sem letras, porque não sabemos diferenciar o que é faculdade da alma e o que é imaginação, bem como muitos outros aspectos da vida interior. Oh, irmãs, como se vê claramente o amor ao próximo em algumas de nós! Noutras, porém, nem tanto. Se vocês entendessem o quanto importa adquirir essa virtude, não teriam outro anseio na vida.

 

11. Quando vejo certas pessoas muito interessadas em saber que grau de oração atingiram e tão concentradas na oração que não ousam mover o corpo nem o pensamento para não perder nem um pouquinho do gosto e devoção que experimentam, dou-me conta do quão pouco compreendem o caminho da verdadeira união com Deus. Pensam que nisso está todo o negócio.

 

Não, irmãs, não. O Senhor quer obras. Se vocês podem dar algum alívio a uma pessoa enferma, não hesitem em privar-se dos gozos na oração e se compadeçam dela. Se ela tem alguma dor, doa em vocês também. Se for preciso, jejuem para que ela coma. Não tanto por ela (não procurem saber se ela merece o seu sacrifício), mas porque o seu Senhor quer que vocês façam isso. Essa é a verdadeira união com a Sua vontade. E se alguém é elogiado, alegrem-se muito mais do que se elogiassem a vocês. Na verdade, isso é fácil para quem é humilde, pois até se sente mal quando é enaltecido. Mas a capacidade de se alegrar vendo reconhecidas as virtudes das irmãs é grande virtude. E devemos sentir as faltas delas como se fossem nossas e encobri-las.

 

12. Tenho falado muito sobre esse assunto em outros escritos, porque vejo que, se falharmos aqui, irmãs, estamos perdidas. O Senhor quer que isso nunca aconteça. Então, que assim seja. Não desistam de receber de Sua Majestade a união perfeita. Sem ela, ainda que tenham devoção e satisfação espiritual e lhes pareça que já chegaram lá por conta de alguma suspensãozinha na oração de quietude (algumas logo vão acreditar que está tudo feito), creiam-me que não alcançaram essa união. Peçam a Nosso Senhor que lhes dê o perfeito amor ao próximo e deixem Sua Majestade agir. Ele lhes dará mais do que podem imaginar, desde que vocês se esforcem, procurando pôr em prática a caridade, sempre que tiverem ocasião.

 

Esforcem-se para fazer em tudo a vontade das irmãs, ainda que vocês percam o seu direito. Abram mão dos próprios interesses em favor delas, por mais que isso contrarie o seu instinto natural. Procurem tomar sobre si o trabalho para aliviar o próximo sempre que puderem. E não pensem que isso não lhes custará nada, ou que acharão tudo feito. Vejam quanto custou a Nosso Senhor o amor que nos teve: para nos livrar da morte, padeceu tão penosa morte na cruz.

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Capítulo 4

 

Prossegue no mesmo assunto, explicando mais detidamente essa oração. Mostra o quanto importa ficar de sobreaviso, pois o demônio se desdobra para fazer a alma voltar atrás no caminho iniciado.

 

1. Imagino que vocês queiram saber que é feito de nossa pombinha e onde vai pousar, pois está claro que não é em gostos espirituais nem em contentamentos do mundo. O seu voo é mais alto. Contudo não posso lhes dizer nada até chegarmos à última morada. Queira Deus que eu me lembre e tenha ocasião de tratar disso lá.

 

Já se passaram quase cinco meses desde que comecei a escrever. E, como não tenho cabeça para reler, deve estar saindo tudo embaralhado. Talvez repita algumas coisas, mas, como é para minhas irmãs, não tem importância.

 

2. Por hora, quero explicar-lhes melhor o que me parece ser a oração de união. Para isso, vou fazer uma comparação, como permite o meu pobre talento. Depois direi algo mais dessa borboletinha que não para porque não acha seu verdadeiro repouso. Mas, sempre fecunda, faz bem a si e a outras almas.

 

3. Vocês já ouviram falar muitas vezes que Deus desposa espiritualmente as almas. Bendita seja sua misericórdia que tanto quer se humilhar! Não sei de nada melhor que o sacramento do matrimônio para representar essa verdade. Ainda assim, não deixa de ser comparação grosseira, pois nada que não seja espiritual jamais participa da união da alma com Deus. Aqui tudo é amor com amor. Suas operações são puríssimas, tão refinadas e suaves que não há palavras para descrevê-las, conquanto o Senhor saiba muito bem como fazê-las sentir. Nada que seja corpóreo tem parte nisso, e os contentamentos espirituais que o Senhor dá ficam mil léguas à frente dos prazeres que devem ter os que se casam.

 

4. No entanto, parece-me que a oração de união ainda não chega a ser um noivado espiritual. É como um casal de namorados que trata de conhecer melhor um ao outro antes de firmar compromisso, para ver se combinam entre si e se realmente querem noivar. O mesmo acontece na união espiritual. Desse modo, quando chega a assinar o contrato pré-nupcial, a alma já está muito bem informada sobre quem é o Noivo e determinada a fazer em tudo a sua vontade para agradá-lo de todas as maneiras.

 

Se vê que a alma está mesmo determinada, Sua Majestade fica contente e faz a misericórdia de se aproximar dela para que se vejam e ela o conheça melhor. Podemos dizer que não chega a ser um noivado porque tudo isso se passa em brevíssimo tempo. Já não se trata de dar e receber, mas sim de a alma ver secretamente quem é este que há de tomar por esposo. De outro modo, isto é, pelos sentidos e faculdades, ela não poderia compreender, de jeito nenhum, nem em mil anos, o que vê aqui rapidamente.

 

E tal é o Amado que basta aquela rápida visão para tornar a alma mais digna de que venham a se dar as mãos, como se diz. Realmente ela fica tão enamorada que faz de tudo para não ver fracassarem os planos desse divino noivado. Mas perderá tudo se se descuidar e colocar sua afeição em outro que não ele. Nesse caso, a perda será tão desmedida como são as graças que o Senhor lhe faz, muito maior do que se pode dizer.

 

5. Por isso peço àquelas almas cristãs a quem o Senhor fez chegar a este ponto que, pelo amor d’Ele, não se descuidem. Fujam das ocasiões de pecar, porque nesse estado a alma ainda não está tão forte que consiga passar por elas sem cair, como ficará depois do noivado, na próxima morada.

 

Até aqui o contato da alma com Deus não foi mais do que uma rápida troca de olhares, como se costuma dizer. E o demônio trata de combater com grande empenho para impedir que se casem. Depois, como a vê toda entregue ao Esposo, não ousa tanto, pois tem medo dela. A experiência lhe ensinou que, se tenta fazê-lo, ele sofre enorme perda e ela obtém maior lucro.

 

6. Posso lhes garantir, filhas, que tenho conhecido pessoas muito adiantadas que chegaram a esse estado, mas o demônio tornou a ganhá-las para si com grande sutileza e ardil. Ele deve convocar todo o inferno para conseguir isso, pois, como sempre digo, não é uma só alma que se perde, mas uma multidão. O inimigo tem larga experiência nessas artimanhas.

 

Por outro lado, Deus traz inúmeras almas a si por meio de uma só alma. Devemos louvá-lo muito pelos milhares de pessoas que os mártires convertiam. Foi o que fez uma virgem como Santa Úrsula. E quantas almas o demônio terá perdido para São Domingos, São Francisco e outros fundadores de ordens? Quantas perde ainda hoje para o Padre Inácio de Loyola, fundador a Companhia de Jesus? Pelo que sabemos da vida desses santos, é certo que todos recebiam de Deus graças semelhantes. E que fizeram além de se empenhar para não perder, por sua culpa, tão divino casamento?

 

Oh, minhas filhas, como este Senhor está disposto a distribuir graças da maneira que fazia naqueles tempos. Em parte, está até mais necessitado de que queiramos recebê-las, porque hoje em dia há poucos que velam por Sua honra como se fazia antigamente. Queiramos muito recebê-las. Mas vejam que será preciso muitíssima prudência para não perder nada dos nossos direitos. Oh, que grande erro seria! O Senhor nos dê luz, por sua misericórdia, para não cairmos em semelhantes trevas.

 

7. Vocês devem estar querendo me perguntar duas coisas. A primeira, se a alma está assim tão unida à vontade de Deus e se ela não quer fazer a própria vontade, como pode se enganar? A segunda, por onde o demônio consegue entrar para colocá-la em perigo de se perder, estando ela tão isolada do mundo neste mosteiro, tão próxima dos sacramentos e em companhia de irmãs que, podemos dizer, mais parecem anjos, pois, pela bondade do Senhor, não têm outro desejo senão servir e agradar a Deus em tudo? Não é de admirar que se percam os que estão lá fora mergulhados nas ocasiões de pecado que o mundo oferece, mas, tratando-se de almas tão devotas, causa espanto.

 

Eu lhes digo que nisso vocês têm razão, pois Deus nos fez grande misericórdia, trazendo-nos para este mosteiro. Mas quando vejo, como já disse, que Judas estava em companhia dos apóstolos, convivia diariamente com o próprio Deus e ouvia suas palavras, compreendo que não há segurança neste mundo.

 

8. Respondendo a primeira questão, se essa alma sempre permanecesse unida à vontade de Deus, certamente não se perderia. Mas o demônio, com muita sutileza e sob a aparência do bem, começa por separá-la da vontade divina em coisinhas de nada e envolvê-la em outras que faz parecer inofensivas. E, pouco a pouco, vai lhe obscurecendo o entendimento, enfraquecendo a vontade e avivando nela o amor próprio. Assim lentamente afasta-a da vontade de Deus e a aproxima da sua. Isso também responde à segunda pergunta, porque não há lugar tão seguro onde ele não possa entrar nem deserto tão afastado aonde deixe de ir. E digo mais: talvez o Senhor o permita para ver como se comporta aquela alma a quem escolheu como guia de outras. Se há de cair, é melhor que seja no começo, porque depois poderá desencaminhar a muitas.

 

9. A precaução que me parece mais acertada é pedir sempre a Deus em oração que nos tenha em sua mão; pensar continuamente que, se ele nos deixa, logo caímos no abismo, como de fato acontece; e nunca depositar nossa confiança em nós mesmas, pois seria loucura.

 

Além disso, devemos nos conduzir com particular cuidado e vigilância, observando como vão nossas virtudes (se aumentam ou diminuem, em especial, o amor de umas pelas outras); o desejo de sermos consideradas como a menor de todas; e nossa reação às pequenas provações do dia a dia. Prestando atenção nisso e pedindo ao Senhor que nos ilumine, logo veremos o lucro ou a perda.

 

Não pensem que Deus deixe escapar facilmente de sua mão a alma que levou tão longe. O demônio terá muito trabalho para tomá-la. Sua Majestade sente tanto a sua perda que lhe dá mil avisos interiores, de muitas maneiras. Assim o mal que a ronda não poderá se esconder.

 

10. Enfim, a conclusão é a seguinte: procuremos sempre seguir adiante. Se não progredimos nas virtudes, é bom ficar alerta, porque, sem dúvida nenhuma, o demônio prepara-nos um assalto. Não é possível que, depois de avançar tanto, a alma fique estagnada, pois o amor jamais está ocioso. Será muito mau sinal. A alma que já se comprometeu com Sua Majestade e pretende ser esposa do próprio Deus não se põe a dormir.

 

Para que vocês vejam, filhas, o que ele faz por aquelas que desde já considera como suas esposas, comecemos a tratar das sextas moradas. Lá vocês verão que todos os nossos serviços, padecimentos e obras são pouco diante das graças que nos esperam. Pode ser que Nosso Senhor tenha ordenado que me mandassem escrever para que, vendo o prêmio e como é imensa a sua misericórdia (pois quer revelar-se e dar-se a uns vermes como nós), esqueçamos os pequeninos contentamentos deste mundo e, mirando sua grandeza, corramos inflamadas em seu amor.

 

11. Queira Deus que eu consiga esclarecer algo desse assunto tão difícil. Se Sua Majestade e o Espírito Santo não moverem a minha pena, bem sei que será impossível. E se não for útil para vocês, suplico-Lhe que eu não acerte em dizer nada. Sua Majestade sabe que meu único desejo (tanto quanto posso entender de mim mesma) é que seu nome seja louvado e que nos esforcemos para servir a um Senhor que nos recompensa abundantemente ainda neste desterro. Por aqui podemos avaliar o que nos dará no céu, onde não há as demoras, tribulações e perigos do mar de tempestades que é esta vida. Se não houvesse o perigo de o ofender e perder, seria descanso viver até o fim do mundo, trabalhando por tão grande Deus, Senhor e Esposo. Praza a Sua Majestade que mereçamos prestar-lhe algum serviço sem tantas faltas, como sempre temos até mesmo nas boas obras, amém.