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Reflexões sobre a Paixão de Jesus Cristo, exposta com a simplicidade com que a descrevem os Santos Evangelistas.


> Introdução.


> Jesus entra em Jerusalém.
> O conselho dos Juízes e a traição de Judas.
> Última ceia de Jesus Cristo com seus discípulos.
> Da instituição do Santíssimo Sacramento.
> Jesus ora no horto e sua sangue.
> Jesus é preso e amarrado.
> Jesus é conduzido a Pilatos e daí a Herodes, sendo-lhe Barrabás preferido.
> Jesus é flagelado numa coluna.
> Jesus é coroado de espinhos e tratado como rei de teatro.
> Pilatos mostra Jesus ao povo, dizendo: Ecce Homo!
> Jesus é condenado por Pilatos.
> Jesus leva a cruz ao Calvário.
> Jesus é crucificado.
> Palavras de Jesus na cruz.
> Morte de Jesus.

 

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Introdução.

 

Diz Santo Agostinho não haver coisa mais útil para conseguir a salvação eterna do que pensar todos os dias nos tormentos que Jesus sofreu por nosso amor (Ad Frat. in er. serm. 32). E já Orígenes tinha escrito que o pecado não poderia certamente imperar na alma que meditasse continuamente na morte de seu Salvador (Lib. 6 in Rm 6). Além disso, revelou o Senhor a um santo anacoreta não haver exercício mais apropriado para acender num coração o amor divino, do que meditar na paixão de nosso Redentor. Por essa razão dizia o Pe. Baltasar Álvarez que a ignorância dos tesouros que possuímos em Jesus, na sua paixão, era a ruína dos cristãos, e por isso repetia a seus penitentes que não pensassem ter feito coisa alguma se não tivessem ainda conseguido ter sempre fixo no seu coração a Jesus crucificado.

 

As chagas de Jesus, dizia São Boaventura (Stim. div. am. p. I, c. 1), ferem os corações mais duros e inflamam as almas mais frias.

 

Ora, como adverte sabiamente um douto escritor (Pe. Croiset, Exerc. Mart. t. 3), não há coisa melhor para nos descobrir os tesouros recônditos na paixão de Jesus Cristo, do que a simples narração dessa mesma paixão. Basta para inflamar uma alma fiel no amor divino a narração feita pelos santos evangelhos e considerar com olhos cristãos tudo o que o Salvador sofreu nos principais teatros de sua paixão, isto é, no horto das Oliveiras, na cidade de Jerusalém e no monte Calvário.

 

São belas e boas as muitas considerações feitas e escritas por autores piedosos sobre a paixão de Jesus; mas certamente faz maior impressão a um cristão uma só palavra das sagradas Escrituras do que cem ou mil considerações e revelações escritas ou feitas a algumas pessoas devotas, pois as criaturas nos afiançam que tudo o que elas nos referem é certo e tem uma certeza de fé divina. Para tal fim quis, em benefício e para consolação das almas que amam a Jesus Cristo, pôr em ordem e referir simplesmente (ajuntando apenas algumas breves reflexões e afetos) o que nos dizem da paixão de Jesus os sagrados evangelistas, os quais nos oferecem matéria de meditação para cem e até mil anos, capaz de inflamar ao mesmo tempo os nossos corações em amor para com nosso amantíssimo Redentor.

 

Ó Deus, como é possível que uma alma, que tem fé e considera as dores e ignomínias que Jesus Cristo sofreu por nós, não arda de amor por ele e não tome firmes resoluções de fazer-se santa para não ser ingrata para com um Deus tão amoroso? É preciso fé; do contrário, se a fé não nos desse certeza, quem poderia aceitar o que um Deus fez em verdade por nós: “Ele se aniquilou a si mesmo, tomando a forma de escravo” (Fl 2,7). Quem poderia crer que Jesus é o mesmo ser supremo que é adorado no céu, vendo-o nascer num estábulo? quem o vê fugindo para o Egito, para livrar-se das mãos de Herodes, crerá que ele é onipotente? Quem o vê a agonizar de tristeza, no horto, o julgará felicíssimo? Vê-lo preso a uma coluna, pen¬dente de um patíbulo e crê-lo Senhor do universo?

 

Que espanto ver um rei que se fizesse verme, que se arrastasse pelo chão, que habitasse numa cova de barro e daí desse leis, crias¬se ministros e governasse o reino. Ó santa fé, revelai o que é Jesus Cristo, quem é esse homem que parece tão vil como todos os outros homens: “O Verbo se fez carne” (Jo 1,14). S. João nos atesta que ele é Verbo eterno, é o Unigênito de Deus. E qual foi a vida que passou na terra esse Homem-Deus? Ei-la, referida por Isaías: “Nós o vimos… desprezado e como o último dos homens, como o varão das dores” (Is 53,2-3). Ele quis ser o homem das dores e não houve um instante em que ele estivesse livre de dores. Foi o homem das dores e o homem dos desprezos.

 

Desprezado e como o último dos homens, sim porque Jesus foi o mais desprezado e maltratado, como se fosse o último e o mais vil de todos os homens. Um Deus preso por esbirros como um malfeitor! Um Deus flagelado como um escravo! Um Deus tratado como rei da burla! Um Deus morre pendente num lenho infame!! Que impressões não devem causar estes prodígios, em quem tem fé? E que desejo não deverão infundir de padecer por Jesus Cristo? Dizia São Francisco de Sales:

 

“As chamas do Redentor são outras tantas bocas que nos ensinam como devemos padecer por ele. Esta é a ciência dos santos, sofrer constantemente por Jesus, e assim tornaram-se depressa santos. E como não nos abrasaremos em amor, à vista das chagas que se encontram no seio do Redentor? que ventura podermos ser abrasados pelo mesmo fogo em que se abrasa o nosso Deus, e que alegria de sermos unidos a Deus pelas cadeias de amor”.

 

Mas, por que então tantos fiéis contemplam Jesus Cristo na cruz com olhos indiferentes? Assistem até na semana santa à comemoração de sua morte, mas sem nenhum sentimento de ternura ou gratidão, como se se tratasse de uma coisa irreal ou que nada tivesse conosco? Talvez não saibam ou não creiam no que dizem os evangelhos da paixão de Jesus Cristo? Respondo e digo que muito bem o sabem e crêem, mas não refletem nisso. Pois quem o crê e nisso pensa não poderá deixar de se abrasar no amor de um Deus que tanto padeceu e morreu por seu amor. “A caridade de Cristo nos impele” (2 Cor 5,14), escreve o apóstolo.

 

Quer dizer que na paixão do Senhor não devemos considerar tanto as dores e os desprezos que ele padeceu, como o amor com que os suportou, pois se Jesus quis sofrer tanto, não foi unicamente para salvar-nos, já que para isso bastava uma simples oração sua, mas para nos patentear o amor que nos consagra e assim ganhar os nossos corações. E de fato, se uma alma pensa neste amor de Jesus Cristo, não poderá deixar de amá-lo: “A caridade de Cristo nos impele”, ela se sentirá presa e obrigada quase por força a dedicar-lhe todo o seu afeto. Por esta razão Jesus Cristo morreu por nós todos, para que não vivamos mais para nós, mas exclusivamente para esse amantíssimo Redentor, que por nós sacrificou sua vida divina.

 

Oh! felizes de vós, almas amantes, diz Isaías, que meditais continuamente na paixão de Jesus: “Tirareis com alegria águas das fontes do Salvador” (Is 12,3). Vós tirareis águas perenes de amor e confiança dessas fontes felizes que são as chagas de vosso Salvador. E como poderá duvidar ainda da divina misericórdia qualquer pecador, por enorme que seja, se ele se arrepende de suas culpas, à vista de Jesus crucificado, sabendo que o Padre eterno carregou sobre esse seu Filho dileto todos os nossos pecados, para que ele satisfizesse por nós? “O Senhor carregou sobre ele a iniqüidade de todos nós” (Is 53,6). Como poderemos temer, ajunta São Paulo, que Deus nos negue alguma graça depois de haver-nos dado seu próprio Filho? “O qual não poupou nem ainda seu próprio Filho, mas entregou-o por nós todos, como não nos deu também com ele todas as coisas? (Rm 8,32).

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Jesus entra em Jerusalém

 

Capítulo I

 

“Eis que teu rei vem a ti cheio de mansidão, montado sobre uma jumenta e um jumentinho, filho da que tem jugo” (Mt 21,5).

 

Nosso Redentor, avizinhando-se o tempo de sua paixão, parte de Betânia para entrar em Jerusalém. Que humildade de Jesus Cristo em querer entrar nessa cidade sentado sobre um jumento, sendo ele o rei do céu. Ó Jerusalém, contempla o teu rei, como ele vem humilde e manso. Não temas que ele venha para reinar sobre ti e apossar-se de tuas riquezas; não, ele vem todo amor e cheio de compaixão para salvar-te e trazer-te a vida com sua morte. Entretanto, o povo, que já o venerava por causa de seus milagres e especialmente por causa da ressurreição de Lázaro, vem ao seu encontro. Uns estendem suas vestes sobre o caminho em que devia passar, outros espalham folhagens de árvores para o honorificar. Quem diria então que esse Senhor, recebido com tantas honras, dentro de poucos dias teria de aparecer aí mesmo como réu condenado à morte com uma cruz às costas?

 

Meu caro Jesus, quisestes, pois, fazer essa entrada solene para que vossa paixão e morte fosse tanto mais ignominiosa quanto maior fora a honra recebida. Os louvores, que agora vos dá essa ingrata cidade, em poucos dias serão transformados em injúrias e maldições. Agora vos dizem: “Hosana ao Filho de Davi, bendito aquele que vem em nome do Senhor” (Mt 21,9).

 

E depois levantarão a voz, dizendo: Tira-o, tira-o, crucifica-o. Agora despojam-se de suas próprias vestes, e depois vos despojarão das vossas para vos flagelar e crucificar. Agora cortam as palmas para as colocar debaixo dos vossos pés e depois cortarão ramos de espinhos para com eles vos atravessarem a cabeça. Agora vos bendizem e louvam e depois vos encherão de contumélias e blasfêmias. Ao menos tu, minha alma, dize-lhe com amor e gratidão: Bendito o que vem em nome do Senhor. Meu amado Redentor, sede sempre bendito, já que viestes salvar-me: se não tivésseis vindo, estaríamos todos perdidos.

 

“E tendo-se aproximado e vendo a cidade, chorou sobre ela” (Lc 19,14).

 

Jesus, ao se aproximar da infeliz cidade, a contemplou e chorou, pensando na sua ingratidão e ruína. Ah, meu Senhor, vós, chorando então sobre a ingratidão de Jerusalém, choráveis também sobre a minha ingratidão e a ruína de minha alma. Meu amado Redentor, vós chorais vendo o dano que eu mesmo me causei, expulsando- vos de minha alma e obrigando-vos a condenar-me ao inferno depois de haverdes morrido para me salvar. Oh! deixai que eu chore, pois é a mim que compete o chorar ao considerar o mal que vos causei, ofendendo-vos e separando-me de vós, que tanto me amastes. Eterno Pai, por aquelas lágrimas que vosso Filho derramou sobre mim, dai-me a dor de meus pecados. E vós, ó amoroso e terno Coração de meu Jesus, tende piedade de mim, pois eu detesto acima de todos os males os desgostos que vos dei e estou resolvido a nada mais amar afora vós.

 

Jesus Cristo, tendo entrado em Jerusalém e se ocupado o dia inteiro com a pregação e cura dos enfermos, pela tarde não encontrou ninguém que o convidasse a repousar em sua casa; viu-se por isso obrigado a voltar novamente a Betânia. Meu amado Senhor, se os outros vos expulsam, eu não quero expelir-vos. Houve, é verdade, um tempo desgraçado em que eu vos expulsei de minha alma: agora, porém, estimo mais estar unido a vós do que possuir todos os reinos do mundo. Ah, meu Deus, o que poderá jamais separar-me do vosso amor?

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O conselho dos Juízes e a traição de Judas

 

Capítulo II

 

“Reuniram-se os pontífices e os fariseus em conselho e diziam: Que faremos nós? porque este homem faz muitos milagres” (Jo 11,47).

 

Eis como no mesmo tempo em que Jesus se empenhava em conceder graças e fazer milagres em benefício dos homens, as primeiras personagens da cidade se reúnem para maquinar a morte do autor da vida. Eis o que diz o ímpio pontífice Caifás:

 

“Considerai que vos convém que um homem morra pelo povo e desta forma a nação toda não pereça” (Jo 11,50).

 

E desde esse dia, ajunta o mesmo apóstolo S. João, os malvados pensaram em encontrar um modo de fazê-lo morrer.

 

Ah, judeus, não temais, pois este vosso Redentor não vos fugirá, não, ele veio expressamente à terra a fim de morrer e por meio de sua morte vos libertar e a todos os homens da morte eterna.

 

Mas eis que Judas se apresenta aos pontífices e diz-lhes: “Que me quereis dar e eu vo-lo entregarei?” (Mt 26,15).

 

Que alegria sentiram então os judeus em conseqüência do ódio que tinham a Jesus, vendo que um de seus próprios discípulos queria traí-lo e entregá-lo nas suas mãos! Consideremos, a propósito, o júbilo que sente o inferno, por assim dizer, quando uma alma, que por anos serviu a Jesus Cristo, o trai por qualquer mísero bem ou vil satisfação.

 

Mas, ó Judas, se queres vender o teu Deus, exige pelos menos o preço que ele merece. Ele é um bem infinito e por isso é digno de um preço infinito. Deus do céu, tu fechas o negócio por apenas trinta dinheiros! Ó minha infeliz alma, deixa a Judas, e volve a ti teu pensamento. Diz-me, por que preço vendeste tantas vezes ao demônio a graça de Deus? Ah, meu Jesus, envergonho-me de comparecer em vossa presença, pensando nas injúrias que vos fiz. Quantas vezes vos voltei as costas e vos pospus a um capricho, a um desejo, a um momentâneo e vil prazer? Já sabia que com tal pecado perdia vossa amizade e voluntariamente a quis trocar por nada. Oh! tivesse eu morrido antes de ter-vos assim ultrajado! Ó meu Jesus, arrependo- me de todo o coração e desejaria morrer de dor.

 

Consideremos, entretanto, a benignidade de Jesus, que sabendo muito bem o contrato feito por Judas, contudo, vendo-o, não o repele de si, não o olha com maus olhos, antes o admite na sua companhia e até à sua mesa e o adverte da sua traição, para que entre em si, e, vendo-o obstinado, chega até a ajoelhar-se diante dele e a lavar-lhe os pés para enternecê-lo. Ah, meu Jesus, vejo que o mesmo fizestes comigo. Eu vos desprezei e vos traí e vós não me repelistes, mas me olhastes com amor e me admitistes também à vossa mesa na santa comunhão. Meu caro Salvador, se vos tivesse eu sempre amado! Já agora não posso mais separar-me de vossos pés e renunciar ao vosso amor.

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Última ceia de Jesus Cristo com seus discípulos

 

Capítulo III

 

“Sabendo Jesus que era chegada a sua hora para passar deste mundo ao Pai, tendo amado os seus amou-os até ao fim” (Jo 13,1).

 

Sabendo Jesus que estava perto de sua morte, devendo abandonar este mundo, tendo até então amado demais os homens, quis então dar-lhes as últimas e maiores provas de seu amor. Sentado à mesa e todo inflamado em caridade, volta-se para seus discípulos e diz-lhes: “Desejei ardentemente comer esta páscoa convosco” (Lc 22,15).

 

Meus discípulos (e o mesmo dizia a cada um de nós), sabei que não desejei outra coisa durante minha vida inteira senão comer convosco esta última ceia, pois após ela terei de sacrificar minha vida por vossa salvação.

 

Desejais então tanto, ó meu Jesus, dar a vida por nós, vossas miseráveis criaturas? Ah, esse vosso desejo inflama os nossos corações a desejar padecer e morrer por vosso amor, desde que por nosso amor quisestes sofrer tanto e morrer. Ó amado Redentor, fazei-nos compreender o que quereis de nós, que só desejamos comprazer-vos em tudo.

 

Suspiramos por dar-vos prazer, para ao menos em parte corresponder ao grande amor que nos tendes. Aumentai sempre em nós esta bela chama, que nos faça esquecer o mundo e nós mesmos, para que doravante não pensemos senão em contentar o vosso amoroso coração. Põe-se à mesa o cordeiro pascal, figura de nosso Salvador. Assim como o cordeiro era comido todo naquela ceia, assim também no dia seguinte o mundo iria ver sobre o altar da cruz, devorado pelas dores, o cordeiro Jesus Cristo.

 

“Tendo-se um discípulo reclinado sobre o peito de Jesus” (Jo 13,25).

 

Ó feliz São João, percebestes então a ternura que alimenta no seu coração este amante Redentor para com as almas que o amam. Ah, meu doce Senhor, quantas vezes me favorecestes com tal graça, sim, também eu conheci a ternura do amor que me tendes, quando me consolastes com inspirações celestes e doçuras espirituais e apesar de tudo isso não me conservei fiel a vós. Ah, não me deixes mais viver assim tão ingrato para convosco. Eu quero ser todo vosso, aceitai- me e socorrei-me.

 

“Levantou-se da mesa, depôs suas vestes e tomando uma toalha cingiu-se com ela. Em seguida deitou água numa bacia e começou a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com a tolha com que estava cingido” (Jo 13,4-5).

 

Minha alma, contempla o teu Jesus, como se levante da mesa e pratica esse ato de humildade. O rei do universo, pois, o Unigênito de Deus se rebaixa a lavar os pés de suas criaturas. Ó Anjos, que dizeis? Seria já um grande favor se Jesus lhes permitis¬se lavar com suas lágrimas seus pés divinos, como o fez com a Madalena. Mas não, ele quis lançar-se aos pés de seus servos para deixar-nos no fim de sua vida este grande exemplo de humildade e sinal do grande amor que consagrava aos homens. E nós, Senhor, continuaremos a ser sempre tão soberbos que não podemos suportar uma palavra de desprezo, uma pequenina desatenção sem nos ressentirmos subitamente, sem que vos venha o pensamento de vingança, quando pelos nossos pecados merecíamos ser calcados pelo demônio no inferno. Ah, meu Jesus, o vosso exemplo nos tornou mui amáveis as humilhações e os desprezos. Eu vos prometo de hoje em diante querer sofrer por vosso amor qualquer injúria ou afronta que me for dirigida.

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Da instituição do Santíssimo Sacramento

 

Capítulo IV

 

“Enquanto estavam ceando, tomou Jesus o pão, benzeu-o e partiu-o e deu-o a seus discípulos, dizendo: Recebei e comei: isto é o meu corpo” (Mt 26,26).

 

Depois do lava-pés, ato de tão grande humildade, cuja prática Jesus recomendou aos discípulos, retomou as suas vestes e sentando-se novamente à mesa quer então dar aos homens a última prova da ternura que nutria por eles: e esta foi a instituição do santíssimo Sacramento do altar. Para tal fim, tom um pão, consagra- o e, distribuindo-o a seus discípulos, disse-lhes: Tomai e comei, isto é o meu corpo. Recomendou-lhes, em seguida, que todas as vezes que comungassem se recordassem de sua morte por amor deles (1Cor 11,26).

 

Jesus procedeu então como um príncipe que amasse muito sua esposa e estivesse para morrer: escolhe entre suas jóias a mais bela, e chamando a esposa, diz-lhe: Vou em breve morrer, minha esposa; para que não te esqueças de mim, deixo-te esta jóia em recordação: quando a olhares, recorda-te de mim e do amor que te dediquei. São Pedro de Alcântara escreve em suas meditações:

 

“Nenhuma língua é suficiente para declarar a grandeza do amor que Jesus consagra a cada alma e por isso, querendo este esposo partir deste mundo, para que sua ausência não a fizesse esquecer-se dele, deixou-lhe em recordação este santíssimo sacramento, no qual ele permanece em pessoa, para que não houvesse entre os dois outro penhor para avivar-lhe a memória do que ele mesmo”.

 

Aprendamos daqui quanto agrada a Jesus a recordação de sua missão: instituiu propositalmente o sacramento do altar, para que nos recordemos continua¬mente do amor imenso que nos demonstrou na sua morte.

 

Ó meu Jesus, ó Deus enamorado das almas, até onde vos arrastou o amor que tendes aos homens? Até vos fazerdes seu alimento! Dizei-me o que mais podeis fazer para obrigá-los a vos amar? Vós vos dais todo a nós na santa comunhão, sem nada vos reservar; é, pois, justo que nos demos também a vós sem reserva. Procurem os outros o que quiserem: riquezas, honras e o mundo; eu quero ser todo vosso, não quero amar coisa alguma afora de vós, meu Deus. Vós dissestes que quem se alimentar de vós, viverá só por vós:

 

“Aquele que me comer, viverá também por mim” (Jo 6,58).

 

Visto que tantas vezes me admitistes a alimentar-me de vossa carne, fazei-me morrer a mim mesmo, para que eu viva só para vós, só para vos servir e dar- vos prazer. Ó meu Jesus, eu quero colocar em vós todos os meus afetos, ajudai-me e ser-vos fiel.

 

S. Paulo nota o tempo em que Jesus instituiu este grande sacramento e diz: “Jesus, na noite em que ia ser traído, tomou o pão e disse: Tomai e comei, isto é o meu corpo” (1Cor 11,23).

 

Ó Deus, naquela mesma noite em que os homens se preparavam para dar a morte a Jesus, o amante Redentor nos preparava este pão de vida e de amor para nos unir todos a si, como ele o declarou: “Quem come a minha carne permanece em mim e eu nele” (Jo 6,57).

 

Ó amor de minha alma, digno de um infinito amor, vós não podeis dar-me maiores provas para me fazer compreender o afeto e a ternura que me consagrais. Pois bem, atraí-me todo a vós: se eu não sei dar-vos meu coração inteiro, arrancai-mo vós mesmo. Ah, meu Jesus, quando serei todo vosso, como vós vos fazeis todo meu, quando vos receberei nesse sacramento de amor? Iluminai-me e descobri-me sempre mais as vossas belas qualidades, que vos fazem tão merecedor de afetos, para que eu me abrase sempre mais em amor por vós e me esforce em comprazer-vos. Eu vos amo, meu sumo bem, minha alegria, meu amor, meu tudo.

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Jesus ora no horto e sua sangue

 

Capítulo V

 

“E tendo dito o hino, saíram para o monte das Oliveiras… Então Jesus foi com eles a uma granja chamada Getsêmani” (Mt 26,30).

 

Tendo feito a ação de graças depois da ceia, Jesus deixa o cenáculo com seus discípulos, entra no horto de Getsêmani e se põe a orar; mal, porém, começa a orar assaltam-no ao mesmo tempo um grande temor, um grande tédio e uma grande tristeza, diz São Marcos (14,33). E São Mateus ajunta: “Começou a entristecer-se e ficar angustiado”. Oprimido por essa tristeza, nosso Redentor diz que sua alma está aflita até a morte (Mc 14,34). Passou-lhe então diante dos olhos toda a cena funesta dos tormentos e dos opróbrios que lhe estavam preparados. Esses tormentos o oprimiram durante sua paixão cada um por sua vez, sucessivamente, mas aqui no horto todos juntos e ao mesmo tempo o afligiram, as bofetadas, os escarros, os flagelos, os espinhos, os cravos e os vitupérios que teria de sofrer depois. Jesus os abraça todos juntos, mas, aceitando-os, sua natureza treme, agoniza e ora: “Estando em agonia, orava com mais instância” (Lc 22,43).

 

Mas, ó meu Jesus, quem vos obriga a sofrer tantas penas? É o amor que tenho aos homens, responde Jesus. Oh! como o céu terá pasma¬do vendo a fortaleza tornar-se fraca, a alegria do paraíso se entristecer. Um Deus aflito! E por quê? Para salvar os homens, suas criaturas. Naquele horto se consumou o primeiro sacrifício: Jesus foi a vítima, o amor foi o sacerdote e o ardor de seu afeto para com os homens foi o fogo bem-aventurado que consumia o sacrifício.

 

“Meu Pai, se for possível, passe de mim este cálice” (Mt 26,39).

 

Assim suplica Jesus. Ele, porém, assim suplica não tanto para ver-se livre como para nos fazer compreender a pena que sofre e aceita por nosso amor. Suplica também assim para nos ensinar que nas tribulações podemos pedir a Deus que nos livre delas, mas, ao mesmo tempo, devemos em tudo nos confortar com sua divina vontade e dizer como ele:

“Contudo não se faça o que eu quero, mas como vós quereis” (Mt 26,39).

 

Sim, meu Senhor, eu abraço por vosso amor todas as cruzes que quiserdes enviar-me. Vós inocentemente tanto sofrestes por meu amor e eu, pecador, depois de haver merecido tantas vezes o inferno, recusarei sofrer para vos comprazer e alcançar de vós o perdão e a vossa graça? Não seja feita a minha vontade, mas a vossa.

 

“Prostrou-se em terra” (Mc 14,35).

 

Jesus naquela oração prostrou-se com a face na terra, porque, vendo-se coberto com a veste sórdida de todos os nossos pecados, se envergonhara de levantar o rosto para o céu. Meu caro Redentor, não teria coragem de pedir-vos perdão de tantas injúrias que vos fiz, se os vossos sofrimentos e méritos não me dessem confiança. Padre eterno, olhai para a face de vosso Cristo; não olheis as minhas iniqüidades, olhai esse vosso Filho querido, que treme, que agoniza, que sua sangue para obter-me de vós o perdão.

 

“E seu suor se fez como gotas de sangue correndo sobre a terra” (Lc 22,44).

 

Contemplai-o e tende piedade de mim. Mas, ó meu Jesus, nesse jardim não existem carnífices que vos flagelem, nem espinhos, nem cravos: e que vos faz derramar tanto sangue? ah, eu compreendo, não foi tanto a previsão dos sofrimentos iminentes que então vos afligiu, pois já vos havíeis oferecido para sofrer essas penas: Foi oferecido porque ele mesmo o quis (Is 53,7), mas foi a vista de meus pecados: eles foram a prensa cruel que espremeu o sangue de vossas sagradas veias. Não foram tão cruéis os carrascos, não foram tão atrozes os flagelos, os espinhos, a cruz, como o foram os meus pecados, ó meu doce Salvador, que tanto vos afligiram no horto.

 

Achando-vos num estado de grande aflição, eu ainda me prestei a atormentar-vos e muito com o peso de minhas culpas. Se eu tivesse pecado menos, vós teríeis padecido menos. Eis aí a paga que eu vos dei por vosso amor, que quis morrer por mim, ajuntando penas às vossas penas. Meu amado Senhor, eu me arrependo de vos haver ofendido; pesa-me disso, mas esta minha dor é mui pequena. Desejaria uma dor que me tirasse a vida. Eia, pois, por aquela agonia tão amarga que sofrestes no horto, fazei-me participar da aversão que tivestes dos meus pecados. E se então eu vos afligi com as minhas ingratidões, fazei que agora eu vos amo de todo o meu coração, eu vos amo mais do que a mim mesmo e por vosso amor renuncio a todos os prazeres e bens da terra. Vós só sois e sereis sempre o meu único bem, meu único amor.

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Jesus é preso e amarrado

 

Capítulo VI

 

“Levantai-vos, vamos: eis que já está perto quem me há de trair” (Mc 14,42).

 

Sabendo o Redentor que Judas juntamente com os judeus e soldados que o vinham prender já estavam perto, levanta-se ainda banhado no suor da morte, e com o rosto pálido mas com o coração tão inflamado em amor, vai ao seu encontro para entregar-se em suas mãos, e, vendo-os reunidos, pergunta-lhes: “A quem buscais?” Imagina, minha alma, que Jesus te pergunta do mesmo modo: Dize-me, a quem buscas? Ah, meu Senhor, a quem eu procuro senão a vós, que viestes do céu à terra em busca de mim, para que me não perdesse?

 

“Prenderam a Jesus e o ligaram” (Jo 18,13).

 

Ó céus, um Deus amarrado! Que diríamos, se víssemos um rei preso e acorrentado por seus criados! E que devemos dizer então, vendo um Deus entregue às mãos da gentalha? Ó cordas felizes, vós que ligastes o meu Redentor, prendei-me também a ele, mas prendei-me de tal modo que eu não possa separar-me mais de seu amor; prendei o meu coração à sua vontade santíssima, para que de agora em diante não queira nada mais senão o que ele quer.

 

Contempla, minha alma, como uns lhe põe as mãos, outros o ligam, estes o injuriam, aqueles o batem, e o Cordeiro inocente se deixa atar e esbofetear à vontade deles. Não procura fugir de suas mãos, não pede auxílio, não se queixa de tantas injúrias, não pergunta por que o maltratam assim. Eis realizada a profecia de Isaías: “Foi oferecido porque ele o quis e não abriu sua boca, como uma ovelha será conduzido ao matadouro” (Is 53,7).

 

Não fala e não se lamenta, porque ele mesmo já se oferecera à justiça para satisfazer e morrer por nós e assim deixou-se conduzir à morte qual ovelha, sem abrir a boca.

 

Olha como, preso e circundado por aquele populacho, é arrastado do horto e conduzido às pressas aos pontífices na cidade. E onde estão seus discípulos? que fazem? Se, não podendo livrá-lo das mãos de seus inimigos, ao menos o acompanhassem para defender sua inocência diante dos juízes, ou então para consolá-lo com sua presença! Mas não.

 

O evangelho diz: “Então seus discípulos, abandonando-o, fugiram todos” (Mc 14,50).

 

Que dor não sentiu então Jesus, vendo-se abandonado e deixado até por aqueles que lhe eram caros! Jesus viu então todas as almas que, mais favorecidas por ele, deveriam depois abandoná-lo e voltar-se ingratamente as costas. Ah, meu Senhor, minha alma foi uma dessas infelizes que, depois de tantas graças, luzes e convites recebidos de vós, esqueceram-se ingratamente de vós e vos abandonaram. Recebei-me, por piedade, agora que arrependido e contrito a vós me volto para não vos deixar mais, ó tesouro, ó vida, ó amor de minha alma.

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Jesus é conduzido a Pilatos e daí a Herodes, sendo-lhe Barrabás preferido

 

Capítulo VII

 

“Chegada a manhã, entraram em conselho contra Jesus para entregá-lo à morte, e preso o conduziram e entregaram ao governador Pôncio Pilatos” (Mt 27,1-2).

 

Pilatos, depois de muita interrogações, feitas ora aos judeus ora ao Salvador, conhece que Jesus era inocente e que as acusações eram unicamente calúnias. Por isso, sai fora e diz aos judeus que não encontra motivo para condenar aquele homem (Jo 18,38). Vendo, porém, os judeus tão empenhados em dar a morte e ouvindo que Jesus era da Galiléia, para sair-se do embaraço, remeteu-o a Herodes (Lc 23,7). Herodes sentiu uma grande alegria por ter diante de si a Jesus Cristo, esperando presenciar algum dos muitos prodígios feitos pelo Senhor, como lhe haviam relatado. Pôs-se, pois, a crivá-lo de perguntas. Jesus, porém, se cala e nada responde, repreendendo assim a vã curiosidade daquele temerário (Lc 23,9).

 

Pobre da alma à qual o Senhor não fala mais. Meu Jesus, era isso que eu merecia, depois de me haverdes chamado tantas vezes ao vosso amor com tantas vozes piedosas e eu não vos ter dado ouvido. Mereceria, sim, que não me falásseis mais e me abandonásseis: não o façais, porém, meu caro Redentor; tende piedade de mim e falai-me: “Falai, Senhor, porque vosso servo vos escuta”.

 

Dizei-me, Senhor, o que quereis de mim, que eu quero obedecer- vos em tudo e contentar-vos.

 

Mas, vendo Herodes que Jesus não lhe respondia, desprezou-o e, tratando-o de louco, mandou que o revestissem com uma veste branca e o ludibriou, no que foi acompanhado por sua corte inteira, e assim vilipendiado e encarnecido o reenviou a Pilatos.

 

“Herodes, porém, com os da sua guarda, desprezou-o e fez escárnio dele, e, mandando vesti-lo com uma túnica branca, o reenviou a Pilatos” (Lc 23,11).

 

Jesus é então levado pelas ruas de Jerusalém, revestido com aquela veste de escárnio. Ó meu Jesus, desprezado, ainda faltava esta injúria: ser tratado como louco! Ó cristãos, contemplai como o mundo trata a Sabedoria eterna! Bem-aventurado aquele que se preza de ser tratado como louco pelo mundo e não quer saber de nada mais senão de Jesus crucificado, amando os sofrimentos e desprezos e dizendo com São Paulo: “Porque não entendi eu saber entre vós coisa alguma senão a Jesus Cristo e este crucificado” (1Cor 2,2).

 

O povo hebreu tinha o direito de pedir ao governador romano a libertação de um réu na festa da Páscoa. Por isso Pilatos propõe-lhe Jesus e Barrabás, dizendo: "A quem quereis que eu solte, a Barrabás ou a Jesus?” (Mt 27,21).

 

Pilatos esperava certamente que o povo preferisse Jesus a Barrabás, homem celerado, homicida e ladrão público, odiado por todos. Mas o povo, instigado pelos chefes da sinagoga, pede, de repente, sem nenhuma deliberação, a Barrabás. “E eles disseram: Barrabás”. Pilatos, surpreendido e ao mesmo tempo indignado, vendo preferido um tão grande celerado a um inocente diz: “Que hei então de fazer de Jesus? Todos responderam: Seja crucificado. E Pilatos: Mas que mal fez ele? E eles gritavam ainda mais: seja crucificado” (Mt 27,23).

 

Ah, Senhor, assim procedi eu quando pequei: eu me propunha então que coisa era preferível, ou renunciar a vós ou àquele vil prazer. E eu respondia: Quero o prazer e não me incomodo de perder a Deus. Assim disse eu então, meu Senhor. Ago¬ra, porém, digo que prefiro a vossa graça a todos os prazeres e tesouros do mundo. Ó bem infinito, ó Jesus, eu vos amo acima de todos os bens: só a vós quero e nada mais.

 

Assim como foram propostos ao povo Jesus e Barrabás, do mesmo modo foi proposto ao eterno Padre quem ele queria livre, seu filho ou o pecador. O eterno Pai responde: Morra meu Filho e salve-se o pecador. É o que atesta o Apóstolo:

“Não poupou seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós” (Rm 8,32).

 

Sim, a tal ponto, diz o próprio Salvador, amou Deus o mundo que para salvá-lo entregou aos tormentos e à morte seu Filho unigênito (Jo 3,16). Por isso exclama a Igreja: Ó admirável condescendência de vossa piedade! Ó inapreciável predileção de vossa caridade! para remirdes o escravo, entregastes o Filho! (Hino Exultet). Ó santa fé de um homem que crê essas coisas, como poderá deixar de ser todo fogo para amar um Deus que ama tanto as criaturas! Oh! tivesse eu sempre diante dos olhos esta imensa caridade de Deus.

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Jesus é flagelado numa coluna

 

Capítulo VIII

 

“Pilatos então tomou Jesus e mandou açoitá-lo” (Jo 19,1).

 

Vendo Pilatos que os dois meios empregados para não condenar aquele inocente, isto é, remetê-lo a Herodes e apresentá-lo junto com Barrabás, não tinham dado resultado, escolhe um outro meio, o de castigá-lo e depois mandá-lo embora. Convoca, pois, os judeus e diz- lhes: “Apresentastes-me este homem… e interrogando-o diante de vós não achei nele culpa alguma, nem tão pouco Herodes… Portanto, depois de castigado, o soltarei” (Lc 23,14-17).

 

Vós me apresentastes este homem como delinqüente; eu, porém, não encontro nele crime algum, nem Herodes o descobriu. Contudo, para contentar-vos, eu o farei castigar e depois o porei em liberdade. Ó Deus, que injustiça! Ele o declara inocente e ainda assim lhe destina o castigo. Ó meu Jesus, vós sois inocente, mas não eu, e desde que quereis satisfazer por mim a justiça divina, não é injustiça mas é mesmo justo que sejais punido. Mas qual é o castigo a quem condenas esse inocente, ó Pilatos? A ser flagelado! Destinas, pois, a um inocente uma pena tão cruel e vergonhosa? Mas assim esse fez.

 

“Pilatos se apoderou de Jesus e o mandou flagelar” (Jo 19,1).

 

Contempla agora, minha alma, como depois dessa tão injusta sentença os carrascos se laçam com fúria sobre o manso Cordeiro e o conduzem aos gritos e alegria ao pretório e o amarram à coluna. E que faz Jesus? Ele, todo humilde e submisso, aceita por nossos pecados aquele tormento tão doloroso e ignominioso. Eis como já se armam com os azorragues e, dado o sinal, levantam o braço e começam a flagelar de todos os lados aquele corpo sacrossanto. Ó carrascos, vós vos enganastes, não é ele o réu, sou eu quem merece esses golpes. Aquele corpo virginal aparece ao princípio todo lívido e em seguida começa a jorrar sangue de todas as partes. E tendo os carnífices dilacerado todo o seu corpo, continuam impiedosamente a golpear as feridas e ajuntar dores a dores.

 

“E sobre a dor das minhas chagas acrescentaram novas chagas” (Sl 68,27).

 

Ó minha alma, serás tu também do número daqueles que com olhos indiferentes contemplam a Deus flagelado? Considera, sim, as dores, mas ainda mais o amor com que este teu doce Senhor padece esse grande tormento por ti. Certamente Jesus pensava em ti na sua flagelação. Ó Deus, se ele não tivesse sofrido mais que um golpe por amor de ti, deverias arder em amor por ele, dizendo: um Deus se compraz em ser flagelado por meu amor! Ele, porém, chega, por teus pecados, a se deixar dilacerar todas as carnes, como já o predissera Isaías: “Ele, porém, foi vulnerado por causa de nossas iniqüidades” (Is 53,5).

 

Além disso, segundo o mesmo profeta, o mais belo de todos os homens já não tem mais beleza.

 

“Não existe nele beleza nem formosura: nós o vimos e ele não tinha mais aparência” (Is 53,2).

 

Os flagelos o deformaram tanto que se não o conhece mais.

 

“O seu rosto se achava como encoberto e parecia desprezível e por isso nenhum caso fizemos dele” (Is 53,3).

 

Ficou reduzido a um estado miserável, que parecia um leproso coberto de chagas dos pés até à cabeça: “Nós o reputamos como um leproso e ferido por Deus e humilhado” (Is 53,4).

 

E por que isso? porque nosso amante Redentor quis sofrer aquelas penas que nos eram devidas:“Verdadeiramente ele foi o que tomou sobre si as nossas fraquezas e ele mesmo carregou com as nossas dores” (Is 53,4).

 

Seja para sempre louvada a vossa bondade, ó meu Jesus, que quisestes ser tão atormentado para livrar-me dos tormentos eternos. Oh! pobre e infeliz do que não vos ama, ó Deus de amor.


Mas, enquanto os carrascos o flagelam tão cruelmente, que faz nosso amável Salvador? Ele não fala, não se lamenta, não suspira; mas com toda a paciência oferece tudo a Deus para torná-lo misericordioso em nosso favor: “Como Cordeiro mudo ante o que o tosquia, assim não abriu ele a sua boca” (At 8,32).

 

Ah, meu Jesus, inocente cordeiro, esses bárbaros não vos cortam a lã, mas a pele e as carnes. Mas esse é o batismo de sangue que durante vossa vida tanto haveis desejado: “Tenho de ser batizado com um batismo e em que ansiedade me sinto eu até que ele se cumpra” (Lc 12,50).

 

Levanta-te, minha alma, e lava-te naquele sangue precioso em que está toda banhada aquela terra afortunada. E como poderei eu, meu doce Salvador, duvidar do vosso amor, vendo-vos todo chagado e dilacerado por mim? Sei que cada uma de vossas chagas é um testemunho certíssimo do afeto que me tendes. Sinto que cada uma de vossas feridas me pede amor. Bastaria uma só gota de vosso sangue para me salvar, mas vós quisestes dá-lo todo, sem reserva, para que eu sem reserva me dê todo a vós. Sim, meu Jesus, eu me dou todo a vós sem reserva, aceitai-me e ajudai-me a vos ser sempre fiel.

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Jesus é coroado de espinhos e tratado como rei de teatro

 

Capítulo IX

 

“Então os soldados do governador, conduzindo Jesus para o pretório, reuniram em torno dele toda a corte. E despindo-o cingiram-lhe um manto carmesim e tecendo uma coroa de espinhos lha puseram sobre a cabeça e na sua mão direita uma cana” (Mt 27,27-29).

 

Continuemos a considerar os bárbaros tormentos que os soldados fizeram nosso amabilíssimo Senhor sofrer.

 

Reunindo toda a corte, colocam-lhe sobre os ombros uma clâmide purpúrea (era um manto velho que os soldados usavam por cima das armas) como manto real, nas mãos uma cana figurando o cetro e na cabeça um feixe de espinhos, parodiando a coroa, mas que, como um capacete, lhe cingia toda a cabeça. E já que os espinhos com a só colocação não entravam na cabeça já tão atormentada pelos golpes dos azorragues, servem-se da cana e, cuspindo-lhe ao mesmo tempo no rosto, cravam-lhe na cabeça com toda a força a tão cruel coroa: “E cuspindo- lhe tomavam a cana e lhe batiam na cabeça” (Mt 27,30).

 

Ó espinhos, ó criaturas ingratas, que fazeis? assim atormentais o vosso Criador? Por que, porém, invectivar os espinhos? Ó pensamentos iníquos dos homens, fostes vós que atravessastes a cabeça de meu Redentor. Sim, meu Jesus, nós com nossos consentimentos perversos tecemos a vossa coroa de espinhos. Agora eu os detesto e os odeio mais do que a morte ou outro mal qualquer. E a vós me volto novamente, humilhado, ó espinhos, consagrados pelo sangue do Filho de Deus, transpassai a minha alma e fazei-a sentir sempre a dor de ter ofendido um Deus tão bom. E vós, Jesus, meu amor, que tanto padeceis para me desprender das criaturas e de mim mesmo, fazei que eu possa dizer em verdade que não sou mais meu, mas só de vós e todo vosso.

 

Ó meu Salvador afligido, ó Rei do mundo, a que vos vejo reduzido? a representar o papel de rei de teatro e dor: a ser o ludíbrio de toda a Jerusalém! O sangue ocorre a flux da cabeça transpassada do Senhor, sobre sua face e seu peito. Ó meu Jesus, eu admiro a crueldade dessa gente que não se satisfaz com vos ter esfolado dos pés até à cabeça, e agora vos atormenta com novos ultrajes e desprezos; admiro, porém, mais a vossa mansidão e o vosso amor, que tudo sofre e aceita por nós com tanta paciência.

 

“Que injuriado não injuriava, recebendo maus tratos não fazia sequer ameaças, porém se entregava àquele que o julgava injustamente” (1Pd 2,23).

 

Devia realizar-se a predição do profeta de que nosso Salvador devia ser saciado de dores e ignomínias:“Oferecerá a face ao que o ferir, fartar-se-á de opróbrios” (Lm 3,30).

 

Mas vós, soldados, não estais ainda satisfeitos? “E dobrando o joelho diante dele, motejavam dele dizendo: Eu te saúdo, rei dos judeus, e davam-lhe bofetadas” (Jo 19,3).

 

Depois de tê-lo atormentado dessa forma e vestido como rei de teatro, ajoelhavam diante dele e o escarneciam dizendo: Nós te saudamos, ó rei dos judeus, e levantando-se com risos e escárnios, davam-lhe bofetadas. Ó Deus! a cabeça sagrada de Jesus já estava toda dolorida pelas feridas feitas pelos espinhos e por isso qualquer movimento lhe causava dores mortais e toda bofetada ou pancada lhe causava um sofrimento horrendo. Ao menos tu, minha alma, reconhece-o como supremo Senhor de tudo, como ele é em verdade, e agradece-lhe e ama-o como verdadeiro rei de dor e de amor, pois é para esse fim que ele padece e sofre por ti.

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Pilatos mostra Jesus ao povo, dizendo: Ecce Homo!

 

Capítulo X

 

“Pilatos saiu para fora e disse-lhes: Ecce homo” (Jo 19,5).

 

Tendo sido Jesus novamente conduzido a Pilatos, depois de sua flagelação e coroação de espinhos, este, mirando-o e observando como estava dilacerado e desfigurado, persuadiu-se de que o povo se moveria à compaixão só com vê-lo. Por isso saiu para fora no terraço, levando consigo nosso aflito Salvador, e disse: “Ecce Homo”, como se dissesse: judeus, contentai-vos com o que já padeceu este pobre inocente, eis o homem que temíeis fazer-se vosso rei, ei-lo, contemplai a que estado está reduzido. Que temor podeis ainda ter agora que se acha num estado que não pode mais viver? Deixai-o morrer em sua casa, desde que pouco lhe resta de vida.

 

“E Jesus saiu, tendo uma coroa de espinhos e uma veste purpúrea” (Jo 19,15).

 

Olha também, minha alma, para aquele terraço e vê teu Senhor amarrado e conduzido por um carrasco: vê como está meio nu, ainda que coberto de chagas e de sangue, com as carnes dilaceradas, com aquele pedaço de púrpura que lhe serve unicamente de ludíbrio e com aquela horrenda coroa que o atormenta sem cessar. Contempla a que foi reduzido teu pastor para te encontrar a ti, ovelha desgarradas. Ah, meu Jesus, sob quantos aspectos os homens vos fazem aparecer, mas todos são de dor e vitupério. Ah, doce Redentor, vós causais compaixão até às feras, só entre os homens não encontrais piedade. Pois eis aqui o que responde essa gente:“Ao verem-no, os pontífices e ministros clamavam dizendo: Crucifica-o, crucifica-o” (Jo 19,6).

 

Mas que dirão eles no dia do juízo final, quando vos virem glorioso, sentado como juiz num trono de luz? Ó meu Jesus, também eu durante muito tempo exclamei: crucifica-o, crucifica-o, quando com os meus pecados vos ofendi. Agora, porém, me arrependo de todo o meu coração e vos amo acima de todos os bens, ó Deus de minha alma. Perdoai-me pelos merecimentos de vossa paixão e fazei que naquele dia eu vos veja aplacado e não irritado contra mim.

 

Do terraço Pilatos mostra Jesus aos judeus e diz: “Ecce Homo”. Ao mesmo tempo o Padre eterno, do alto do céu, nos convida a contemplar Jesus Cristo naquele estado e diz também: “Ecce Homo”. Ó homens, este homem que vedes tão ferido e vilipendiado é meu Filho bem amado, que por vosso amor, e para pagar por vossos pecados sofre dessa maneira. Contemplai-o, agradecei-lhe e amai-o. Meu Deus e meu Pai, vós me dizeis que eu devo contemplar o vosso Filho; eu, porém, vos peço que vós o contempleis por mim; contemplai-o e por amor desse vosso Filho tende piedade de mim.


Vendo os judeus que Pilados, apesar de seus clamores, procurava dar liberdade a Jesus (Jo 19,12), pensaram em obrigá-lo a condenar o Salvador, afirmando que, se não o fizesse, seria declarado inimigo de César:“Os judeus, porém, clamavam dizendo: se soltares a este, não és amigo de César: todo o que se faz rei contradiz a César” (Jo 19,12).

 

E de fato acertaram, porque Pilatos, temendo perder as boas graças de César, toma consigo a Jesus Cristo, assenta-se para dar a sentença e condená-lo:“Pilatos, tendo ouvido estas palavras, trouxe Jesus para fora e assentou-se no seu tribunal” (Jo 19,13).

 

Atormentado, entretanto, pelos remorsos de sua consciência, sabendo que ia condenar um inocente, volta-se novamente para os judeus: “E disse-lhes: Eis o vosso rei”. Pois então hei de condenar o vosso rei? “Eles, porém, clamavam: Tira-o, tira-o, crucifica-o” (Jo 1,14 e 15).

 

Replicaram os judeus mais enfurecidos que na primeira vez: Depressa, Pilatos, que nosso rei, que rei, que rei esse? tira-o, tira-o, retira-o de nossos olhos e faze-o morrer crucificado. Ah, meu Senhor, Verbo encarnado, viestes do céu à terra para conversar com os homens e para salvá-los e estes não podem mais nem sequer ver-vos entre eles e tanto se esforçam para dar-vos a morte e não mais vos ver. Pilatos ainda lhes resiste e replica: “Hei então de crucificar vosso rei? Os pontífices responderam: Não temos outro rei senão César” (Jo 19,15).

 

Ah, meu adorável Jesus, eles não querem reconhecer-vos por seu Senhor e afirmam não ter outro rei senão César. Eu vos confesso por meu rei e Deus e protesto que não quero outro rei para meu coração senão vós, meu Redentor. Infeliz de mim, houve um tempo em que me deixei também dominar por minhas paixões e vos expulsei de minha alma, meu rei divino. Agora quero que só vós reineis nele, ordenai e ela vos obedecerá. Dir-vos-ei com Santa Teresa:“Ó amante Jesus, que me amais acima do que eu posso compreender, fazei que minha alma vos sirva mais segundo o vosso gosto que o dela. Morra, pois, o meu eu e em mim viva um outro que não eu. Ele viva e me dê vida. Ele reine e eu seja escravo, não querendo minha alma outra liberdade”.

 

Oh, feliz a alma que pode dizer em verdade: Meu Jesus, vós sois o meu único rei, meu único bem, meu único amor.

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Jesus é condenado por Pilatos

 

Capítulo XI

 

“Então ele lho entregou para que fosse crucificado” (Jo 19,16).

 

Pilatos, depois de tantas vezes ter declarado a inocência de Jesus, e então novamente lavando suas mãos e protestando que era inocente do sangue daquele justo, sendo os judeus responsáveis por sua morte: “Mandado vir água, lavou as mãos à vista do povo, dizendo: Eu sou inocente do sangue deste justo: vós lá vos avenhais” (Mt 27,24), assim mesmo dá a sentença e o condena à morte. Ó injustiça jamais vista no mundo! O juiz condena o acusado ao mesmo tempo que o declara inocente. São Lucas escreve que Pilatos entregou Jesus nas mãos dos judeus para que fizessem com ele o que desejavam: “Entregou Jesus à sua vontade” (Lc 23,25).

 

De fato, é o que acontece quando se condena um inocente: ele é abandonado nas mãos de seus inimigos, para que o façam morrer, e morrer da maneira que for do gosto deles. Infelizes judeus, vós dissestes: “Seu sangue caia sobre nós e nossos Filhos” (Mt 27,25), e assim chamastes sobre vós o castigo e este já vos alcançou: vossa nação já sofre e sofrerá o castigo desse sangue inocente até ao fim do mundo.

 

A injusta sentença de morte é lida diante do condenado. O Senhor a ouve e inteiramente resignado ao justo decreto de seu eterno Pai; que o condena à morte da cruz, não pelos delitos que lhe imputavam falsamente os judeus, mas por nossas culpas verdadeiras, pelas quais se oferecera a satisfazer com sua morte. Pilatos diz na terra: Morra Jesus, e o Padre eterno o confirma no céu, dizendo: Morra meu Filho. E o Filho diz também: Eis-me aqui; eu obedeço, aceito a morte e a morte da cruz.

 

“Ele se humilhou, fazendo-se obediente até à morte e a morte de cruz” (Fl 2,8).

 

Meu amado Redentor, aceitastes a morte que me era devida e com vossa morte me obtivestes a vida. Eu vos agradeço, meu amor, e espero poder louvar no céu as vossas misericórdias para sempre: “Cantarei eternamente as misericórdias do Senhor”. Visto que vós, inocente, aceitastes a morte da cruz, eu, pecador, aceito-a com todas as penas que a devem acompanhar e desde já a ofereço a vosso eterno Pai, unindo-a à vossa santa morte. Pelos merecimentos de vossa morte tão dolorosa, concedei-me, ó meu Jesus, a sorte de morrer em vossa graça e ardendo em vosso santo amor.

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Jesus leva a cruz ao Calvário

 

Capítulo XII

 

Publicada a sentença, o povo infeliz explode num grito de júbilo e diz: Alegremo-nos, alegremo-nos. Jesus já foi condenado; não se perca tempo, apreste-se a cruz e que morra hoje mesmo, pois que amanhã é páscoa. E imediatamente o tomam, tiram-lhe aquele farrapo de púrpura, restituem-lhe suas vestes, para que fosse reconhecido pelo povo, segundo Santo Ambrósio, por aquele impostor (como o chamavam) que dias antes tinha sido acolhido como o Messias:“Tiraram-lhe a clâmide e o revestiram com suas vestes e o conduziram para ser crucificado” (Mt 27,31).

 

Em seguida tomam duas traves grosseiras, e formam com ela às pressas uma cruz e, com insolência, mandam-lhe que a ponha sobre os ombros e a carregue até ao lugar do suplício. Ó Deus, que barbaridade, sobrecarregar com um tal peso um homem tão atormentado e desprovido de forças!

 

Jesus abraça a cruz com amor:“E, levando sua cruz às costas, saiu para aquele lugar que se chama Calvário” (Jo 19,17).

 

A justiça sai com os condenados e entre esses vai também nosso Salvador, carregando o altar em que deve sacrificar a sua vida. Muito bem considera um piedoso autor que na paixão de Jesus Cristo foi tudo maravilhoso e excessivo como Moisés e Elias o afirmaram no Tabor:“E falavam de seu excesso, que iria realizar em Jerusalém” (Lc 9,31).

 

Quem poderia jamais crer que a vista de Jesus, reduzido a uma só chaga da cabeça aos pés, irritasse ainda mais o furor dos judeus e o desejo de vê-lo crucificado? Que tirano obrigou jamais o próprio réu a levar sobre seus ombros o instrumento de seu tormento, vendo-o exausto e consumido já de dores? É horror considerar a multidão de tormentos e ludíbrios que fizeram Jesus sofrer no pequeno espaço de sua prisão até sua morte, sucedendo uns aos outros, sem intervalo, prisão, bofetadas, escarros, zombarias, flagelos, espinhos, cravos, agonia e morte. Todos se uniram, hebreus e gentios, sacerdotes e populares, para tornarem Jesus Cristo o homem dos desprezos e das dores, como havia predito o profeta Isaías. O juiz declara o Salvador inocente, mas uma tal declaração só serve para acarretar-lhe maiores sofrimentos e vitupérios, pois se logo no princípio tivesse Pilatos condenado Jesus à morte, não lhe teriam preferido Barrabás, nem teria sido tratado como louco, nem flagelado tão cruelmente, nem coroado de espinhos.

 

Mas voltemos a considerar o espetáculo admirável do Filho de Deus, que vai morrer por aqueles mesmos homens que o conduzem à morte. Eis realizada a profecia de Jeremias: “E eu sou semelhante ao manso cordeiro, que é levado para ser vitimado” (Jr 11,19).

 

Ó cidade ingrata, assim expeles de ti com tão grande desprezo o teu Redentor, depois de receberes dele tantas graças? Ó Deus, é isso o que faz também uma alma que, depois de favorecida por Deus com tantos favores, ingrata, o expulsa pelo pecado.

 

A vista de Jesus nessa caminhada para o Calvário causava tal compaixão, que as mulheres ao vê-lo se punham a chorar e lamentar de tanta crueldade:“Seguia-o uma grande multidão de povo e de mulheres, que choravam e o lamentavam” (Lc 23,27).

 

O Redentor, porém, voltando-se para elas, diz-lhes:“Não choreis sobre mim, mas sobre vossos filhos. Porque se assim fazem com o lenho verde, que farão com o seco?” (Lc 23,27).

 

O Redentor, porém, voltando-se para elas, diz-lhes: “Não choreis sobre mim, mas sobre vossos filhos. Porque se assim fazem com o lenho verde, que farão com o seco?” (Lc 23,31).

 

Com isso queria dar a entender o grande castigo que merecem os nossos pecados, pois se ele, inocente e Filho de Deus, era assim tratado por se ter oferecido a satisfazer por nós, como deveriam ser tratados os homens por seus próprios pecados?

 

Contempla-o também tu, minha alma, vê como está todo dilacerado, coroado de espinhos, onerado com aquele pesado lenho e acompanhado por gente que lhe é contrária e que o segue injuriando-o e maldizendo-o. Ó Deus, seu corpo sagrado está todo retalhado, de tal maneira que a qualquer movimento que faz se renova a dor de todas as suas chagas. A cruz já agora o atormenta, pois ela comprime seus ombros chagados e vai encravando cada vez mais os espinhos daquela bárbara coroa! Que dores a cada passo! Jesus, porém, não a abandona. Sim, não a deixa porque por meio da cruz ele quer reinar nos corações dos homens. como predisse Isaías:“E foi posto o principado sobre o seu ombro” (Is 9,6).

 

Ah, meu Jesus, com que sentimentos de amor para comigo vós caminháveis para o Calvário, onde devíeis consumar o grande sacrifício da vossa vida!

 

Minha alma, abraça também a tua cruz por amor de Jesus, que por teu amor padece tanto. Nota como ele vai adiante com sua cruz e te convida a segui-lo com a tua:“Quem quiser vir após mim, tome sua cruz e siga-me” (Mt 16,24).

 

Sim, meu Jesus, não quero deixar-vos, quero seguir-vos até à morte. Vós, porém, pelos merecimentos de vossa subida tão dolorosa ao Calvário, dai-me a força de levar com paciência as cruzes que me enviardes. Oh! vós tornastes muito amáveis as dores e desprezos, abraçando-os com tanto amor por nós.

 

“Encontraram um homem de Cirene, chamado Simão; obrigaram- no a carregar a cruz de Jesus”. (Mt 27,32).

 

“E puseram-lhe a cruz par que a carregasse atrás de Jesus” (Lc 23,26).

 

Foi isso talvez motivado pela compaixão, desvencilhar Jesus da cruz e fazê-la carregar pelo Cirineu? Não, foi só iniqüidade e ódio. Vendo os judeus que o Senhor quase exalava sua alma a cada passo que dava, temeram que antes de chegar ao Calvário expirasse no caminho, e porque eles o queriam ver morto, mas morto crucificado, para que sua memória ficasse para sempre denegrida, obrigaram o Cirineu a carregar-lhe a cruz. Era essa sua intenção, pois, para eles, morrer crucificado era o mesmo que morrer amaldiçoado por todos: “Amaldiçoado é o que pende da cruz” (Dt 21,23), dizia sua lei.

 

Por isso, quando buscavam a morte de Jesus, não só pediam a Pilatos que o fizesse morrer, mas sempre instavam, gritando: Crucifica-o, seja crucificado! para que seu nome ficasse desprestigiado na terra e nem sequer fosse mais lembrado, conforme a profecia de Jeremias; “Exterminemo-lo da terra dos viventes e não haja mais memória de seu nome” (Jr 11,19). E foi essa a razão por que lhe tiravam a cruz dos ombros, para que chegasse vivo ao Calvário e assim tivessem o gosto de vê-lo morrer crucificado. Ah, meu Jesus desprezado, vós sois a minha esperança e todo o meu amor.

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Jesus é crucificado

 

Capítulo XIII

 

Apenas chegou Jesus ao Calvário, consumido de dores e desfalecido, dão-lhe a beber vinho misturado com fel, o que se costumava dar aos condenados à cruz para mitigar-lhes um pouco o sentimento de dor. Jesus, que queria morrer sem alívio, apenas o provou, mas não bebeu:“E deram-lhe a beber vinho misturado com fel e, tendo ele experimentado, não quis bebê-lo” (Mt 27,34).

 

Forma-se um círculo em torno de Jesus, os soldados tiram-lhe as vestes, que, estando pegadas a seu corpo todo chagado e retalhado, ao serem arranca¬das levam consigo muitos pedaços de carne, atirando-o em seguida sobre a cruz. Jesus estende suas sagradas mãos e oferece ao eterno Pai o grande sacrifício de si mesmo e suplica-lhe que o aceite por nossa salvação.

 

Eis que já tomam com fúria os pregos e os martelos e, transpassando as mãos e os pés de nosso Salvador, pregam-no na cruz. O som das marteladas ressoa por todo aquele monte e se faz ouvir também por Maria, que, acompanhando o Filho, já havia também chegado. Ó mãos sagradas, que com vosso contacto sarastes tantos enfermos, por que vos atravessam nessa cruz? Ó pés sacrossantos, que tanto vos cansastes, correndo atrás de nós, ovelhas desgarradas, por que vos encravam com tantas dores? No corpo humano, apenas se atinge um nervo, é tão aguda a dor, que isso ocasiona desmaios e espasmos mortais. Qual, pois, terá sido o tormento de Jesus, ao lhe serem traspassadas com cravos as mãos e os pés, lugares cheios de ossos e nervos? Ó meu doce Salvador, quanto vos custou a minha salvação e o desejo de conquistar o amor de um verme miserável! E eu, ingrato, tantas vezes vos neguei o meu amor e voltei-vos as costas!

 

A um dado momento, levantam a cruz com o crucificado e fazem- na cair com violência no buraco cavado na rocha. É firmada com pedras e madeira e Jesus nela pregado fica suspenso entre dois ladrões, para aí findar a vida.

 

“E o crucificaram e com ele dois outros, um de cada lado, e no meio Jesus” (Jo 19,18).

 

Isaías já o havia predito:“Ele foi posto no número dos malfeitores” (Is 53,12).

 

Na cruz estava afixada uma inscrição que dizia:“Jesus Nazareno, rei dos judeus”.

 

Queriam os sacerdotes que se mudasse tal inscrição; Pilatos, porém, não quis mudá-la, porque Deus queria que todos soubessem que os hebreus deram a morte a seu verdadeiro rei e Messias por tanto tempo esperado e desejado por eles mesmos.

 

Jesus na cruz: eis a prova do amor de um Deus. Eis a última aparição que o Verbo encarnado faz nesta terra. A primeira foi num estábulo e esta última é numa cruz: tanto uma como a outra demonstram o amor e a caridade imensa que ele tem pelos homens. São Francisco de Paula, meditando um dia no amor de Jesus Cristo em sua morte, extasiado e levado acima da terra, exclamou três vezes em alta voz: Ó Deus caridade! Ó Deus caridade! Ó Deus caridade! Com isso o Senhor queria ensinar-nos por meio do santo que nós nunca seremos capazes de compreender o amor infinito que nos demonstrou esse Deus, querendo sofrer tanto e morrer por nós. Minha alma, chega-te humilhada e enternecida àquela cruz, beija ao mesmo tempo este altar em que morre o teu amável Senhor.

 

Coloca-te debaixo de seus pés e faze que escorra sobre ti seu sangue divino e suplica o eterno Pai, mas em sentido diferente do que fizeram os judeus: Seu sangue caia sobre nós (Mt 27,25). Senhor, que esse sangue escorra sobre nós e nos lave de nossos pecados: este sangue não vos pede vingança, como pedia o sangue de Abel, mas vos pede perdão e misericórdia para nós. É o que o vosso Apóstolo me anima a esperar, quando diz: Vós, porém, vos aproximastes do Mediador do Novo Testamento, Jesus, e da aspersão do sangue que fala melhor que o de Abel (Hb 12,24).

 

Ó Deus, quando padece na cruz nosso Salvador moribundo! Cada membro está sofrendo e um não pode socorrer o outro, estando os pés e as mãos presos pelos cravos. A cada instante ele sofre dores mortais e assim pode-se dizer que naquelas três horas de agonia sofreu Jesus tantas mortes quantos os momentos que esteve pendente da cruz. Sobre esse leito não teve o Senhor um só momento de alívio ou repouso. Ora se apoiava sobre os pés, ora sobre as mãos, mas onde se apoiava crescia a dor. Aquele corpo sagrado estava suspenso sobre suas próprias chagas, pois as mãos e os pés cravados deviam sustentar o peso de todo o corpo.

 

Ó meu caro Redentor, se eu vos contemplo exteriormente, não vejo senão chagas e sangue; se observo vosso interior, vejo vosso coração todo aflito e desconsolado. Leio sobre essa cruz que vós sois rei, mas que insígnias tendes de realeza? eu não vejo outro trono a não ser esse lenho de opróbrio; não vejo outra púrpura a não ser vossa carne ensangüentada e dilacerada; não vejo outra coroa além desse feixe de espinhos que tanto vos atormenta. Ah, sim, tudo vos proclama rei, não de honra, mas de amor: essa cruz, esse sangue, esses cravos e essa coroa são incontestavelmente insígnias de amor.


Assim Jesus na sua cruz não procura tanto a nossa compaixão, como o nosso afeto. E se pede compaixão, pede-a unicamente para que ela nos induza a amá-lo. Ele merece já por sua bondade todo o nosso amor, mas agora procura ser amado ao menos por compaixão. Ah, meu Jesus, tivestes muita razão de afirmar, antes da vossa paixão, que uma vez levantado na cruz, havíeis de atrair para vós todos os corações.

 

“Quando eu for exaltado atrairei tudo para mim” (Jo 12,32).

 

Oh! quantas setas de fogo enviais aos nossos corações desse trono de amor! Oh! quantas almas felizes atraístes a vós dessa cruz, livrando-as das fauces do inferno. Permiti-me, pois, dizer-vos: Com razão, Senhor, vos colocaram no meio de dois ladrões, pois vós com vosso amor haveis roubado a Lúcifer tantas almas que por justiça lhe pertenciam por causa de seus pecados. E eu espero ser uma destas. Ó chagas de meu Jesus, ó belas fornalhas de amor, recebei-me no meio de vós, para me abrasar, não já no fogo do inferno por mim merecido, mas nas santas chagas de amor daquele Deus que por mim quis morrer consumido de tormentos.

 

Os carrascos, depois de haverem crucificado a Jesus, dividem entre si as suas vestes, segundo a profecia de Davi: “Repartiram entre si os meus vestidos e lançaram sorte sobre a minha túnica” (Sl 21,19) e, assentando-se todos, esperam por sua morte. Minha alma, assenta-te aos pés daquela cruz e debaixo de sua sombra de salvação repousa durante tua vida inteira, a fim de que possas dizer com a esposa sagrada:“Assentei-me à sombra daquele que eu tanto havia desejado” (Ct 2,3).

 

Oh! que repouso encantador é o que encontram as almas amantes de Deus junto a Jesus crucificado, no meio dos tumultos do mundo, das tentações do inferno e dos temores dos juízos divinos!

 

Estando Jesus em agonia, com os membros doloridos e com o coração desolado e triste, procurava quem o consolasse. Mas, ó meu Redentor, não se encontra alguém que vos console? Se ao menos houvesse alguém que se compadecesse de vós e com lágrimas acompanhasse vossa agonia tão atroz! Mas, ó tristeza, vejo que uns vos injuriam, outros vos encarnecem, outros ainda blasfemam contra vós. Estes dizem:“Se és o Filho de Deus, desce da cruz” (Mt 27,40).

 

Aqueles:“Ó tu, que destróis o templo de Deus… salva-te a ti mesmo” (Mc 15,29-30).

 

E outros:“Salvou a outros e não pode salvar-se a si mesmo” (Mt 27,42).

 

Senhor, que condenado se viu jamais tão coberto de injúrias e opróbrios no momento de sua morte no patíbulo infame?

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Palavras de Jesus na cruz

 

Capítulo XIV

 

Jesus, porém, que faz, que diz, vendo-se o objeto de tantos ultrajes? Suplica por aqueles que assim o maltratam:“Pai, perdoai-lhes, pois não sabem o que fazem” (Lc 23,34).

 

Jesus orou então também por nós, pecadores. Por isso, voltados para o Padre eterno, digamos com confiança: Ó Pai, ouvi a voz deste Filho querido que vos suplica que vos perdoeis. Um tal perdão é sem dúvida grande misericórdia com relação a nós, que não o merecíamos, mas com relação a Jesus Cristo, que nos satisfez superabundantemente por nossos pecados, é justiça. Vós estais obrigado por seus merecimentos a perdoar e a receber na vossa graça quem se arrepende das ofensas que vos fez. Eu me arrependo, ó meu Pai, de todo o meu coração, de vos haver ofendido e em nome desse vosso Filho os peço o perdão. Perdoai-me e recebei-me na vossa graça.

 

“Senhor, lembrai-vos de mim quando entrardes no vosso reino” (Lc 23,42).

 

Assim foi que se dirigiu o bom ladrão a Jesus agonizante, que lhe respondeu:“Em verdade eu te afirmo, que hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43).

 

Assim se cumpriu o que Deus já havia dito por Ezequiel, que, quando um pecador se arrepende de suas culpas, Deus lhe perdoa e se esquece das ofensas que lhe foram feitas:“Se, porém, o ímpio fizer penitência… não me recordarei mais de todas as suas iniqüidades” (Ez 18,21).

 

Ó caridade imensa, ó bondade infinita de meu Deus, quem deixará de vos amar? Sim, meu Jesus, esquecei- vos das injúrias que vos fiz e lembrai-vos da morte tão cruel que por mim sofrestes e por ela dai-me o vosso reino na outra vida e na presente fazei reinar em mim o vosso santo amor. Unicamente o vosso amor domine no meu coração e seja ele o meu único Senhor, meu único desejo, meu único amor. Feliz ladrão, que mereceste ser o companheiro paciente da morte de Jesus! Feliz de mim, ó meu Jesus, se tiver a sorte de morrer amando-vos e unindo a minha morte à vossa santa morte.

 

“Estava, porém, ao pé da cruz de Jesus, sua Mãe” (Jo 19,25).

 

Considera, minha alma, ao pé da cruz, Maria, sua Mãe, traspassada de dores e com os olhos fixos no amado e inocente Filho, contemplando as crudelíssimas dores externas e internas no meio das quais ele morre. Ela está toda resignada e em paz, oferecendo ao eterno Pai a morte do Filho por nossa salvação. Mas muito a afligem a compaixão e o amor. Ó Deus, quem não se compadeceria de uma mãe que se encontrasse junto ao patíbulo do filho que lhe está morrendo diante dos olhos? E, então, se considerarmos quem seja essa Mãe e quem esse Filho! Maria amava esse Filho imensamente mais do que todas as mães amam a seus filhos.

 

Ela amava Jesus por ser ao mesmo tempo seu Filho e seu Deus: Filho sumamente amável, incomparavelmente belo e santo, Filho que lhe fora sempre respeitoso e obediente, Filho que tanto a amara e que desde a eternidade a escolhera por mãe. E essa mãe foi quem teve de ver morrer de dores um tal filho, diante de seus olhos, naquele lenho infame, sem poder procurar-lhe o menor alívio e até aumentando com sua presença o seu tormento, pois a via padecer assim por seu amor. Ó Maria, pelas dores que sofrestes na morte de Jesus, tende piedade de mim e recomendai-me a vosso Filho. Ouvi como ele, na pessoa de S. João, me recomenda a vós:“Mulher, eis aí teu Filho” (Jo 19,26).

 

“E perto da hora nona, clamou Jesus em alta voz, dizendo: Meu Deus, meu Deus, por que me desamparastes?” (Mt 27,46).

 

Jesus agonizando na cruz, com o corpo estarrecido de dor e o espírito inundado de aflição (pois que aquela tristeza que o assaltou no horto o acompanhou até ao último suspiro de sua vida) procura alguém que o console, mas não encontra ninguém, como já o predissera Davi:“Esperei alguém que me consolasse e não o encontrei” (Sl 68,21).

 

Olha para sua Mãe e esta não o consola, antes mais o aflige com sua presença. Olha em redor e vê que todos se mostram como seus inimigos. Vendo-se assim privado de todo o conforto, volta-se para seu eterno Pai a pedir-lhe alívio. Vendo-o, porém, o Pai coberto com todos os pecados dos homens, por quem ele estava na cruz a satisfazer sua justiça divina, também o abandona a uma morte de pura dor. E foi então que Jesus gritou, para exprimir a veemência de sua pena, dizendo: Meu Deus, por que até vós me abandonais? A morte de Jesus foi, pois, a morte mais atroz que a de todos os mártires, pois que foi uma morte inteiramente desolada e privada de todo o alívio.

 

Mas, ó meu Jesus, se vos oferecestes espontaneamente a uma morte tão dura, por que então vos lamentais? Ah, eu vos compreendo, vós vos lamentais para nos fazer compreender a pena excessiva com que morreis e nos dar ao mesmo tempo ânimo para confiar e nos resignarmos no tempo em que nos virmos desolados e privados da assistência sensível da graça divina.

 

Meu doce Redentor, esse vosso abandono me faz esperar que Deus não me abandonará, apesar de tê-lo traído tantas vezes. Ó meu Jesus, como pude viver tanto tempo esquecido de vós? Agradeço- vos por vos não terdes esquecido de mim. Suplico-vos que me façais recordar sempre da morte cruel que sofrestes por meu amor, para que eu não me esqueça mais de vós e do amor que me consagraste.

 

Sabendo, entretanto, o Salvador que seu sacrifício já estava consumado, disse que tinha sede e os soldados puseram-lhe nos lábios uma esponja embebida em vinagre:“Em seguida, sabendo Jesus que tudo estava consumado, para se cumprir ainda a Escritura, disse: Tenho sede… Eles lhe chegaram à boca uma esponja ensopada em vinagre” (Jo 19,28).

 

A Escritura que devia cumprir-se era a profecia de Davi:“E na minha sede me propinaram vinagre” (Sl 68,22).

 

Mas, Senhor, vós vos queixais de tantas dores que vos arrebatam a vida, e vos lamentais da sede? Ah, a sede de Jesus era diferente da que passamos. A sede que ele tem é o desejo de ser amado pelas almas pelas quais morre. Logo, ó Jesus meu, vós tendes sede de mim, ver-me miserável, e eu não terei sede de vós, bem infinito? Ah, sim, eu vos quero, eu vos amo e desejo agradar-vos em tudo. Ajudai-me, Senhor, a expelir de meu coração todos os desejos terrenos e fazei que em mim reine o único desejo de agradar-vos e fazer a vossa vontade. Ó santa vontade de Deus, vós que sois a bela fonte que saciais as almas imortais, saciai-me também a sede o fito de todos os meus pensamentos e de todos os meus afetos.

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Morte de Jesus

 

Capítulo XV

 

Avizinha-se, porém, o fim da vida de nosso amável Redentor. Minha alma, contempla esses olhos que se obscurecem, essa bela face que empalidece, esse coração que palpita lentamente, esse sagrado corpo que vai se tornando presa de morte.

 

“Tendo, Jesus experimentado o vinagre, disse: Tudo está consumado”. (Jo 19,30).

 

Estando Jesus para expirar, pôs diante todos os sofrimentos de sua vida, pobreza, suores, penas e injúrias suportadas e, oferecendo tudo novamente a seu terno Pai, disse: Tudo está cumprido, tudo está realizado. Realizou-se tudo o que fora predito de mim pelos profetas e está consumado inteiramente o sacrifício que Deus espera para perdoar o mundo, e a justiça divina já está plenamente satisfeita. Tudo está consumado, disse Jesus voltado para seu Pai; tudo está consumado, disse ao mesmo tempo, voltado para nós, como se afirmasse: Ó homens, acabei de fazer tudo que eu podia fazer para salvar-vos e conquistar o vosso amor; fiz o que me competia, fazei agora o que vos compete: amai-me e não desdenheis amar um Deus que chegou a morrer por vós. Ah, meu Salvador, pudesse também eu dizer no momento de minha morte, ao menos no referente à vida que me resta: tudo está consumado: Senhor, eu cumpri com a vossa vontade, eu vos obedeci em tudo. Dai-me força, meu Jesus, pois eu espero e proponho realizar tudo com o vosso auxílio.

 

“E clamando com voz forte, Jesus disse: Pai, nas tuas mãos encomendo o meu espírito” (Lc 23,46).

 

Foi essa a última palavra que Jesus disse na cruz. Vendo que sua alma estava prestar a separar-se de seu corpo dilacerado, disse todo resignado na vontade divina e com confiança de Filho:“Pai, eu vos recomendo o meu espírito, como se dissesse: Meu Pai, eu não tenho vontade própria, não quero nem viver nem morrer; se vos apraz que eu continue a padecer nesta cruz, eis-me aqui, estou pronto; nas vossas mãos entrego o meu espírito, fazei de mim o que vos aprouver”.

 

Oh! se assim disséssemos também, quando estamos sobre a cruz, e nos deixássemos guiar em tudo pelo beneplácito do Senhor! É este, segundo São Francisco de Sales, aquele abandono em Deus que constitui toda a nossa perfeição. É isso o que devemos fazer, principalmente no momento da morte, mas, para fazê-lo bem, então, é preciso fazê-lo continuamente durante toda a vida. Sim, meu Jesus, nas vossas mãos entrego a minha vida e a minha morte; abandono-me inteiramente a vós e desde já vos recomendo no fim de minha vida a minha alma: acolhei-a nas vossa santas chagas como vosso Pai acolheu vosso espírito quando morrestes na cruz.

 

Mas eis que Jesus expira. Vinde, anjos do céu, vinde assistir à morte de vosso Deus. E vós, ó Mãe das dores, Maria, chegai-vos mais à cruz, levantai os olhos para vosso Filho e olhai-o mais atentamente, pois está prestes a expirar. Eis que o Redentor já chama a morte e lhe dá licença para se apoderar dele: Vem, ó morte, diz-lhe, depressa, faze o teu dever, tira-me a vida e salva as minhas ovelhas. A terra treme, abrem-se os sepulcros, rasga-se o véu do templo. Pela violência das dores faltam já as forças ao Senhor, falta-lhe o calor natural, falta-lhe a respiração a ele com o corpo largado abaixo, a cabeça sobre o peito, abre a boca e expira.

 

“E tendo inclinado a cabeça, entregou seu espírito” (Jo 19,30).

 

Sai, ó bela alma de meu Salvador, sai e vem abrir-nos o paraíso até agora fechado para nós; vai apresentar-te à majestade divina e impetrar-nos o perdão e a salvação. O povo alvoroçado em volta de Jesus, por causa do grande brado com que havia proferido as últimas palavras, contempla-o com atenção, em silêncio, vê-o expirar e, observando que não faz mais movimento, exclama: Morreu, morreu. Assim ouve Maria todos falarem e ela também diz: Morreu meu Filho!

 

Morreu! Ó Deus, quem morreu? O autor da vida, o Unigênito de Deus, o Senhor do mundo. Ó morte, que causastes a admiração do céu e da natureza. Um Deus morrer por suas criaturas! Ó caridade infinita! Um Deus sacrificar-se todo, seus prazeres, sua honra, seu sangue, sua vida, por quem? Por criaturas ingratas, e morrer num mar de dores e de desprezos para pagar as nossas culpas.

 

Minha alma, levanta os olhos e contempla esse homem crucificado. Contempla esse cordeiro divino já sacrificado nesse altar de dores, reflete que ele é o Filho bem amado do Padre eterno e que ele morreu pelo amor que te consagrava. Vê como tem os braços estendidos para acolher-te, a cabeça inclinada para dar-te o beijo de paz, o peito aberto para receber-te. Que dizes? Não merece ser amado um Deus tão bom e tão amoroso? Ouve o que te diz o teu Senhor de sua cruz: Filho, vê se há no mundo quem te haja amado mais do que eu, teu Deus. Ah, meu Deus e meu Redentor, morrestes, pois, e suportastes a mais infame e dolorosa das mortes. E por quê? Para conquistar o meu amor.

 

Como, porém, poderá o amor de uma criatura compensar o amor de seu Criador morto por ela? Ó meu adorado Jesus, ó amor de minha alma, como poderei amar outra coisa, depois de vos saber morto de dores nessa cruz, para pagar pelos meus pecados e salvar-me? Como poderei ver-nos morto e pendente desse lenho e não vos amar com todas as minhas forças? Poderei pensar que minhas culpas vos reduziram a esse estado e não chorar sempre com suma dor as ofensas cometidas contra vós?


Ó Deus, se o mais vil dos homens tivesse padecido por mim o que sofreu Jesus Cristo, se eu visse um homem dilacerado pelos açoites, pregado a uma cruz e feito o ludíbrio do povo para me salvar a vida, poderia recordar-me disso sem me enternecer? E se me apresentassem seu retrato, morrendo na cruz, poderia eu olhá-lo com indiferença e deixar de exclamar: Oh! este infeliz morreu assim atormentado por meu amor; se não me tivesse amado, não teria padeci¬do a morte. Oh! quantos cristãos possuem um belo crucifixo no seu quarto, mas unicamente como um belo ornamento: louvam a obra e a expressão da dor, mas seu coração nada ou pouco sente, como se não fosse a imagem do Verbo encarnado, mas de um estranho e desconhecido.

 

Ah, meu Jesus, não permitais que eu seja um desses. Recordai- vos que prometestes atrair a vós todos os corações, quando fôsseis suspenso na cruz. Eis o meu coração, que, enternecido coma vossa morte, não quer resistir mais aos vossos convites; atraí-o, pois, todo inteiro ao vosso amor. Vós morrestes por mim e eu não quero viver senão para vós. Ó dores de Jesus, ó ignomínias de Jesus, ó morte de Jesus, ó amor de Jesus, fixai-vos em meu coração e aí permaneça sempre a vossa doce memória, para ferir-me continuamente e inflamar-me de amor.

 

Ó Pai eterno, vede Jesus morto por mim e, pelos merecimentos desse Filho, usai de misericórdia comigo. Minha alma, não percas a confiança por causa dos delitos cometidos contra Deus: esse Pai é o mesmo que o deu ao mundo para nossa salvação; e esse Filho é o mesmíssimo que voluntariamente se ofereceu a pagar por nossos pecados.

 

Ah, meu Jesus, desde que vós não vos perdoastes para perdoar a mim, olhai-me com aquele mesmo afeto com que me olhastes uma vez quando agonizáveis na cruz. Olhai-me e iluminai-me, perdoai-me especialmente as ingratidões que vos mostrei no passado, pensando tão pouco na vossa paixão e no amor que nela me mostrastes. Agradeço-vos a luz que me concedeis, fazendo-me conhecer, por meio de vossas chagas e membros lacerados, como por meio de outros tantos degraus, o terno afeto que me tendes.

 

Infeliz de mim se, depois dessa luz, eu deixasse de amar-vos ou amasse outra coisa afora vós. Morra eu por amor de vosso amor, que por amor de meu amor vos dignastes morrer, vos direi com São Francisco de Assis. Ó coração aberto de meu Redentor, ó morada bem- aventurada das almas amantes, não vos dedigneis de receber também a minha alma. Ó Maria, ó Mãe das dores, recomendai-me a vosso Filho, que tendes morto entre vossos braços. Contemplai suas carnes dilaceradas, contemplai seu sangue divino derramado por mim e concluí daí quanto lhe é agradável que vós lhe recomendeis a minha salvação. A minha salvação é amá-lo e vós deveis alcançar-me este amor, mas um grande amor, um amor eterno.

 

São Francisco de Sales, falando daquele dito de S. Paulo: A caridade de Cristo nos impele, diz:“Sendo do nosso conhecimento que Jesus, verdadeiro Deus, nos amou até sofrer por nós a morte da cruz, não é isso ter os nossos corações sob uma prensa e sentir comprimi-los com violência para espremer deles o amor com força tanto maior, quanto ela é mais amável?”

 

O monte Calvário, segundo ele, é o monte dos amantes. E ajunta:“Ah, por que não nos lançamos sobre Jesus crucificado, para morrer na cruz com ele, que quis morrer por amor de nós? Eu o prenderei, devemos dizer, e não o abandonarei jamais; morreria com ele e me abrasarei nas chamas de seu amor. Um só fogo consumirá esse divino Criador e a sua miserável criatura. O meu Jesus se dá todo a mim e eu me dou todo a ele. Eu viverei e morrerei sobre seu peito; nem a morte nem a vida me separarão jamais dele. Ó amor eterno, minha alma vos busca e vos elege eternamente. Vinde, Espírito Santo, e inflamai os nossos corações com o vosso amor. Ou amar ou morrer. Morrer a todo outro amor para viver do de Jesus. Ó Salvador de nossas almas, fazei que cantemos eternamente: Viva Jesus. Eu amo Jesus. Viva Jesus, que eu amo. Amo Jesus, que vive nos séculos dos séculos”.

 

Concluamos, dizendo: Ó Cordeiro divino, que vos sacrificastes por nossa salvação! Ó vítima de amor, que fostes consumida de dores sobre a cruz! Oh! soubesse eu amar-vos como vós o mereceis. Oh! pudesse eu morrer por vós, como vós morrestes por mim! Eu, com os meus pecados, vos causei sofrimentos durante toda a vossa vida; fazei que eu vos agrade no resto de minha vida, vivendo só para vós, meu amor, meu tudo. Ó Maria, minha Mãe, vós sois a minha esperança; obtende-me a graça de amar a Jesus.

 

Fonte: Livro A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. (Santo Afonso Maria de Ligório.)