Sétimas Moradas
Capítulo 1
Mostra as imensas graças que Deus faz às almas que entram nas sétimas moradas. Trata da diferença entre alma e espírito, embora ambos sejam uma só coisa. Há verdades dignas de se ter em conta.
1. Pode parecer, irmãs, que, como falei tanto deste caminho espiritual, não haja mais nada a dizer. Seria muito desatino pensar isso, pois, se a glória de Deus não tem limite, tampouco as suas obras. Quem pode contar suas misericórdias e grandezas? É impossível. Portanto não se admirem do que disse e ainda vou dizer, pois é tudo uma pequena parte daquilo que há para contar de Deus. Ele nos fez imensa misericórdia, revelando tais coisas à pessoa de quem tenho lhes falado, pois, quanto mais soubermos acerca de como se comunica às criaturas, mais louvaremos sua grandeza e mais nos esforçaremos para não ter em pouca conta as almas com as quais o Senhor tanto se deleita.
Cada uma de nós tem alma, mas como não sabemos apreciar devidamente a sua dignidade de criatura feita à imagem de Deus, não compreendemos os imensos segredos que ela encerra. Rogo a Sua Majestade que mova a minha pena, se for sua vontade, e me inspire a dizer-lhes algo do muito que há para contar das coisas que Deus mostra àqueles que introduz nesta morada. Tenho suplicado muito a Sua Majestade. Ele sabe que meu desejo é revelar as suas misericórdias e que o seu nome seja mais louvado e glorificado.
2. Espero, não por mim, mas por vocês, irmãs, que ele me conceda essa graça e que vocês entendam o quanto importa que este Esposo não deixe de celebrar o matrimônio espiritual com suas almas por culpa de vocês, pois essa graça traz grandes benefícios, como verão.
Oh, grande Deus, uma criatura tão miserável como eu treme ao ocupar-se de coisa que não lhe pertence e não merece entender! Estou em grande embaraço, pensando se não seria melhor acabar em poucas palavras esta morada, porque vocês poderão supor que eu a conheço por experiência própria. Sabendo quem sou, isso seria terrível e grandíssima vergonha para mim. Por outro lado, sinto que deixar de mostrá-la seria ceder à tentação e à fraqueza, embora vocês possam realmente fazer maus juízos como esse.
Que Deus seja louvado e conhecido um pouquinho mais. E grite contra mim o mundo inteiro. Tanto mais que talvez eu já esteja morta quando vocês lerem isto. Seja bendito Aquele que vive e viverá para sempre, amém.
3. Quando Nosso Senhor quer mostrar a compaixão que sente por essa alma que tem padecido tanto por desejá-lo (a quem espiritualmente já considera como sua esposa, antes mesmo de se consumar o matrimônio espiritual), ele a introduz em sua morada que é esta sétima. Acredito que, assim como há no céu, na alma também deve haver uma mansão, ou, digamos, outro céu, onde habita apenas Sua Majestade.
É muito importante, irmãs, entendermos que a alma não é uma coisa escura. Já que não podemos vê-la, frequentemente parecerá que dentro dela há alguma escuridão, como se não houvesse ali uma luz tão brilhante como o Sol que temos neste mundo. Confesso que a alma que perdeu o estado de graça é assim mesmo. Não por falta do Sol de Justiça que continua no seu interior dando-lhe o ser, mas sim porque ela não se encontra em condição de receber a sua luz, como creio ter dito nas primeiras moradas.
Certa pessoa tinha compreendido que essas almas desventuradas estão como que num cárcere escuro, de pés e mãos atados, cegas e mudas, impossibilitadas de fazer nenhum bem que lhes permita merecer a graça. Devemos nos compadecer delas e lembrar que, há algum tempo, nós mesmas estávamos assim e que o Senhor também pode ter misericórdia delas.
4. Tenhamos, irmãs, particular zelo de Lhe suplicar pelos que estão em pecado mortal e não nos descuidemos disso, pois é grandíssima caridade. Muito maior do que se socorrêssemos um cristão preso a um poste, de mãos atadas por uma grossa corrente e morrendo de fome, não por lhe faltar comida, pois tem diante de si finos manjares, mas por não poder alcançá-los e levá-los à boca. Sente imensa amargura e vê que vai expirar, não para a morte que conhecemos aqui, e sim para a morte eterna. Não seria muita crueldade de nossa parte não levar à sua boca qualquer coisa de comer? E se, atendendo nossas orações, lhe tirassem as correntes? Vocês já podem ver quanto bem podemos fazer assim. Pelo amor de Deus, lembrem-se sempre dessas almas em suas orações.
5. Mas não é delas que eu quero falar agora. Tratemos das almas que, por misericórdia de Deus, já fizeram penitência de seus pecados, estão em estado de graça e, portanto, já não se encontram sitiadas e limitadas como aquelas outras. A alma é um vasto mundo interior onde cabem tantas e tão lindas moradas como as que vocês viram. Isso porque dentro dela há uma morada para o próprio Deus. Quando Sua Majestade quer lhe conceder a graça desse divino matrimônio, faz primeiro que ela entre nesta Sua morada.
Desta vez, porém, Sua Majestade não quer que seja como antes, quando a introduziu aqui (por meio daqueles arrebatamentos que já descrevi) para uni-la consigo, segundo creio. É o que ocorre na oração de união que mencionei, ainda que aí a alma não perceba, tanto como aqui nesta morada, que foi chamada para entrar em seu centro, mas supõe que entrou apenas na parte superior de si mesma. Enfim, isso pouco importa. De todo modo, na oração de união, o Senhor a une consigo, mas a fazendo cega e muda, como São Paulo em sua conversão, e a impedindo de sentir a graça que goza. O grande deleite que a alma sente naquele arrebatamento é ver-se junto de Deus. Mas logo ela perde os sentidos e não vê mais nada.
6. Aqui, porém, é diferente. O nosso bom Deus quer tirar-lhe as escamas dos olhos para que ela veja e entenda algo da graça que lhe faz, embora seja de uma maneira extraordinária.
Introduzida nesta morada por visão intelectual, a Santíssima Trindade se mostra (as três Pessoas), mediante certa representação da verdade, provocando uma grande comoção do espírito, como se ele fosse tocado por uma nuvem de fortíssima claridade. Por meio de uma revelação admirável, a alma entende com grandíssimo acerto que essas três Pessoas distintas são uma só substância, um só poder, um só saber e um só Deus. Desse modo, aquilo que sabemos pela fé, ali a alma compreende, podemos dizer, por meio dessa visão, ainda que seja diferente da visão dos olhos do corpo, porque não é visão imaginária. As três Pessoas se comunicam com ela e a fazem entender aquelas palavras do Senhor no Evangelho segundo as quais Ele, e o Pai, e o Espírito Santo viriam morar com a alma que o ama e guarda os seus mandamentos.
7. Oh, valha-me Deus! Quanta diferença entre ouvir essas palavras e acreditar nelas, por um lado, e, por outro lado, compreender, por revelação divina, como são verdadeiras!
A cada dia, essa alma se surpreende mais, sentindo que essas visões nunca se afastam dela. Vê claramente que estão no interior da sua alma. No mais interior, num lugar muito profundo que não sabe descrever porque não tem estudo. Apenas sente em si essa divina presença.
8. Tudo isso pode dar a impressão de que a alma está fora de si e, de tão embevecida, não se ocupa de mais nada. Mas não é assim, pois ela serve a Deus muito mais do que antes. E só desfruta daquela agradável companhia nos momentos de descanso.
A meu ver, se a alma não falta a Deus, ele jamais deixará de fazê-la sentir vivamente a sua presença. E ela tem grande esperança de que não será abandonada por Deus, pois, se lhe deu essa graça, não é para que a perca. Embora pense assim, ela é mais cuidadosa do que nunca para não o desagradar em nada.
9. Mas fiquem sabendo que trazer em si essa presença não é agora tão claro, ou melhor, tão evidente como foi nas primeiras vezes em que Deus lhe fez essa graça. Se fosse assim, seria impossível ocupar-se de qualquer outra coisa e até mesmo viver em sociedade. Mas, ainda que não seja com aquela nitidez inicial, a alma sempre percebe a sua presença. É como se uma pessoa estivesse cercada de gente num aposento muito iluminado, e fechassem de repente as janelas, pondo o lugar às escuras. Não é porque lhe tiraram a luz e não vê nada que vai duvidar de que todos continuam ali. É caso para perguntar se, quando reabrirem as janelas do intelecto, ela poderá recuperar a visão. Isso não está em suas mãos. Só voltará a ver quando Nosso Senhor quiser que se abra essa janela. Já lhe faz imensa misericórdia por nunca se apartar dela e querer que saiba disso tão claramente.
10. Parece que a Divina Majestade quer preparar a alma para progredir mais, com o auxílio da sua admirável companhia. Certamente ela receberá toda ajuda necessária para avançar no caminho da perfeição e perder o temor que às vezes sentia das outras graças que recebeu. Foi assim que se passou com essa pessoa de quem tenho lhes falado, que em tudo andava melhor.
Por mais que tivesse provações e ocupações, parecia-lhe que o essencial de sua alma jamais se movia desse aposento. Era como se, de certo modo, sua alma estivesse dividida. Logo depois que Deus lhe fez essa graça, ela se viu às voltas com grandes responsabilidades e se queixava da própria alma, tal como Marta se queixou de Maria (Lucas 10, 38-42). Às vezes repreendia a sua alma, acusando-a de estar sempre gozando daquela quietude a seu bel-prazer e a sobrecarregando com tantos trabalhos e ocupações que não lhe sobrava tempo para usufruir a companhia do Senhor.
11. Sei que parece desatino, filhas, mas isso realmente acontece. Mesmo sabendo que a alma é indivisível, posso lhes garantir que esse tipo de desentendimento interno é muito comum. Não estou devaneando. A visão das realidades interiores de que falei faz-nos compreender que de fato há certa distinção, e bem conhecida, entre a alma e o espírito, embora ambos sejam uma só coisa. Sabe-se que existe uma divisão muito sutil entre eles, que lhes permite às vezes operar de maneira independente entre si, conforme apraz ao Senhor. Também me parece que a alma não se confunde com as faculdades e que um e outro não são, portanto, a mesma coisa. Há em nós tantas e tão refinadas faculdades que seria muita pretensão querer enumerar todas. Lá entenderemos esses segredos, se o Senhor fizer a graça de nos levar, por sua misericórdia.
Capítulo 2
Prossegue no mesmo assunto. Trata da diferença entre noivado espiritual e matrimônio espiritual. Explica-a com refinadas comparações.
1. Tratemos agora do divino matrimônio espiritual. É verdade que não vai se realizar plenamente neste mundo, pois, enquanto vivemos, sempre há o perigo de perdermos esse enorme bem, afastando-nos de Deus.
Na primeira vez que Deus faz essa graça, Sua Majestade mostra sua sacratíssima humanidade à alma por meio de uma visão imaginária para que ela entenda bem que recebe esse dom supremo e não o ignore. Outras pessoas poderão recebê-lo de forma diferente.
A pessoa de quem falamos tinha acabado de comungar quando o Senhor se apresentou com grande resplendor, formosura e majestade, tal como se mostrou depois de ressuscitado. E lhe disse que já era tempo de ela tomar as coisas dele por suas e que ele cuidaria das coisas dela, além de outras palavras que são mais para sentir do que para dizer.
2. Pode parecer que não seja nenhuma novidade, pois, antes disso, o Senhor já tinha se mostrado assim a essa alma. Mas desta vez foi tão diferente que ela ficou muito desatinada e cheia de espanto. Primeiro, porque essa visão foi muito forte; segundo, pelas palavras que lhe disse e também porque nunca tinha experimentado outra visão no mesmo lugar do interior da sua alma onde essa se apresentou, a não ser a visão passada. Depois disso, ela entendeu que há grandíssima diferença entre todas as visões anteriores e as desta morada. Tão grande como há entre o noivado espiritual e o matrimônio espiritual, isto é, como há entre dois noivos que ainda podem se separar e dois casados que não podem mais.
3. Já expliquei que faço essas comparações porque não conheço outra melhor. Mas entendam que aqui não há sensações físicas. É como se a alma já não estivesse no corpo, mas só em espírito. Tampouco há sensações físicas no matrimônio espiritual, porque essa união secreta passa-se no lugar mais interior da alma que deve ser onde Deus está, e, a meu ver, não é preciso porta para entrar.
Disse que não é preciso porta porque me parece que tudo o que falei até aqui se dá por meio dos sentidos e faculdades da alma que são as portas que Deus atravessa para chegar a ela. A revelação da humanidade do Senhor também deve ser assim, já que é visão imaginária.
Mas o matrimônio espiritual é muito diferente, porque o Senhor aparece no centro da alma, não em visão imaginária, e sim em visão intelectual (ainda que mais refinada que as já descritas), como apareceu aos apóstolos, sem atravessar porta nenhuma, dizendo Pax vobis (“A paz esteja convosco”) (João 20, 19). É grande segredo e graça muito elevada o que Deus ali comunica à alma num instante. Ela sente grandíssimo deleite que eu não sei a que comparar. O Senhor quer lhe mostrar naquele momento a glória que há no céu, de uma maneira mais sublime que qualquer outra visão ou gosto espiritual. Não se pode dizer mais nada, senão que, tanto quanto se consegue entender, a alma ou, melhor dizendo, o espírito dessa alma torna-se uma só coisa com Deus. Posto que Ele também é espírito, Sua Majestade quer patentear o amor que tem por nós, mostrando a algumas pessoas até onde chega para que louvemos sua grandeza. Ele se une à criatura de tal maneira que, assim como os casados que já não podem se separar, não quer apartar-se dela nunca mais.
4. Por outro lado, o noivado espiritual é diferente, já que muitas vezes os noivos se separam. Embora seja união de duas pessoas, ainda podem separar-se, voltando cada qual à situação anterior. De fato, vemos ordinariamente que essa graça do Senhor passa depressa. E depois a alma fica sem a sua companhia (falo dessa maneira para que me entendam).
O matrimônio espiritual não é assim, pois a alma permanece sempre unida ao seu Deus naquele centro.
Digamos que o noivado é como duas velas que grudam uma na outra de tal modo que a cera, o pavio e a luz se tornam uma só coisa. Mas depois sempre é possível separá-las para que voltem a ser duas velas, cada qual com seu pavio e sua cera.
O matrimônio espiritual, porém, é como a chuva que cai sobre um rio, mistura-se com ele e já não se sabe o que é chuva e o que é rio. Ou como um pequeno arroio que se lança no mar e depois não consegue mais se separar dele. Ou como um aposento com duas janelas por onde penetra muita luz, e, ainda que dividida ao entrar, lá dentro se faz uma só.
5. Talvez seja isso que São Paulo quis dizer quando escreveu que “quem se une ao Senhor torna-se com ele um só espírito” (1 Coríntios 6, 17)., referindo-se a esse soberano matrimônio espiritual que pressupõe a união de Sua Majestade à alma. Também disse que Mihi vivere Christus est, mori lucrum (“Para mim, o viver é Cristo e o morrer é lucro”) (Filipenses 1, 21). Parece-me que podemos dizer o mesmo da alma, porque aqui a borboletinha de que falamos morre e com grandíssimo gozo, pois a sua vida já é Cristo.
6. Entende-se isso melhor com o passar do tempo, observando-se os efeitos que essa visão produz. Por secretas inspirações, vê-se claramente que é Deus quem dá vida à nossa alma. Muitíssimas vezes essas inspirações são tão vivas que não se pode duvidar, de jeito nenhum, pois a alma as sente com grande força, embora não saiba explicar. E a comoção é tamanha que produzem, por vezes, umas palavras deleitosas que não podem ser silenciadas, tais como: “Oh, vida da minha vida e sustento que me sustentas!” E outras desse gênero.
Daqueles peitos divinos, por onde Deus parece estar sempre sustentando a alma, saem uns raios de leite que revigora toda a gente do castelo. É como se o Senhor quisesse que, de algum modo, todos usufruíssem de tudo o que a alma goza e que do rio caudaloso, onde desaguou essa fonte pequenina, saia algumas vezes um jato daquela água para sustentar as faculdades da alma que haverão de servir a estes dois esposos no corpo.
Assim como uma pessoa distraída sente o impacto da água fria que a atinge de surpresa, assim também, e ainda mais intensamente, são percebidas essas operações. Pois, da mesma forma como sabemos que um grande jato d’água não pode nos alcançar se não houver quem o lance, também concluímos seguramente que há no interior da alma Quem dispare essas setas para dar vida a nossa vida e que há Sol no lugar de onde procede aquela grande luz que ilumina as faculdades. A alma não abandona o seu centro nem perde a paz, como já disse. O mesmo Senhor que deu a paz aos apóstolos, enquanto caminhava com eles, pode dar a ela.
7. Creio que a saudação do Senhor aos apóstolos deve ter produzido um efeito muito maior do que parece à primeira vista. Assim como quando disse à gloriosa Madalena que fosse em paz, as palavras do Senhor são em nós como obras já feitas. Deviam operar de tal modo naquelas almas predispostas que afastava delas tudo o que tinham de corporal para deixá-las como puro espírito, a fim de que pudessem se unir ao Espírito incriado. Decerto, quem se esvaziar e se desapegar de todas as criaturas por amor de Deus será totalmente preenchido por ele. Por isso, Nosso Senhor Jesus Cristo orou por seus apóstolos (não sei onde) e pediu que fossem um só com o Pai e com ele, como Jesus Cristo está no Pai e o Pai está nele. Não sei se há amor maior do que esse. Aqui podemos todos entrar, pois Sua Majestade disse: Não rogo só por eles, mas por todos aqueles que também haverão de crer em mim. E acrescentou: Eu estou neles (João 17, 20-23).
8. Oh, valha-me Deus, que palavras verdadeiras! Como as compreende a alma que as vê realizadas em si mesma nessa oração. E como as entenderíamos todas, se não fosse por nossa culpa, pois as palavras de Jesus Cristo, nosso Rei e Senhor, não podem falhar. Mas, porque nós falhamos em nos fortalecer na fé e nos desviar de tudo o que pode embaçar essa luz, não nos reconhecemos nesse espelho que contemplamos e reflete a nossa imagem.
9. Voltando ao assunto, assim como, segundo dizem, o céu empíreo onde está Nosso Senhor não se move como os demais, assim também é aqui, quando o Senhor introduz a alma nesta sua morada, isto é, no centro dela mesma. Parece que já não há aquela agitação das faculdades e da imaginação que a perturbavam e lhe tiravam a paz. Mas isso não significa que, tendo chegado ao ponto onde Deus lhe faz essa graça, a alma esteja segura de sua salvação e de não voltar a cair. Não é isso.
Toda vez que eu disser que parece que a alma está em segurança, entenda-se que é enquanto a Divina Majestade a conservar em sua mão e ela não o ofender. Mesmo depois de permanecer muitos anos nesse estado, certamente ela não se sente segura. Anda com muito mais temor do que nunca, guarda-se de qualquer pequena ofensa a Deus e sente imenso desejo de servi-lo, como direi adiante. Frequentemente sente remorso e embaraço, vendo como é pouco tudo o que pode fazer diante do muito a que está obrigada. E não é pequena cruz, senão grande penitência.
No que se refere a fazer penitência, quanto maior, mais lhe dá prazer. A verdadeira penitência para ela é quando Deus lhe tira a saúde e as forças. Ainda que noutra parte eu já tenha falado da grande aflição que isso lhe traz, aqui é muito maior, pois tudo deve lhe vir de onde está plantada a raiz. A árvore que está junto da corrente d’água tem mais frescor e dá mais fruto. Então, por que haveríamos de nos maravilhar dos desejos dessa alma? Seu verdadeiro espírito, o centro de si mesma, está em perfeita união com a água celestial de que falamos.
10. De volta ao assunto, não pensem que as faculdades, sentidos e paixões estejam sempre nessa paz; a alma sim. Nesta morada não deixa de haver tempos de guerra, de sofrimentos e fadigas. Mas geralmente não podem lhe tirar a paz nem a afastar do seu centro.
O centro da nossa alma (ou o espírito) é uma coisa muito difícil de descrever e até mesmo de crer. Temo que vocês, irmãs, possam ser tentadas a não acreditar em mim devido à minha inabilidade com as palavras. Não é fácil aceitar que a alma possa estar em paz enquanto suporta tribulações e sofrimentos. Vou tentar explicar com uma ou duas comparações. Queira Deus que eu consiga. Mas, se não, sei que digo a verdade.
11. Imaginem um rei em seu palácio e que haja muitas guerras e sofrimento em seu reino. Nem por isso ele abandona o seu posto. Aqui também é assim. Mesmo que as outras moradas sejam invadidas por feras venenosas em meio a grande confusão, e se ouça o estardalhaço que elas fazem, nenhuma se atreve a entrar nestas sétimas moradas nem consegue fazer a alma sair daqui. O tumulto da luta travada nos outros aposentos do castelo a aflige um pouco, mas não a alvoroça nem lhe tira a paz, porque as suas paixões já foram dominadas. Dessa forma, as feras têm medo de entrar aqui, prevendo que sairiam ainda mais subjugadas. Se nos dói o corpo inteiro, mas a cabeça está sã, não há razão para ela doer também.
Estou rindo dessas comparações que não me agradam, mas não sei de nenhuma outra. Pensem o que quiserem; o que disse é verdade.
Capítulo 3
Descreve os grandes efeitos que essa oração produz. É preciso examiná-los com atenção e cautela, pois são muito diferentes dos que acompanham as graças anteriores.
1. Vamos falar agora dessa borboletinha que já morreu, imensamente alegre por ter encontrado repouso e porque Cristo vive nela. Vejamos que vida leva e como é diferente da vida que tinha. Os efeitos nos mostrarão se é verdade o que disse. Até onde sei, os efeitos são estes:
2. Primeiro, um esquecimento de si mesma, como se de fato já não existisse. Todo o seu ser está de tal maneira transformado que não se reconhece mais. Não se lembra de que haverá céu para ela, nem vida, nem honra, porque está toda empenhada em procurar a Deus. Parece que as palavras de Sua Majestade produziram um efeito transformador. Realmente ele lhe pediu que cuidasse das coisas dele e disse que ele cuidaria das dela. Depois disso, ela já não teme nada que possa acontecer. Sente um estranho esquecimento de si, como se ela não fosse verdadeiramente nada de nada. Nem queria ser, a menos que pudesse de algum modo acrescentar algo, por mínimo que fosse, à glória e honra de Deus. E daria a vida por isso de muito boa vontade.
3. Não pensem, filhas, que essa alma negligencie suas necessidades, como dormir e comer, o que seria grande tormento. Ela não deixa de fazer tudo a que está obrigada em seu estado. Tratamos aqui de coisas interiores. Das exteriores, há pouco a dizer. Na verdade, esta é a sua pena: ver que suas forças nada podem. Mas tudo o que consegue realizar a serviço de Nosso Senhor não deixa de fazer por nada deste mundo.
4. O segundo efeito é uma imensa vontade de padecer. Mas essas almas não chegam a inquietar-se por isso como antes. Sentem um desejo tão extremo de que se faça nelas a vontade de Deus, que tudo o que Sua Majestade faz consideram bom. Se quiser que padeçam, que assim seja; se não, não se matam por isso, como em outros tempos.
5. Também sentem um grande gozo interior quando são perseguidas, com muito mais paz do que tinham anteriormente nessa situação. E sem nenhuma inimizade para com os que lhes fazem ou desejam mal. Ao contrário, sentem por eles especial amor, de maneira que, se os veem sofrendo alguma tribulação, sentem-no ternamente e tomariam sobre si qualquer sofrimento para livrá-los. Encomendam-nos a Deus de muito boa vontade e gostariam de perder as graças que Sua Majestade lhes dá para que eles as recebessem e não voltassem a ofender a Nosso Senhor.
6. O que mais me espanta em tudo isso é que, como vocês viram, essas almas já passaram por muitas tribulações e aflições, desejando morrer para regozijar-se com Nosso Senhor. Mas agora é tão grande a vontade de servi-lo, de que ele seja louvado por meio delas e de ajudar alguma alma, se puderem, que não só não desejam morrer, mas até querem viver muitos anos, padecendo grandíssimas provações para que o Senhor seja louvado, ainda que só um pouquinho. Mesmo se tivessem certeza de que haviam de gozar a visão de Deus quando sua alma saísse do corpo, não fariam questão de sair já. Não pensam na glória dos santos nem desejam ver-se igualmente glorificadas. A sua glória está em poder ajudar de algum modo ao Crucificado, em especial quando veem que é tão ofendido e como são poucos os que realmente zelam por Sua honra, desapegados de tudo mais.
7. É verdade que às vezes se esquecem disso e sentem um terno desejo de gozar de Deus e sair deste desterro, principalmente ao ver como é pouco tudo o que podem fazer a serviço dele. Mas logo voltam a si, lembrando-se que ele está continuamente junto delas. Com isso se contentam e oferecem a Sua Majestade o querer viver como uma oblação, a mais cara que podem lhe dar. Não sentem nenhum medo da morte. Não mais do que teriam de um suave arrebatamento. O caso é que Quem lhes dava aqueles desejos com tormento tão excessivo agora lhes dá esses. Seja para sempre bendito e louvado.
8. Enfim essas almas já não desejam nenhum agrado nem gostos espirituais, pois têm consigo o próprio Senhor. Sua Majestade é quem vive nelas agora. Certamente Sua vida foi um contínuo tormento e faz com que a nossa também seja, ao menos quanto aos desejos. No resto, sustenta-nos como fracos que somos e nos dá muito de Sua fortaleza quando vê que necessitamos dela.
Há nessas almas um grande desapego de tudo e um enorme desejo de estar sempre a sós ou ocupadas em ser úteis a alguma alma.
Nem aridez, nem tribulações interiores, mas ternura e lembrança de Nosso Senhor. Não queriam fazer outra coisa senão louvá-lo. Quando se descuidam disso, o próprio Senhor as desperta, como mencionei, de tal modo que se vê clarissimamente que aquele impulso (ou não sei que nome dar) procede do interior da alma, como expliquei quando tratei dos ímpetos.
Aqui tudo se passa com grande suavidade. Nada disso tem origem no pensamento, nem na memória, nem em qualquer tipo de habilidade humana. E é tão frequente, repete-se tantas vezes, que pode ser examinado mais de perto.
Assim como o fogo, por maior que seja, não lança a chama para baixo, mas para cima, assim também se entende que esse movimento interior procede do centro da alma e desperta as suas faculdades para louvar ao Senhor.
9. Certamente, se não houvesse outro ganho neste caminho de oração além de se compreender o especial zelo que Deus tem de se comunicar conosco e nos rogar (não me parece ser outra coisa) que nos unamos a ele, creio que seriam bem empregadas todas as tribulações que se passa para gozar desses toques do seu amor, tão suaves e penetrantes.
Isso vocês já devem ter experimentado, irmãs, porque acredito que, quando se chega à oração de união, o Senhor nos faz esse agrado, se não nos descuidamos de cumprir os seus mandamentos. Sempre que isso lhes acontecer, lembrem-se que é desta morada, no lugar interior de nossas almas onde Deus está, que vêm esses toques e louvem-No muito.
Por certo, é seu aquele recado escrito num bilhete com tanto amor. Ele só quer que vocês compreendam sua mensagem e o que lhes pede. Não permitam que nada as impeça de responder a Sua Majestade, ainda que estejam ocupadas exteriormente, ou em conversação com outras pessoas. Acontecerá muitas vezes Nosso Senhor querer fazer-lhes em público essa graça secreta. Como a resposta há de ser interior, será muito fácil oferecer-lhe uma pequena demonstração de amor, ou repetir as palavras de São Paulo: “Senhor, que queres que eu faça?”. De muitas maneiras ele lhes ensinará como agradá-lo e o momento certo. E nos fará saber que nos ouve, e quase sempre esse toque tão delicado dispõe a alma para corresponder ao seu amor com firme determinação.
10. O que há diferente nesta morada é o que já disse, ou seja, raramente sente-se aridez ou alvoroço interior, como havia nas outras moradas, de tempos em tempos. Aqui a alma está quase sempre em quietude, porque sabe que essa graça tão elevada não pode ser falsificada pelo demônio. Como já disse, os sentidos e as faculdades da alma não têm nenhuma participação aqui. Por isso, ela está certa de que é graça de Deus. Sua Majestade se revelou à alma e a introduziu consigo onde, a meu ver, o demônio não ousará entrar nem o Senhor o permitirá. Todas as mercês que Deus faz nesta morada não dependem de nenhuma colaboração da alma, a não ser o que ela já fez, entregando-se toda a ele.
11. Tudo o que o Senhor faz e ensina aqui para progresso da alma se passa com tanta quietude que me recorda a construção do templo de Salomão, em que não se ouvia nenhum ruído (1 Reis 6, 7). Neste templo de Deus, nesta sua morada, só ele e a alma se gozam em grandíssimo silêncio.
O intelecto não precisa entrar em ação. O Senhor que o criou quer sossegá-lo aqui e só permite que ele veja o que se passa por uma pequena fresta, apenas de tempos em tempos e em pequenos intervalos. Parece-me que as faculdades da alma não estão suspensas aqui, mas também não trabalham, pois estão maravilhadas.
12. Também me maravilha ver que, quando a alma chega a este ponto, cessam todos os arrebatamentos, exceto uma vez ou outra (refiro-me a perder os sentidos). Quase não há aqueles arrebatamentos com voo de espírito. Só acontecem muito raramente e em geral não mais em público, como era comum.
Antes, nas grandes festas religiosas, bastava ver uma imagem devota, ouvir um sermão, ou uma música para ela ser arrebatada. E quase não via nem ouvia mais nada. A pobre borboleta andava tão ansiosa que tudo a espantava e fazia voar. Agora, ou porque encontrou repouso, ou porque a alma tem visto tanta coisa nesta morada, ou ainda porque não sente aquela solidão que costumava sentir, nada a espanta, pois goza desta companhia. Enfim, irmãs, eu não
sei qual é a causa, mas, quando o Senhor começa a mostrar o que há nesta morada e introduz a alma aqui, tira-lhe aquela enorme fraqueza que era causa de tantos constrangimentos em público e da qual ela ainda não se libertara.
Talvez porque agora o Senhor a tenha fortalecido, dilatado e habilitado. Ou talvez porque antes Sua Majestade queria mostrar em público o que faz com essas almas em segredo, por algum motivo que só ele sabe. Seus juízos superam tudo o que podemos imaginar.
13. Esses efeitos – e todos os demais benefícios que mencionei nos graus de oração precedentes – Deus nos dá quando aproxima a alma de si. Creio que ele atende aqui a súplica de sua esposa, dando-lhe o beijo que ela pedia (Cânticos 1, 2). Aqui são dadas as águas vivas a essa corça ferida (Salmo 41, 2-3). Aqui a alma se deleita no tabernáculo de Deus (Apocalipse 21, 3-4). Aqui a pombinha que Noé enviou para ver se acabara a tempestade acha a oliveira, sinal de terra firme em meio às águas e tempestades deste mundo (Gênesis 8, 8-9).
Oh, Jesus, quem saberá todas as passagens da Escritura que deve haver para mostrar essa paz da alma! Deus meu que vedes o quanto importa, fazei que os cristãos queiram buscá-la. E, àqueles a quem a tendes dado, não lhes tireis, por vossa misericórdia. Enfim, a alma sempre viverá com esse temor até que lhe deis a verdadeira paz e a leveis aonde essa paz não pode acabar. Disse a verdadeira paz, não porque essa não seja, mas porque poderíamos voltar à primeira guerra se nos apartássemos de Deus.
14. E que sentirão essas almas, vendo-se em perigo de perder tão grande mercê? Isso as faz ainda mais cautelosas. E procuram tirar forças de sua fraqueza para não deixarem, por culpa sua, de fazer tudo o que puderem para agradar a Deus. Quanto maior é o favor recebido de Sua Majestade, tanto mais acovardadas e temerosas ficam de si mesmas.
Como essas grandezas divinas têm lhes revelado as próprias misérias e como os seus pecados se mostram ainda mais graves, muitas vezes essas almas andam de modo que não ousam sequer levantar os olhos, como o publicano (Lucas 18, 13). Outras sentem desejos de acabar com a própria vida para se verem logo em segurança. Mas mudam de ideia rapidamente, desejando viver para servi-lo, por conta do amor que lhe têm, como disse. E confiam tudo o que lhes toca à Sua misericórdia, embora, às vezes, fiquem sobressaltadas por receberem tantas graças, temendo que, assim como naufraga um navio com excesso de carga, aconteça-lhes o mesmo.
15. Posso garantir, irmãs, que não lhes falta cruz. Isso, porém, não as inquieta nem lhes tira a paz. Algumas tempestades passam tão depressa como uma onda, e a tranquilidade volta prontamente. A presença do Senhor que trazem consigo faz com que logo esqueçam tudo. Seja ele para sempre bendito e louvado por todas as suas criaturas, amém.
Capítulo 4
Finaliza explicando o que lhe parece que pretende Nosso Senhor ao conceder tão grandes graças à alma e como é necessário que Marta e Maria andem juntas. É muito proveitoso.
1. Não pensem, irmãs, que esses efeitos que venho descrevendo estejam sempre presentes nessas almas. Sempre que me lembro, uso a palavra geralmente para indicar que não. Às vezes, Nosso Senhor as deixa entregues ao seu estado natural. Então parece que todas as criaturas peçonhentas das vizinhanças e das outras moradas desse castelo reúnem-se para se vingar delas, ressentidas por conta do tempo em que não podiam atacá-las.
2. É verdade que isso não dura muito, um dia ou pouco mais. Nesse imenso alvoroço, que surge geralmente depois de alguma ocasião de pecado, vê-se o quanto a alma ganha na boa companhia do Senhor. Pois ele lhe dá uma notável inteireza para não torcer nada que seja do seu serviço e para pôr em prática suas boas determinações.
Contudo, esses ataques não a abatem. Até parece que a impelem a progredir mais. E, nem por um instante, ela se desvia de suas boas determinações. Como disse, isso acontece poucas vezes. Nosso Senhor o permite para que ela não se esqueça de sua condição humana falível e conserve a humildade. E também para que compreenda melhor tudo o que lhe deve, reconheça a grandeza da graça que recebe e louve-o.
3. Não pensem que essas almas deixem de cometer muitos erros e até de pecar, mesmo tendo grande desejo e determinação de não praticar nenhuma imperfeição, por nada deste mundo. Se forem cautelosas, não pecarão, pois certamente o Senhor deve lhes dar ajuda muito especial para isso. Refiro-me a pecados veniais, porque dos mortais, até onde podem ver, estão resguardadas, embora não inteiramente livres, pois cometerão alguns sem saber, o que será grande tormento para elas.
Também penam vendo as almas que se perdem. De certo modo, têm grande esperança de não serem dessas, mas, quando se recordam de algumas pessoas mencionadas na Sagrada Escritura, que pareciam ser favorecidas pelo Senhor (como Salomão, que tanto se comunicou com sua divina Majestade (1 Reis 11, 1-10 e 2 Reis 23, 13.)), não podem deixar de temer, como já disse. Aquela que se sentir mais segura de si, tema mais, porque “felizes os que temem o Senhor” como diz Davi (Salmo 127, 1). Que Sua Majestade nos ampare sempre. Suplicar-lhe isso para que não o ofendamos é a maior segurança que podemos ter. Seja para sempre louvado, amém.
4. Será bom explicar-lhes, irmãs, por que razão o Senhor concede tantas graças neste mundo. Examinando os efeitos que elas produzem, vocês já poderão entender, se prestarem atenção. De todo modo, quero voltar a dizer aqui para que ninguém pense que seja só para agradar a essas almas. Isso seria grande erro. Na verdade, a maior de todas as graças é quando Sua Majestade nos dá uma vida que seja imitação da que viveu o seu Filho tão amado. Estou certa de que o Senhor nos concede essas graças para fortalecer a nossa fraqueza e nos capacitar para imitá-lo no muito padecer.
5. Aqueles que mais de perto acompanhavam a Cristo Nosso Senhor foram sempre os que sofreram as maiores provações. Vejam o que passou sua gloriosa Mãe e os gloriosos apóstolos. Como vocês acham que São Paulo pôde suportar tamanhas tribulações? Por aqui podemos ver que efeitos produzem a contemplação e as visões, quando são de Nosso Senhor, e não fruto da imaginação ou engano do demônio.
Porventura São Paulo retirou-se depois de receber tais graças para se deleitar com elas, sem fazer mais nada? Não, ele não teve nem um dia de descanso, pelo que podemos entender da Escritura. Tampouco devia ter de noite, pois era quando ganhava o seu sustento. Gosto muito do que se conta de São Pedro, que ia fugindo do cárcere quando Nosso Senhor lhe apareceu e disse que estava a caminho de Roma para ser crucificado outra vez. Nunca deixo de sentir particular consolo quando rezamos essa festa e se lê tal passagem. Que efeito produziu essa graça do Senhor sobre São Pedro? Que fez ele? Foi logo para a morte. É grande misericórdia do Senhor encontrar quem a receba.
6. Oh, minhas irmãs, que esquecimento deve ter de seu descanso, que pouca importância deve dar à própria honra e com que firmeza deve renunciar à aprovação do mundo a alma onde o Senhor está presente de maneira tão especial! Se ela permanece sempre com ele, como é o caso, pouco deve lembrar-se de si. Toda a sua mente há de ocupar-se em contentar-lhe cada vez mais e em descobrir como demonstrar o amor que lhe tem. A oração é para isso, minhas filhas. Para isto serve esse matrimônio espiritual: para que nasçam sempre obras, obras.
7. Essa é a maior prova de que são obra e graça de Deus, como já disse. Pouco me vale ficar recolhida a sós, adorando a Nosso Senhor, propondo e prometendo fazer mil maravilhas a seu serviço, se, saindo dali, na primeira ocasião, faço tudo ao contrário. Fiz mal em dizer pouco me vale, pois tudo o que fazemos em companhia de Deus é muito proveitoso, mesmo que não tenhamos forças para cumprir logo nossos propósitos. Mais cedo ou mais tarde, Sua Majestade nos dará ânimo para isso. Talvez até mesmo quando mais nos pesar, como acontece muitas vezes. Quando vê a alma muito covarde, dá-lhe um trabalho muito grande, contrário à sua vontade e faz que ela saia com lucro. Então, como a alma compreende isso, diminui o medo que a impedia de se oferecer a ele.
Volto a dizer: quando afirmei que pouco me vale ficar recolhida a sós, adorando a Nosso Senhor, quis mostrar que é muito mais proveitoso quando nossas palavras e ações estão unidas e a serviço do Senhor. Quem não puder fazer isso desde já, que o faça aos poucos, e vá dobrando a própria vontade. Assim poderá colher os frutos da oração. Vivendo retiradas em nossos mosteiros, não lhes faltarão oportunidades.
8. Notem que isso é muito mais importante do que eu saberei recomendar. Ponham os olhos no Crucificado, e tudo o que vocês fizerem parecerá pouco. Se Sua Majestade nos mostrou o seu amor com tão espantosas obras e sofrimentos, como querem contentar-lhe só com palavras? Vocês sabem realmente o que é ser espiritual? É fazerem-se escravas de Deus para que, marcadas com o seu ferrete que é a cruz (pois já lhe deram a sua liberdade), possa vendê-las como escravas do mundo inteiro, como ele foi. E assim o Senhor não lhes faz nenhuma ofensa, mas grande graça. Se ainda não se determinaram a isso, posso lhes garantir que terão muito lucro se o fizerem.
A humildade é o fundamento de todo esse edifício, como já disse. Se não há humildade verdadeira, para seu próprio bem, o Senhor não as elevará muito alto, a fim de que vocês não deem com tudo por terra. Então, irmãs, se querem construir sólidos alicerces, cada uma trate de ser a menor de todas e escrava das outras, procurando servir-lhes e dar-lhes contentamento. Desse modo, tudo o que fizerem farão mais para si mesmas do que para as outras. Será como assentar firmemente as pedras de base para que esse castelo não venha a ruir.
9. Mas, repito, não se pode construir os alicerces desse castelo só com oração e contemplação. Se vocês não procuram aprimorar e exercitar as virtudes, sempre ficarão anãs. Nesse caso, queira Deus que não lhes aconteça algo pior do que apenas parar de crescer, porque vocês já sabem que quem não cresce decresce. Acho impossível que o amor, se realmente é amor, permita-se ficar ocioso.
10. Não estou dizendo que o trabalho árduo seja para os principiantes e que já podem descansar os que chegaram a estas sétimas moradas. Como disse, o sossego que essas almas mais adiantadas têm no interior é para compensar o pouco que têm (nem querem ter) no exterior. Vocês acham que aquelas inspirações de que falei, ou, melhor dizendo, aquelas aspirações, servem para que? E aqueles agrados que a alma envia do centro interior à gente de cima e às outras moradas do castelo? É para que se deitem e durmam? Não, não e não! A alma lhes faz guerra dali para que as faculdades, os sentidos e todo o corpo não estejam ociosos.
Mais do que lhes fazia quando andava junto deles padecendo. Então ela não entendia o ganho imenso que há nas tribulações, que foram os meios de que Deus se serviu para trazê-la até as sétimas moradas. Nem compreendia como a companhia do Senhor lhe dá mais forças do que nunca. Ora, se Davi disse que com os santos seremos santos aqui neste mundo (Salmo 17, 26.), certamente a alma também há de se fortalecer estando feita uma só coisa com a Força Suprema que lhe transmitirá fortaleza por meio de tão excelente união de espírito com espírito. E assim conheceremos a coragem que os santos tiveram para padecer e morrer.
11. A força que a alma adquire nessa união socorre, por certo, a todos os que estão no castelo e até ao próprio corpo, que muitas vezes já não lhe estorva mais o agir. O vinho dessa adega, aonde a trouxe definitivamente o seu Esposo, revigora a alma e restaura as energias do corpo, tal como o alimento recebido no estômago dá força à cabeça e a todo o corpo.
Sendo assim, o corpo tem má sina enquanto vive. Por mais que se esforce, não consegue corresponder à imensa força interior da alma, que nunca se contenta e peleja para obrigá-lo a fazer cada vez mais boas obras, pois tudo o que faz lhe parece nada. Daqui deviam vir as grandes penitências que muitos santos fizeram, em especial, a gloriosa Madalena, criada em meio a tanta abastança. E aquela fome que teve o nosso pai Elias da honra do seu Deus. E a que teve São Domingos e São Francisco de ajuntar almas para que o Senhor fosse louvado. Devem ter passado por grandes provações totalmente esquecidos de si mesmos.
12. É isso que eu quero, minhas irmãs: procuremos alcançar esse desprendimento de nós mesmas. Não para nosso deleite, mas para receber forças e servir. Desejemos a oração e ocupemo-nos dela. Não tomemos caminhos desconhecidos, pois certamente nos perderemos na melhor parte. Seria muito temerário pensar que podemos receber essas graças de Deus por outro caminho que não aquele por onde foram e vão todos os seus santos. Que isso nem lhes passe pela cabeça. Creiam-me que Marta e Maria devem andar juntas para acolher ao Senhor, têlo sempre consigo e não faltar ao dever de hospitalidade, negando-lhe algo de comer. Como Maria poderia servi-lo sentada a seus pés se sua irmã não a ajudasse?...(É preciso conciliar a ação exigida pela caridade cristã (simbolizada por Marta) com a contemplação do Senhor (simbolizada por Maria). O alimento que devemos oferecer ao Senhor é, de todas as maneiras que pudermos, ganhar almas para que se salvem e louvem a Deus para sempre.
13. Vocês me dirão duas coisas: uma, é que o Senhor disse que Maria tinha escolhido a melhor parte. Mas isso é porque ela já tinha feito o trabalho de Marta, agradando ao Senhor quando lavou-lhe os pés e enxugou-os com seus cabelos (João 12, 1-3) . Vocês acham, por acaso, que seria pouca mortificação uma senhora desacreditada como ela caminhar cheia de fervor pelas ruas e, sem saber de onde tirava forças, entrar onde nunca estivera antes, suportar as murmurações do fariseu e tantas outras que deve ter ouvido?
Tamanha mudança de vida é rara entre gente de costumes tão corrompidos. Bastava verem a amizade que dedicava ao Senhor, por quem eles sentiam tanta aversão, para se lembrarem da vida que ela tinha levado e acusá-la de querer agora fazer-se de santa, pois certamente logo voltaria à vida anterior.
Se hoje em dia se diz o mesmo de pessoas pouco vocacionadas para a santidade, que seria então? Estejam certas, irmãs, que aquela “melhor parte” vinha depois de muitas provações e mortificações. Ver seu Mestre sendo tão odiado já era dor intolerável para ela. E que dizer da aflição que sentiu depois, na morte do Senhor? Tenho para mim que ela não sofreu martírio porque já tinha passado por isso, assistindo a morte do Senhor e sofrendo o terrível tormento da sua ausência nos anos que ainda viveu. Por aí se vê que ela não usufruía sempre o prazer da contemplação aos pés do Senhor.
14. Outra coisa que vocês me dirão é que não sabem levar almas a Deus. E que fariam de muito boa vontade, sim, mas não tendo o costume de ensinar e pregar, como tinham os apóstolos, não sabem fazê-lo.
Já tratei desse assunto por escrito algumas vezes, não sei se neste Castelo. Mas, como creio que esse dilema ainda lhes atormenta a consciência, movido pelos desejos que o Senhor lhes dá de servir ao próximo, vou repetir aqui que às vezes o demônio nos dá grandes ambições para que deixemos de fazer o que está ao nosso alcance no serviço do Senhor e fiquemos muito contentes por apenas sonhar com grandes obras impossíveis. Vocês já ajudam muito com suas orações. Não queiram servir o mundo inteiro, mas sim às pessoas com as quais vocês convivem. Essa será a sua maior obra, porque vocês estão mais obrigadas a ajudá-las.
Pensam que é pouca coisa dar exemplo de grande humildade e ter imenso desejo de se mortificar, servir às irmãs e mostrar tanta caridade para com elas ao ponto de fazer que esse fogo de amor pelo Senhor incendeie a todas e desperte nelas as demais virtudes? Será serviço muitíssimo agradável ao Senhor. Fazendo aquilo que está ao seu alcance, Sua Majestade saberá que vocês ajudam muito e lhes dará um grande prêmio, como se ganhassem inúmeras almas para ele.
15. Vocês dirão que isso não é converter almas, porque aqui todas são boas. Mas quem lhes mandou fazer isso? Quanto melhor vocês forem, mais agradáveis os seus louvores serão ao Senhor, e suas orações beneficiarão mais ao próximo. Enfim, minhas irmãs, vou concluir dizendo que não devemos levantar torres sem base sólida. O Senhor olha menos para a grandeza das obras e mais para o amor com que são feitas. Desde que façamos o que for possível, Sua Majestade cuidará para que possamos progredir cada dia mais e mais, se não nos cansamos logo.
No pouco tempo que dura esta vida (às vezes, ainda menos do que se espera), ofereçamos ao Senhor o sacrifício que pudermos, interior e exteriormente. Sua Majestade o juntará ao sacrifício na cruz que ele mesmo ofereceu ao seu Pai por nós, para lhe imprimir o valor que o nosso amor tiver merecido, embora sejam pequenas as nossas obras.
16. Queira Sua Majestade, minhas filhas e irmãs, que nos vejamos todas onde sempre o louvemos. E que ele me dê a graça de realizar alguma das boas obras de que lhes falei aqui, pelos méritos de seu Filho que vive e reina por todo o sempre, amém. Confesso que termino de escrever tomada de grande temor. Por isso, peço-lhes, pelo mesmo Senhor, que não se esqueçam desta pobre miserável em suas orações.
Epílogo
JHS
1. Quando comecei a escrever este tratado, foi com as dúvidas de que falei no princípio. Mas agora, depois de concluído, estou contente com o resultado (embora reconheça que é muito pequeno) e dou por bem gasto o tempo que me tomou.
Considerando a vida enclausurada e o pouco divertimento que vocês têm, minhas irmãs, bem como a falta de espaço em alguns de nossos mosteiros, parece-me que será boa compensação deleitarem-se nesse castelo interior, pois, sem licença dos superiores, vocês podem entrar e passear nele a qualquer hora.
2. É verdade que não poderão entrar em todas as moradas com suas próprias forças, por maiores que lhes pareçam. Apenas o Senhor do castelo pode introduzi-las nelas. Sendo assim, aviso-lhes que não forcem a entrada se encontrarem qualquer resistência. Desgostariam Sua Majestade a tal ponto que nunca mais as deixaria entrar.
Ele aprecia muito a humildade. Se vocês se considerarem em tão pouca conta que nem em sonho se julguem merecedoras de entrar nas terceiras moradas, ganharão mais depressa a Sua vontade para fazê-las chegar às quintas. E de tal maneira ali poderão servi-lo, voltando a elas muitas vezes, que acabará por introduzi-las na morada que ele tem para si. E aí chegando, não saiam mais, exceto para atender um chamado da prioresa, cuja vontade este Senhor quer tanto que vocês cumpram como se fosse a Sua. Ainda que passem muito tempo fora, por obediência às ordens da prioresa, quando voltarem, ele sempre lhes abrirá a porta. E, uma vez habituadas a gozar desse castelo, em todas as coisas acharão descanso, mesmo que sejam muito penosas, devido à esperança, que ninguém poderá lhes tirar, de voltar a ele.
3. Embora sejam apenas sete moradas, há muitos aposentos em cada uma delas, em baixo, em cima e nos lados, com lindos jardins e fontes, além de muitas outras coisas tão agradáveis que vocês desejarão se desfazer em louvores ao grande Deus que criou o castelo à sua imagem e semelhança.
Se vocês encontrarem algo de bom no que escrevo em obediência à ordem que recebi de dar notícia dele, creiam que, na verdade, foi Sua Majestade que o disse para lhes dar contentamento. E o que acharem de mau foi dito por mim.
4. Pelo imenso desejo que tenho de ajudá-las a servir a este meu Deus e Senhor, peço-lhes que, cada vez que vocês lerem este livro, louvem muito a Nosso Senhor Jesus Cristo em meu nome e supliquem-lhe o aumento da sua Igreja e luz para os luteranos. Roguem-lhe também que perdoe os meus pecados e me tire do purgatório, pois talvez esteja lá, por misericórdia de Deus, quando vocês chegarem a ler isto, se for aprovado pelos letrados.
Se houver algum erro, é por falta de entendimento. Em tudo me sujeito ao que ensina a Santa Igreja Católica Romana e nisto vivo, professo e prometo viver e morrer. Seja Deus Nosso Senhor para sempre louvado e bendito, amém, amém.
5. Acabou-se de escrever este livro no mosteiro de São José de Ávila, no ano de mil quinhentos e setenta e sete, véspera de Santo André, para glória de Deus, que vive e reina para sempre sem fim, amém.
Pequeno Dicionário do Castelo Interior
Por Frei Patrício Sciadini, OCD
O Castelo Interior é a obra máxima de Teresa d’Ávila, escrito rapidamente por um coração que está cheio de Deus, de experiências místicas, que não pode e não as quer guardar só para si mesma, mas sente a necessidade de comunicá-las. As coisas de Deus possuem uma linguagem própria, uma gramática que foge à nossa inteligência. A realidade espiritual, mística, não pode ser comunicada inteiramente, mas apenas por meio de um pobre “balbuciar”. Deus é comunicado mais pelo silêncio do que pela palavra. São João da Cruz diz isso claramente: “Deus, no silêncio, prounciou, no silêncio, uma só Palavra, que é o Verbo, e continua a pronunciá-la em silêncio”. Lendo com atenção O Castelo Interior, sentimos o coração atraído para viver as coisas que Teresa nos fala. Pensamos que este pequeno dicionário teresiano será útil para a compreensão da obra.
ALMA: Na linguagem teresiana, a palavra alma é usada em lugar da palavra espiritual, em contraposição a corpo (ver 1M 1, 1 e também 4M 4, 5). Teresa também usa esta palavra muitíssimas vezes para significar a parte mais interior do ser humano. Tudo que é sobrenatural acontece na alma, a intimidade entre Deus e ela, a experiência da alma, o centro da alma (7M 1, 10). Nas Sétimas Moradas a palavra alma aparece como o lugar da experiência de Deus, o matrimônio espiritual.
ARREBATAMENTO: No léxico teresiano, esta palavra indica êxtase ou fenômeno místico pelo qual Deus intervém pessoalmente na vida espiritual. A pessoa deve saber acolher a ação de Deus, sem resistir ao Espírito Santo. Isso é especialmente importante no Castelo Interior (6M 4).
ASCESE: É o esforço humano, sustentado pela graça de Deus, que a pessoa faz para purificar a si mesma de todos os sentimentos negativos. No Castelo Interior, Teresa trata da ascese especialmente nas Segundas e Terceiras Moradas.
BÍBLIA: Se em todas as obras teresianas as citações bíblicas estão presentes, muito maior é a presença da Bíblia no Castelo Interior onde Deus, com sua Palavra, proporciona uma experiência profunda e íntima do seu amor. Para comprender o que acontece na alma, é necessário prestar atenção às citações bíblicas de Teresa (7M).
BUSCA DE DEUS: Um tema central nos escritos de Teresa é: Onde buscá-Lo, onde encontrá-Lo? E a resposta que ela nos dá é: No centro do castelo, dentro de si mesmo (4M 4, 3).
CARIDADE (amor a Deus e ao próximo): O amor a Deus e ao próximo é o tema central do Castelo. Esses dois amores devem crescer harmoniosamente, pois isso é sinal de maturidade espiritual (5M 3, 1). Sobre isso, leia-se com atenção as últimas Moradas: o dinamismo do amor será o tema que Teresa desenvolverá nas Sextas Moradas; o amor que cria comunhão e missão será tratado nas Sétimas Moradas.
CASTELO INTERIOR: É uma profunda alegoria teológica e espiritual do caminho que o ser humano percorre saindo de si mesmo para entrar em comunhão com Deus, que habita dentro de nós. Nesse castelo com muitas moradas, a palavra-chave é “prosseguir no caminho” com cuidado para não voltar atrás nesse processo espiritual místico e assim alcançar a identificação total com Cristo, centro de toda a nossa experiência.
Primeiras Moradas: Entrada no castelo, conversão e auto-conhecimento.
Segundas Moradas: Luta e esforço ascético para colocar em ordem os próprios sentimentos, escutar a palavra de Deus e fazer oração meditativa.
Terceiras Moradas: Prova do amor: vencer o egoísmo e todos os outros defeitos, desejar que todos se salvem. Aridez espiritual.
Quartas Moradas: A alegoria das duas fontes, passagem à experiência mística, recolhimento, amor místico-passivo, quietude interior.
Quintas Moradas: Morte do bicho-da-seda, renascimento em Critso. Estado de união com Deus, fazendo a Sua vontade de, amor ao próximo.
Sextas Moradas: Purificação do amor, nova visão do passado matrimônio místico (6M 7, 9). Sétimas Moradas: O simbolismo do matrimônio espritual, as obras sempre confirmam o amor verdadeiro, salvar almas, servir a Deus e ao próximo, Marta e Maria (7M).
CENTRO DA ALMA: O ponto mais profundo da alma onde habita o nosso “eu” e Deus. É um caminho para o interior. É o tema que se repete praticamente em todas as Moradas até as Sétimas, onde estão apenas “EU” e DEUS.
COMPARAÇÕES TERESIANAS: No Castelo Interior, Teresa compara as suas experiências místicas com coisas simples do dia a dia, permitindo que qualquer pessoa, mesmo aquelas que não têm vivência própria desses fenômenos espirituais, possa compreender o seu pensamento:
Compara a alma com um castelo: “Consideremos nossa alma como um castelo, feito de um só diamante ou de um cristal claríssimo, onde há muitos aposentos, à semelhança das muitas moradas que há no céu” (1M 1, 1).
O demônio com uma lima surda: O demônio age como uma lima surda, isto é, “com muita sutileza e sob a aparência do bem, começa por separá-la [a alma] da vontade divina em coisinhas de nada e envolvê-la em outras que faz parecer inofensivas. E, pouco a pouco, vai lhe obscurecendo o entendimento, enfraquecendo a vontade e avivando nela o amor próprio. Assim lentamente afasta-a da vontade de Deus e a aproxima da sua” (1M 2, 16; 5M 4, 8).
Deus com um vendedor de triaga: Deus age como um vendedor de triaga (fórmula usada contra envenenamento), permitindo que o fiel caia em pecado (beba o veneno), mas em seguida lhe dá o remédio (a triaga), isto é, tira dessa mesma queda algum bem, de modo que ele cresça na virtude e na fé (2M 1, 9; 3M, 2, 2; 6M 4, 11).
As distrações da mente com os ruídos da natureza: “Enquanto escrevo, vou sondando o que se passa na minha cabeça. Um grande ruído quase me impede de prosseguir. É como o estrondo de muitos rios caudalosos que se precipitam de grande altura. Há também muitas revoadas de passarinhos e silvos de ventos” (4M 1, 10).
A imaginação desordenada com a taramela do moinho: Taramela é uma pequena peça de madeira que, trepidando ruidosamente sobre a mó, faz com que a canoura libere os grãos pouco a pouco. A taramela do moinho simboliza a imaginação desordenada, que, em outro lugar, Santa Teresa chamou de “a louca da casa” (4M 1, 13).
A visão intelectual com uma sala ricamente ornamentada: O fiel que recebe de Deus a graça da visão intelectual não consegue depois se lembrar e descrever o que viu, assim como Teresa não conseguia se lembrar nem descrever a profusão de objetos decorativos que viu numa sala, na casa da Duquesa de Alba onde esteve hospedada (6M 4, 8).
A visão imaginária com uma jóia guardada num relicário: Geralmente o fiel não pode ver a jóia que está encerrada nesse relicário, porque não tem a chave. Mas, quando quer, o Senhor, que é dono do relicário, empresta-lhe a chave para que ele abra e veja esta jóia preciosa, que é a Sua sacratíssima humanidade (6M 9, 2-3).
O noivado espiritual com duas velas que se grudam: Quando duas velas grudam-se uma na outra, a cera, o pavio e a luz tornam-se uma só coisa. Mas depois sempre é possível separá-las para que voltem a ser duas velas, cada qual com seu pavio e sua cera. Assim é o noivado espiritual, pois os noivos ainda podem se separar, voltando cada qual à sua condição anterior (7M 2, 4).
O matrimônio espiritual com a chuva, um riacho e um aposento invadido pelo sol: O matrimônio espiritual da alma com Nosso Senhor “é como a chuva que cai sobre um rio, mistura-se com ele e já não se sabe o que é chuva e o que é rio. Ou como um pequeno arroio que se lança no mar e depois não consegue mais se separar dele. Ou como um aposento com duas janelas por onde penetra muita luz, e, ainda que dividida ao entrar, lá dentro se faz uma só” (7M 2, 4).
A caridade cristã com a necessidade de conciliação entre Marta e Maria: O auge da perfeição espiritual é alcançado mediante a conciliação da ação exigida pela caridade (simbolizada por Marta) com a contemplação do Senhor (simbolizada por Maria), como se extrai de Lucas 10, 38-42 (7M 1, 10, e 4, 12-13). Veja-se também o verbete Caridade.
CONTEMPLAÇÃO: Para Teresa a contemplação não é obra do ser humano, mas dom de Deus. Assim cabe a nós não opor resistência à ação de Deus nos êxtases, arrebatamentos ou na oração de quietude. O Castelo Interior, escrito na maturidade humana e espiritual de Teresa, mostra o caminho para se chegar à íntima união com Deus (7M 2, 4).
CONTENTAMENTOS: São todo tipo de experiências prazerosas adquiridas na oração, semelhantes às satisfações que o mundo oferece (4M 1, 5).
ÊXTASE: Fenômeno místico, muito frequente na vida de Teresa, ao qual não se pode resistir, mas também não se deve dar muita importância. Nas Moradas encontramos fenômenos místicos, tais como arrebatamentos, voos do espírito, etc. É necessário ler e reler O Castelo para compreender o seu significado.
GOSTOS: São frutos do Espírito Santo (Gálatas 5, 22), que Deus concede ao homem novo em Cristo. São uma graça de Deus, uma alegria espiritual que nem todos podem ter (5M, 6M e 7M).
JESUS CRISTO, SENHOR E ESPOSO: Teresa nos apresenta um Jesus divino e humano ao mesmo tempo. Forte é a leitura cristocêntrica nos escritos de Teresa e especialmente nas Moradas.
LOCUÇÕES: Toda a experiência teresiana de Deus pode ser examinada pela janela subjetiva e objetiva. Entre as suas diferentes experiências místicas, temos as locuções ou falas interiores, que são fenômenos místicos extaordinários em Teresa.
MATRIMÔNIO: A simbologia matrimonial não é uma invenção nem de Teresa, nem dos místicos, pois a encontramos na Bíblia. Deus escolhe o seu povo como esposa: a Igreja, esposa de Cristo; a alma, esposa de Cristo. Devemos recuperar esta simbologia mística para compreender em profundidade a nossa comunhão com Deus. Sem dúvida, os místicos do Carmelo (João da Cruz, com seu Cântico Espiritual e sua Chama Viva de Amor, e Teresa, com seu Castelo Interior) fazem desta simbologia um caminho para chegarmos ao matrimônio espiritual.
ORAÇÃO: O tema da oração perpassa todos os escritos de Santa Teresa que fala dos vários graus de oração:
Primeiro grau de oração: Oração bastante simples e incial, que Teresa compara ao relacionamento entre Deus e um surdo-mudo, que se passa nas Primeiras Moradas.
Segundo: É a oração meditativa de um surdo-mudo que já começa a ouvir e falar, nas Segundas Moradas.
Terceiro: Caracterizada pela estabilidade da vida espiritual, nas Terceiras Moradas.
Quarto: Oração de quietude, nas Quartas Moradas.
Quinto: Oração de união, muitos momentos prolongados de união com Cristo, contemplação dos mistérios de Cristo, nas Quinta Moradas.
Sexto: Oração estática e graças místicas, nas Sextas Moradas. Sétimo: Oração de união plena, conformidade com a vontade de Deus, nas Sétimas Moradas.
SENSUALIDADE: Parte sensitiva e desordenada da natureza humana (4M 1, 5).
SIMBOLOGIA BÍBLICA: Teresa conhece suficientemente a Bíblia e sabe recorrer à simbologia bíblica para explicar os vários fenômenos místicos que experimenta, por exemplo: a alma como jardim (1M 1 , 2); o amor que é um fogo (6M 11, 2); a abelha (5M 2, 2); a água (4M, 2); a pérola (6M); a pomba (7M), a seda (7M). A própria palavra Moradas é um símbolo bíblico (Evangelho de João 14, 2). Olhando com atenção, encontaremos várias simbologias.