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TRATADO DO MINISTÉRIO ECLESIÁSTICO

 

NATUREZA DO MINISTÉRIO.

 

CAPÍTULO I
 

Origem do Ministério
 

Deus amou de tal maneira o mundo que lhe deu Seu Filho Único. E enviando ao mundo Seu Filho Único, Deus lhe confiou um grande ministério a cumprir perante a humanidade decaída. Ao Filho de Deus, como nosso Redentor, coube primordialmente satisfazer à Justiça de seu Pai. Além disso, coube a Ele não só merecer para nós todas as graças necessárias à nossa salvação, como ainda criar uma instituição encarregada de, haurindo incessantemente do tesouro de Seus méritos, dispensar a todos os eleitos as graças necessárias para conduzi-los à vida eterna.

 

Nosso Senhor cumpriu integralmente o ofício que seu pai lhe atribuiu, e, na véspera de sua morte, podia dizer com toda verdade: Opus consummavi quod dedisdi mihi ut faciam (Cumpri o que mandaste que Eu fizesse — Jo 17,4).


E, um instante antes de morrer, mais expressivamente ainda o disse na cruz: Consummatum est (Está consumado — Jo 19,30).
 

Nosso Senhor tinha formado seus Apóstolos para o ministério; tinha-lhes ensinado toda a verdade; tinha-lhes revelado todas as coisas; e confiou-lhes os sacramentos. Antes, porém, de pô-los em ação para exercer o ministério, infundiu-lhes o Espírito Santo. A obra que eles tinham de levar avante, sendo uma obra divina, não poderia se bem executada senão pelo próprio Espírito de Deus. O espírito do homem não seria suficiente para uma tarefa de tal porte. E, então, o Espírito de Deus lhes foi dado.
 

CAPÍTULO II

 

O Ministério no Tempo dos Apóstolos
 

Nosso Senhor, depois de ter Ele próprio criado e exercido o santo ministério, confiou-o a seus Apóstolos, como continuadores de Sua obra.

 

Para esse fim, deu-lhes os poderes de ordem e de jurisdição e ao mesmo tempo as virtudes necessárias para o bom uso desses atemorizantes poderes. Onus angelicis humeris formidandum (Uma carga aterradora para ombros angélicos), diz o Concílio de Trento.

 

Instituindo os Apóstolos, Nosso Senhor os fez ministros perfeitos, Idoneos nos fecit ministros Novi Testamenti (Ele nos constituiu aptos servidores do Novo Testamento — 2 Cor 3,6), pois que tinha faculdade tanto para dar-lhes virtudes como para dar-lhes poderes. Os Apóstolos transmitiram facilmente os poderes, pois para isso tinham os sacramentos; mas não podiam dar as virtudes [1]. Isto explica porque o ministério pôde ter fracassos; e constitui a razão da fraqueza que afeta os herdeiros dos Apóstolos.

 

Não nos antecipemos, porém, e vejamos o que era o ministério nas mãos dos Apóstolos.

 

São Pedro o diz em uma palavra: Nos vero orationi et ministério Verbi instantes erimus (Nós nos consagraremos inteiramente à oração e ao ministério do Verbo — At 6,4).

 

Para São Pedro, o ministério consiste, em primeiro lugar, na oração; em seguida, na pregação; a administração dos sacramentos vem depois, como coisa secundária, ou parte por assim dizer material, que freqüentemente os Apóstolos confiavam aos diáconos quanto ao batismo, ou aos padres quanto ao batismo e demais sacramentos.
 

São Paulo, que havia convertido grande número de habitantes de Corinto, só batizou, entretanto, nessa cidade, muito poucas pessoas, pois habitualmente os fiéis eram batizados por Apolo e por Cefas. Ele dizia claramente que Nosso Senhor não o mandara batizar, mas sim pregar o Evangelho: Non enim misit me Christus baptizare sed evangelizare (Eis que o Cristo não me mandou batizar, mas evangelizar — 1 Cor 1,17).
 

Isto é de extrema importância, pois hoje as idéias são inteiramente diversas das dos Apóstolos. Os Bispos e os Padres, uma vez tendo administrado os sacramentos, crêem tranqüilamente que cumpriram o seu ministério, mas, de fato, executaram a parte material, em que não está contido o essencial.
 

CAPÍTULO III
 

O Corpo e a Alma do Ministério
 

No ministério compete distinguir, como na Igreja, o corpo e a alma, tal como nas coisas se distingue a matéria e a forma.

O corpo do ministério é a parte exterior, ritual; é a administração dos sacramentos.

 

A alma do ministério é, certamente, a oração, união interior com Nosso Senhor, e é essa união que nos deve fazer buscar em Deus o espírito interior, capaz, só ele, de fecundar as obras exteriores.

 

A pregação pertence em parte ao corpo e em parte à alma do ministério, pois considerada como uma função exterior, por certo é operação do corpo do ministério; mas, se considerada como devendo ser inspirada, vivificada, animada na oração para dela colher sua virtude e sua eficácia, então pertencerá à alma do ministério.

 

E isto faz com que se entenda a profundidade da palavra de São Pedro, citada mais acima: Nos vero orationi et ministério Verbi instantes erimus.
 

CAPÍTULO IV

 

A Verdadeira Ordem das Três Grandes Funções do Ministério
 

O ministério compreendendo principalmente, portanto, segundo Nosso Senhor e os Apóstolos, estas três funções: oração, pregação e administração dos sacramentos, importa observar-se que São Pedro colocou antes de tudo a oração, em seguida a pregação e por fim, como uma espécie de resultante, a administração dos sacramentos.

Esta é a verdadeira ordem das santas funções.

 

De início, deve-se buscar a convivência com Deus, pois aí está o ponto capital; é necessário captar sua graça, tornar-se familiar com ela, como diz São Gregório; e em seguida atrair-la para as almas junto às quais terá que ser exercido o ministério.

 

Depois de se ter rezado, é preciso pregar, é preciso instruir, e a pregação, tornada poderosa pela oração que a precedeu, leva as almas a desejar em seguida a receber os sacramentos.

 

Esta é a economia da obra de salvação das almas; é nessa ordem que Nosso Senhor deseja que as santas funções sejam cumpridas.

 

Será que é esta a idéia que hoje se tem do ministério e da ordem a seguir para bem exercê-lo? Muito duvidamos disso. Pois, se não estamos enganados, parece-nos que a grande preocupação é a administração dos sacramentos e em seguida a pregação; quanto à oração, considera-se como uma obra pessoal do padre, não mais como sendo a obra principal do ministério, o que significa pura e simplesmente uma inversão da ordem estabelecida por Deus.
 

CAPÍTULO V
 

Primeira Função do Ministério: A Oração
 

Nosso senhor ensina que é preciso rezar sempreOportet semper orare (Lc 18,1).

 

O cumprimento deste preceito, tomado ao pé da letra, seria impossível para nós. Eis por que os Santos Padres o explicaram como tendo o sentido de que é preciso rezar com bastante freqüência para que a alma esteja continuamente sob a ação, sob a proteção da oração feita precedentemente [2].

 

Para esse fim, o Espírito Santo inspirou à Igreja a fixação de horas de oração, e se tem considerado como estando em permanente oração aqueles que rezam fielmente nos tempos prescritos para oração, nas horas fixadas, ou melhor, nas “horas canônicas”. Semper orat qui statuta tempora non pratetermittit oranda (reza sempre aquele que não deixa de rezar nos tempos determinados, dizia Beda, o Venerável).

 

Essas “horas” são bem conhecidas.

 

Os Apóstolos deram o exemplo da oração feita nas “horas canônicas”.


Media nocte Paulus et Silas orantes laudabant Deum et audiebant eos qui in custodia errante (Pelo meio da noite, Paulo e Silas rezando louvavam a Deus e eram ouvidos pelos que estavam na prisão — At 16,25). Era uma oração vocal, pois que era ouvida pelos que estavam presos com os Apóstolos.
 

No dia de Pentecostes, a Igreja nascente estava reunida para a oração de terça, quando veio o Espírito Santo: Erant omnes pariter in eodem loco... hora diei tertia (estavam todos então reunidos ... na hora terça do dia — At 2,1-15).
 

São Pedro sobe para rezar em um quarto no alto da casa; era a hora Sexta: Ascendit... ut oraret circa horam Sextam (subiu... para rezar por volta da hora Sexta — At 10,9).
 

São Pedro e São João sobem ao Templo para a oração da hora Nona: Petrum autem et Joannes ascendebant in templum ad horam orationis Nonam (At 3,1). Esta palavra é especialmente digna de nota: os Apóstolos tinham horas determinadas para rezar: Horam orationis. “Nona” era uma dessas horas.
 

O centurião Cornélio, mesmo antes de ser cristão, rezava na hora Nona, e foi então que recebeu a visita do anjo que o encaminhou a São Pedro: Orans eram, in domo mea hora Nona (estava rezando em minha casa na hora Nona — At 10,30).
 

A Tradição da Igreja é constante quanto a este ponto tão importante da oração nas “horas canônicas”. Os exemplos dos santos são idênticos em todos os séculos. E vemos que todos sempre fazem da oração nas “horas canônicas” o seu primeiro dever. São Pedro dizia: Non est aequum nos derelinquere Verbum Dei et ministrare mensis (não é justo que descuidemos da palavra de Deus para servir às mesas — At 6,2), ensinando assim que não se deve sacrificar a pregação em favor de uma obra exterior de caridade; nem tampouco admitiria ele que se sacrificasse a oração, pois a esta dava proeminência sobre a pregação e sobre todas as coisas, conforme se depreende das seguintes palavras, já citadas: Nos vero orationi et ministerio Verbi instantes erimus (At 6,4).

 

CAPÍTULO VI
 

Segunda Função do Ministério: A Pregação
 

A pregação da palavra de Deus não é obra humana. A ciência, por maior que seja, a eloqüência, por mais poderosa que seja, não são a pregação da palavra de Deus.

 

A ciência pode ser útil, a eloqüência pode ser útil; mas na pregação da palavra de Deus há mais que ciência e há algo melhor que eloqüência. Note-se bem esta expressão: Palavra de Deus. Para pronunciar-se esta palavra é preciso tê-la recebido, e se é verdade que ela se recebe da Igreja, não é menos verdade que ela se torna palavra de vida graças ao Espírito de Deus infundido em nós na oração.

 

A palavra que temos de pregar deve, pois, vir de Deus e além disso é preciso que ela seja anunciada pelo Espírito de Deus. Em Pentecostes é que os Apóstolos pregaram pela primeira vez: Repleti sunt Spiritu Sancto et coeperunt loqui (foram repletos do Espírito Santo e começaram a falar — At 2,4).

 

Há, pois, uma distância infinita entre nosso ensino e os ensinamentos humanos. Os homens anunciam a palavra do homem, nós a palavra de Deus; os homens falam com seu espírito, a nós é dado o Espírito de Deus; os homens querem comunicar a ciência a quem os escuta, nós a fé. Que diferença!

 

Ora, como para propagar a ciência é necessário possuir-se a ciência; assim também para gerar a fé nas almas é preciso estar-se pessoalmente imbuído da fé. A palavra que nós anunciamos deve ser a própria palavra da féVerbis fidei, diz São Paulo (Rom 10,8) e Fides ex auditu (a fé vem pelo que é ouvido — Rom 10,17).
 

Nós, portanto, não somos professores de religião; somos instrumentos de Deus para fazer que a fé penetre nas almas: Tanquam Deo exhortante per nos (Como se Deus exortasse por nós), diz ainda São Paulo (2 Cor 5,20).
 

Precisamos, pois, não somente pedir a Deus pela oração que nossa palavra seja realmente sua palavra; não somente estar repletos do Espírito de Deus para anunciar a palavra divina. Precisamos, — bem sabendo que nessa atemorizante função executamos uma obra inteiramente divina —, ser humildes, piedosos, suplicantes, despojados não só de nós mesmos como também despojados em alguma forma de toda nossa humanidade, a fim de que nossa obra seja verdadeiramente a obra de Deus e faça brotar a fé em quem nos ouvir. Hoc est opus Dei ut credatis (a obra de Deus consiste em que creiais — Jo 6,29).[3]

 

CAPÍTULO VII
 

Terceira Função do Ministério: Os Sacramentos
 

Após ter rezado e pregado, o homem de Deus, Homo Dei (1 Tim 6,11), — vendo que a fé nasceu na alma de seus ouvintes e nela opera as obras necessárias à justificação —, ministrará então os sacramentos.

 

Os sacramentos, que conferem tantas graças, não dão as disposições necessárias para recebê-los. Eis aí um ponto capital da doutrina cristã, e isto mostra quanto se enganam os que crêem que tudo está salvo quando se recebe os sacramentos.

 

Os sacramentos são sinais visíveis de graças invisíveis. E o padre que administra os sacramentos, além de estar atento ao rito exterior, deve aplicar-se interiormente em pedir a graça interior; ele deve agir em comunhão com Deus que concede a graça [4], com Nosso senhor Jesus Cristo que a mereceu [5] e com a alma que a recebe [6].
 

Não há nada na religião que seja puramente exterior. Deus é Espírito, e tudo que vem Dele, como tudo o que vai para Ele, deve ser espírito.

 

Nós somos corpo e alma; Nosso Senhor é Deus e homem; os sacramentos têm matéria e forma. Em tudo isso há harmonia entre os dois termos e seria perturbar essa harmonia esquecer-se ou omitir-se em nossa Religião qualquer das coisas que Deus quis que nela fossem guardadas.

 

O homem que esquecesse sua alma para apenas dar atenção a seu corpo; o homem em que Nosso Senhor não visse senão sua humanidade, imitando por assim dizer os Antigos Antropomorfitas; o padre que nos sacramentos tão somente considerasse o rito exterior: estariam uns e outros fora da Verdade. Ora, só a Verdade salva: Veritas liberabit nos (a Verdade nos libertará — Jo 8,32).
 

CAPÍTULO VIII
 

O Ministério Eclesiástico é um Ministério Interior
 

Se bem que no ministério haja diversas funções exteriores, é, entretanto, certo dizer-se que, considerado em seu conjunto, o ministério é uma coisa interior.


Com efeito, pedir a graça, contribuir para que ela conquiste as almas, nelas se conserve e aumente, é por certo o essencial e a bem dizer o escopo final do ministério. E quem não percebe que todas essas coisas são coisas interiores?

 

E sendo isso fora de dúvida, cada vez mais vai se percebendo quanto é profunda a palavra do príncipe dos Apóstolos quando diz: Nos vero orationi er ministério Verbi instantes erimus. Ele dá primazia à oração e o faz porque o ministério, que atua nos homens, desenvolve sobre eles sua eficácia na medida em que o ministro se mantém em relação com Deus pela oração.
 

Somente Deus dá sem ter recebido, porque sendo Deus tem em si mesmo todos os bens; nós, que não somos Deus, não podemos dar senão depois de termos recebido. Quando se trata dos meios de santificar as almas, de quem os poderíamos receber senão de Deus? E como Deus no-los daria com plena eficácia, se não lhe rogássemos com humildade, confiança e perseverança?

 

Quão admiráveis neste ponto são nossos Pais, os antigos missionários beneditinos! Eles chegavam num país idólatra; procuravam um lugar solitário, um recanto ermo; lá punham-se a rezar, lutavam contra os demônios, contra os animais selvagens, construindo uma simples cabana para se abrigarem, cantando os Salmos nas Horas Canônicas do dia e da noite ... Nos vero in orationi instantes erimus.
 

Tendo permanecido em oração, muitas vezes durante anos, afinal alguns pastores vinham vê-los, perguntavam-lhes quem eram e o que faziam; daí às primeiras lições de catecismo era apenas um passo; com o tempo haviam catecúmenos ... Orationi et ministerio Verbi instantes erimus.
 

Assim brotava uma cristandade. A perseguição podia vir, mas seria vencida; e a fé, triunfante, era plantada nas almas.

Tudo isso bem provinha de uma ação interior: a oração, a união a Deus. Nesta união, nessa comunicação (conversatia) incessante, os santos recebiam de Deus as graças de luz, de conversão para as almas; e assim era o seu ministério abençoado por Deus.
 

[1]- Não obstante, os Apóstolos as exigiam daqueles a quem ordenavam (2 Tim 2,2). Ver At 6,3.
[2]- E essa é a razão da oração: Divinum auxilium maneat semper nobiscum (sempre conosco permaneça o auxílio divino), que recitamos no final de todas as Horas Canônicas, almejando e pedindo que depois de terminada a Oração Canônica não nos falte, um só instante, a proteção de Deus, a assistência de sua graça, até que uma nova oração nos ponha novamente sob a ação imediata da graça de se estar rezando.

[3]- Aqui o Pe. Emmanuel para completar seu pensamento cita o seguinte texto de São Paulo (2 Cor 4,13): “Possuindo esse mesmo espírito de fé segundo está escrito: ‘Eu cri, por isso falei’: nós também cremos e por isso, então falamos”. Em seguida, ele adverte, em conformidade com outros textos (1 Tess 3,10-12 ; At 13,46-48), que nós não conseguiremos abrir à fé todas as almas.
[4] - Adorar a caridade de Deus, que desejou a salvação dos filhos de Adão por gratuita misericórdia.
[5] - Adorar a caridade do Filho de Deus que se fez vítima por nós.
[6] - Ver o estado interior da alma perante Deus e almejar-lhe a graça.


 

TRATADO DO MINISTÉRIO ECLESIÁSTICO

 

O MINISTÉRIO DESNATURADO


 CAPÍTULO I

 

O Ministério pode ser Desnaturado
 

O ministério eclesiástico é uma criação de Nosso Senhor. Mas como ele é confiado aos homens, pode acontecer — em conseqüência de ser a natureza humana sujeita a fraquezas — que o ministério não seja por eles mantido na completa integridade de sua natureza.

 

Nosso Senhor é Deus e homem. Tem havido homens empenhados em afirmar que n’Ele não há unidade de divindade e humanidade; em negar uma e outra; e por conseguinte em destruir, como se tal fosse possível, esse grande mistério, e estancar a torrente de graças das quais Ele é a fonte.

 

Diz São João que isso é obra do Anticristo: Omnis qui solvit Jesum Antichristus est (Todo aquele que não professa Jesus é do Anticristo — 1 Jo 4,3). Se o mistério da Encarnação pode ser assim mutilado, desagregado e aniquilado quanto a seus efeitos, não é de admirar que o mesmo possa acontecer com o ministério, pois este é uma conseqüência e uma limitação da divina Encarnação.
 

CAPÍTULO II

 

Como o Ministério pode ser Desnaturado
 

O ministério consistindo essencialmente em três coisas, — oração, pregação e sacramentos —, é evidente que sua natureza seria mudada, alterada, destruída, caso uma dessas três coisas fosse ou suprimida ou alterada.

 

Quem aliás não vê que a obra de salvação dos homens seria paralisada se a oração cessasse, se a pregação emudecesse, se os sacramentos não fossem mais administrados?

 

Isto aconteceria não somente se as três coisas desaparecessem ao mesmo tempo, como também se apenas uma qualquer delas viesse a faltar. Mas, mesmo que subsistam todas as três partes essenciais do ministério, este seria infrutuoso se essas três partes não mantivessem à disposição desejada por Deus, se a ordem estabelecida por Ele não fosse exatamente conservada e observada.

 

A quem serão ministrados os sacramentos e com que proveito serão eles ministrados, se não forem precedidos pela pregação capaz de fazer nascer nas almas a fé, princípio animador das obras necessárias à salvação?

 

E a pregação terá, para tal fim, a eficácia que Deus lhe quer dar, se não for precedida pela oração, que atrai a graça do alto quer para o pregador quer para quem o ouve?
 

CAPÍTULO III

 

Continuação do Precedente
 

No ministério há corpo e alma. Faltando-lhe seja uma seja outra dessas duas coisas, ele fica desnaturado

O corpo do ministério é coisa bem conhecida, sendo, ele próprio, composto de coisas santas e muito santas. Mas a alma, o espírito interior que deve vivificar esse corpo, é coisa bem pouco conhecida.

 

Há aqueles que crêem ter cumprido o ministério quando desempenharam todas as obras exteriores. Mas a parte do ministério denominada oração é freqüentemente considerada como sendo obra particular da pessoa do padre, conquanto seja obra não da pessoa, mas do próprio ministério, conforme já acentuamos (Livro I, cap. IV).

 

Isto é muito importante. Quando um padre chega a persuadir-se de que poderá cumprir seu ministério, apenas exercendo perante os fiéis tudo aquilo que estes podem cristãmente desejar e requerer dele, acabará então dizendo a si próprio: se não sou um homem interior, um homem de oração, isso é coisa que só a mim concerne e que não tem conseqüência senão para mim próprio. Esse padre, porém, está gravemente enganado. E esse erro é bastante comum, atualmente.

 

O ministério será, dessa forma, um ministério sem alma, um ministério sem vida e muito freqüentemente um ministério de morte, ministratio mortis (2 Cor 3,7).
 

CAPÍTULO IV

 

O Ministério Desnaturado na sua Primeira Parte: A Oração
 

Acabamos de dizer como o padre prejudicaria seu ministério se considerasse a oração como uma obrigação não do ministério da Igreja, mas obrigação particular de cristão que é.

 

O padre não deve nem pode dissociar em si o cristão do padre ou o padre do cristão. Embora seja certo dizer-se que ele é cristão para si e padre para os outros, não menos verdade é isto: ele de fato é um cristão que se fez padre.

 

Os deveres do cristão e os deveres do padre são uma coisa só, assim como o cristão e o padre são em si apenas uma única pessoa.

 

Seria, pois, grande engano não reconhecer na oração a maior, a mais importante, a mais indispensável das obrigações do padre. Obrigação que é devida a Deus, à Igreja, às almas e a ele próprio: a Deus do qual é criatura; à Igreja, da qual é ministro; às almas, das quais é servidor; à sua própria alma, da qual, depois de Deus, deve ser o salvador.

 

É obrigação que jamais cessa: Oportet semper orare (Convém rezar sempre — Lc 18,1). 

 

Segundo a forma canônica, isso todos hão de convir, porque é de obrigação grave, já que comete pecado mortal quem omite uma só das horas do Ofício Divino. Mas o que geralmente não se considera é que as Horas Canônicas devem ser rezadas nas próprias horas canônicas. No entanto, é bem claro o sentido das palavras do Breviário: Ad Matutinum, ad Primam, ad Terciam, ad Sextam, ad Nonam, ad Vésperas, ad Completorium (em Matinas, em Prima, em Terça, em Sexta, em Nona, em Vésperas, em Completas).

 

Dir-se-á: sim, outrora era assim. Por certo; mas por que já não o é mais? Hoje, reza-se Matinas em dia antecipado, isto é, faz-se da oração da noite e da manhã uma oração do fim do dia, isto é, uma oração fora de hora.

 

E isto, por que se terá achado mais fácil despertar tarde, em vez de cedo? Diz-se: é para haver tempo para a meditação. Mas acaso nossos pais não praticavam a meditação? Será que somos nós mais dados a meditação do que nossos pais?

 

Não há dúvida, porém, de que nós meditamos menos que nossos pais; e possuímos uma dose de preguiça e de imortificação que certamente nossos pais não conceberiam.
 

As horas do dia, — que nossos pais espaçavam tão sabiamente com intervalos de três horas para lembrar-nos, sem cessar, a adoração da Santíssima Trindade —, são hoje recitadas de contínuo, como se fossem uma só peça. Isto, ao que dizem, a fim de que se fique mais livre.

 

Mais livre! Mas que liberdade é esta, que despreza a pontualidade na oração? Em que será empregada essa liberdade? Será para vagar e divagar? Para rir e para brincar?
 

Ah! A liberdade! Nossos pais tinham sobre ela uma idéia diferente da nossa. Pois admiravam a definição de Santo Agostinho: Libertas est charitas! (liberdade é caridade! [1] Livro I, cap. LXV).

 

A caridade! Amar a Deus e ao próximo; amar a Deus e rezar; amar ao próximo e trabalhar para a sua salvação. Segundo nossos pais, isso seria a liberdade.

 

Não há dúvida de que hoje se entende de forma diferente da deles o que seja a liberdade e o dever de rezar.

 

A oração canônica quase não é mais recitada em lugar algum nas horas canônicas. Não será porventura esta uma das causas pelas quais o ministério frutifica tão pouco, e isto em toda parte?

 

Ora, se o ministério se mostra assim impotente para salvar aquilo para cuja salvação foi instituído, é caso de concluir-se então que ele deve ser considerado como uma instituição lastimavelmente viciada, ou usando o termo próprio, desnaturada.
 

CAPÍTULO V

 

O Ministério Desnaturado na sua Segunda Parte: A Pregação
 

Há mais de um modo de desnaturar o ministério, no que concerne à pregação da palavra de Deus.

 

Antes de mais nada, desnatura-se o ministério quando simplesmente se deixa de pregar, merecendo-se então as palavras que o Espírito Santo aplicava a pastores por demais negligentes aos quais chamava de: canes muti, non valentes latrare (cães mudos, incapazes de ladrar — Is 56,10). 

 

O Senhor se referia assim às sentinelas de Israel, homens desatentos e ignorantes,, cães que não sabem latir, homens cujos olhos só estão abertos para a vaidade, homens sempre adormecidos que só amam seus próprios sonhos: Speculatores ejus coeco omnes, nesciarunt universi: Canes muti, non valentes latrare, videntes vana, dormientes, amantes somnia (Esses vigias são todos cegos, ignoram tudo; são cães mudos, incapazes de ladrar, interessados em coisas vãs, dorminhocos, amantes do sonho — Is 56,10).

 

A tais palavras do Espírito Santo nada há que acrescentar.

 

Em seguida, desnatura-se o ministério quando se prega como palavra de Deus o que não é palavra de Deus. Eis o que o Senhor diz a Jeremias: Falso prophetae vaticinantur in nomine meo; non misi esos et non praecepi eis, neque locutus sum ad eos; visionem mendacem et divinationem et fraudulentiam cordis sui prophetant vobis (profetas que falsamente profetizam em meu nome; não os enviei, não os instruí, nem lhes falei; visão mentirosa, fantasia, fraude, ilusão de seu próprio coração, eis o que eles profetizam — Jer 14,14).

 

Enfim, mesmo pregando a palavra de Deus, poder-se-á fazê-la sofrer certas alterações como as que São Paulo tinha em mente quando chamava certos pregadores de corruptores, falsificadores, adulteradores da palavra de deus: Adulterantes verbum Dei (2 Cor 2,17 e 4,2)[2].

 

Adulteram a palavra de Deus, manejando-a dolosamente, todos quantos não a professam tal como lhes foi transmitida, íntegra, pura e sincera, mas de mistura com sabedoria profana ou com doutrina judaica, isto é, com deturpações e erros. Ou então se transmitindo a palavra de Deus deixam de visar à glória de Deus para buscar vantagens pessoais, e querendo agradar os homens acomodam às suas terrenas paixões a palavra de Deus.
 

Para concluir este capítulo, lembramos que a palavra de Deus deve ser pregada com o Espírito de Deus; e o Espírito de Deus não estará conosco se não formos homens de oração. Isso faz-nos ver mais uma vez como todo ministério está na dependência da oração, que São Pedro colocou antes de tudo mais: Nos vero orationi et ministério Verbi instantes erimus (At 6,4).
 

CAPÍTULO VI

 

O Ministério Desnaturado na Administração dos Sacramentos
 

Dissemos mais acima (Livro I, cap. VII) qual é o papel dos sacramentos na economia da religião e, conseqüentemente, no ministério eclesiástico.

 

Uma vez que os sacramentos não dão as disposições necessárias para sua frutuosa recepção, é evidente que o ministério será desnaturado se aquele que administra os sacramentos não tiver toda a solicitude necessária para fazer nascer essas disposições, toda indispensável atenção para percebê-las quando efetivamente existentes, e toda firmeza para negar os sacramentos quando não existirem as disposições requeridas pelo próprio Deus.

 

Quão facilmente as pessoas imaginam hoje que têm as disposições para recepção de um sacramento, desde que sintam vontade de recebê-lo, ou tenham a complacência de aceitá-lo! Não sei se esta norma é aceita por muitos. Mas é fora de dúvida que, onde ela se pratica, o ministério é de todo carente das condições imprescindíveis para que produza frutos.
 

CAPÍTULO VII

 

Em que se transforma o Ministério Desnaturado
 

O ministério pode desatender à sua finalidade por muitas causas diversas, conforme mostramos nos capítulos precedentes. Tornar-se-á, então, mera rotina, empirismo ou uma espécie de trabalho maquinal, como se explica a seguir.

 

A rotina é um tipo de ministério eclesiástico que apenas se ocupa em atender ao que lhe é solicitado ou aos casos que se apresentam. Faz-se o que deve ser feito em virtude de uma certa ordem material, de um costume estabelecido que em si mesmo não merece censura. A semelhante ministério falta apenas aquilo, que também os cadáveres não têm: a alma, o espírito. 

 

O empirismo é palavra chocante, quando aplicada à matéria em consideração. Faz lembrar, com desagrado, aqueles homens — chamados charlatães — que se proclamam detentores de um remédio infalível, capaz de curar todos os males. Quando no exercício do ministério o método seguido se assemelha ao desse tipo de homens, pode-se agir com vontade de obter bom êxito (não confundir com a boa vontade no sentido teologal), com desejo do bem, com empenho no sentido do bem; mas esse empenho é guiado por uma vontade pouco ou mal esclarecida. Pode-se caminhar largos passos esperando chegar, por fim, ao bom caminho, contudo, não se tem clara noção nem do que seja o bom caminho nem das condições requeridas para trilhá-lo com segurança.
 

Chamamos engenhosidade uma forma de ministério eclesiástico, na qual se faz grande aplicação de raciocínio, pois inventam-se mil meios, põem-se em cena mil estímulos, empregam-se múltiplos recursos de imaginação. Mobiliza-se, em suma, o nosso espírito, mas é esquecido o Espírito de Deus.
 

Temos em mão um livro mui recentemente escrito, que foi muito promovido e até premiado em concurso. Esse livro é um verdadeiro método de engenhosidade em questão de ministério. Há nele cem tipos de expedientes, indicados seja para um executivo seja para seu adjunto, para o castelão como para a castelã, para o tabelião, para o médico, para o professor, para o guarda-florestal, etc., etc.

 

Terminada a leitura desse livro, imaginamos: eis aí coisas que São Pedro e São Paulo não sabiam! Mas depois veio-nos à mente esta reflexão: melhor é saber o que sabiam São Pedro e São Paulo.
 

CAPÍTULO VIII

 

As Conseqüências do Ministério Desnaturado
 

Quando o ministério é assim desnaturado, o padre que não consegue converter as almas é levado a queixar-se do ministério antes que de si próprio. Não lhe acode dizer: não sou um homem de oração; não trato a palavra de Deus como sendo ela de Deus; não cuido que os sacramentos que são santos sejam santamente recebidos. Mas, ao em vez, pronta mente dirá a si mesmo que os meios à nossa disposição são ineficazes, e que por conseguinte nada podemos e nada há que fazer.

 

Então, o padre poderá cair numa espécie de torpor espiritual que não lhe permitirá mais perceber para que seu ministério se torne útil, não só ao próximo como a si mesmo.

 

Se o mal se agrava, poderão surgir dúvidas no espírito do padre sobre a própria razão de ser do ministério; e o fato de, em suas mãos, o ministério se ter verificado inoperante, pode ser por ele atribuído a inoperância intrínseca ao próprio ministério instituído por Nosso Senhor.

 

Com mais um passo, o padre a princípio desencorajado, em seguida hesitante na fé, cairá na desesperança; poderá perder a fé e deixar-se cair em faltas que não têm mais nome, já que cometidas por um padre. Non peccata, sed monstra (mais que pecados, são monstruosidades) diz Tertuliano.

 

Queremos dizer que nessa gradação há uma seqüência lógica, não uma inevitável fatalidade, e que uma queda é possível. Queira Deus, porém, que o padre seja dela preservado.

[1] - “De natura et Gratia”, livro I, cap.LXV.
[2] - Na primeira dessas passagens, São Paulo diz: Kapeleuontes, e na segunda: dolountes. A primeira designa o trabalho dos mercadores que introduzem substân cias estranhas em suas mercadorias (p. exp. os mercadores de vinho). A segunda palavra, dolountes, designa toda espécie de falsificação ou adulteração.

 

 

TRATADO DO MINISTÉRIO ECLESIÁSTICO

 

O CAMPO DO MINISTÉRIO

 
 

CAPÍTULO I

 

Por que a Necessidade de um Ministério Eclesiástico
 

A autoridade civil, como a autoridade eclesiástica e, conseqüentemente, toda a economia do santo ministério tornaram-se necessárias por causa do pecado original.

 

Se Adão não tivesse pecado, a Humanidade fiel a Deus teria gozado de felicidade tão grande que maior não haveria, senão a felicidade da vida eterna.

 

O homem submisso a Deus teria haurido diretamente Dele a vida da graça, não teria havido necessidade de guia para encontrar Deus e, com Sua santa e divina graça, teria podido ir a Ele sem tropeços e vacilações.

 

Mas a Humanidade não se encontra mais nesse estado; o pecado penetrou no mundo e transformou de maneira espantosa todas as condições em que ele foi criado.

 

Para defender-nos contra os maus, quis Deus que na sociedade houvesse a autoridade civil. Para reconduzir-nos ao bem e à vida eterna, Deus desejou uma autoridade eclesiástica, um ministério eclesiástico. Deus quis que Suas graças alcancem os homens por meios proporcionados à indigência de criaturas decaídas que são.

 

Esquecendo o que devia a Deus, aprouve Adão obedecer a Eva, assim como Eva aprouve obedecer a Satã; e Deus, querendo que o remédio correspondesse à natureza da falta, achou bom então que o homem fosse submisso a uma migalha de pão, a uma gota d’água.

 

Deus, portanto, humilhou sua criatura orgulhosa e isto é a razão de ser de nosso ministério: para sermos ministros da salvação dos homens, somos ministros da humilhação dos homens.

 

Estas considerações devem humilhar-nos profundamente, se tivermos sensibilidade para perceber a profundidade da queda e a natureza verdadeira dos remédios de que somos os ministros, e, portanto, a verdadeira natureza de nosso ministério.

 

Mas não temos por que nos gloriar da autoridade que Deus nos deu, pois que esta autoridade é uma prova sempre manifesta, um testemunho sempre irrecusável da queda da humanidade, de nossa própria queda com ela e nela.

 

Pecadores que somos, temos dupla obrigação: de converter-nos e de trabalhar para converter os outros.

 

A primeira dessas obrigações está acima das forças humanas. Que diremos e que faremos, então, nós, que além dessa temos ainda o encargo da segunda obrigação?

 

A condição atual da humanidade, depois da queda original, eis a razão do ministério eclesiástico.

 

CAPÍTULO II

 

Natureza do Mal Presente

 

O mal presente é pura e simplesmente o pecado original e suas conseqüências.

 

Com qualquer nome por que seja chamado, o mal presente não é nem pode ser outra coisa.

O pecado entrou no mundo por Adão. O pecado de Adão tornou-se o pecado de todo o gênero humano e dessa fonte única, mas muito fecunda, por demais fecunda, decorrem todas as desgraças das almas.

 

O pecado original, mesmo onde limpo pelo batismo, deixa remanescente tríplice concupiscência: orgulho, avareza, sensualidade.

 

Pior é que essas lamentáveis concupiscências geralmente vêm a prevalecer nos batizados; e então dominam tão poderosamente que o batismo, a confirmação e a comunhão parecem hoje sem ação nas almas.

 

De muitos cristãos, lastimavelmente, tem-se impressão de que só foram batizados para virem a ser apóstatas; muitos parecem ter sido batizados para renunciar ao Espírito Santo, em vez de para recebê-lo, e há os que participam da Eucaristia para de fato desdenhar do Filho de Deus.

 

Assim, os remédios que deveriam salvar são transformados em venenos que produzem a morte; os sacramentos, que são os canais da graça, tornam-se freqüentemente ensejos de pecado.

 

Em muitos lugares, o estado comum das almas é a apostasia; freqüentemente, porém, uma apostasia antes insensata do que calculada: vive-se afastado de Deus, de Nosso Senhor, do Espírito Santo, longe de tudo que é sobrenatural.

 

E, no entanto, são almas batizadas. Que ultraje à graça divina! Que ultraje ao Espírito Santo! Que ingratidão para com Deus Pai, para com a adorável pessoa do Salvador, para com o Espírito Santo!
 

CAPÍTULO III
 

Como se Gera o Mal Presente
 

A fonte do mal, já dissemos, é o pecado original. Ora, essa fonte é muito secreta, e, em virtude do próprio segredo em que se oculta, ela tem mais facilidade de disseminar seus venenos.

 

O pecado original é pouco conhecido; e, freqüentemente, mal conhecido.


Como ele lançou as almas na ignorância, parece que deliberadamente se empenhou em ocultar sua própria malícia, a qual consiste essencialmente em duas coisas:

 

1) a perda da justiça original;

2) a deterioração da natureza.
 

Hoje, entretanto, ainda que se admita a perda da justiça original, busca-se não reconhecer que a natureza tenha sido deteriorada.

 

Este conhecimento assim truncado do pecado original deixa campo livre para uma multidão de erros e em todo caso ele é ineficaz para a salvação, segundo a máxima bem conhecida: Bonum ex integra causa; malum exquocumque defecta (o bem provém de uma causa sem falhas; o mal provém de qualquer falha).

 

Do fato de não se saber mais, de não mais se querer reconhecer a deterioração da natureza pelo pecado original decorrem as mais funestas conseqüências.

 

A natureza sente-se orgulhosa de si mesma, não obstante a palavra tão solene do Apóstolo: Quid habes quod non accepisti? Si autem accepisti, quid gloriaris quasi non acceperis? O que tens que não tenhas recebido? E, se recebeste, por que te glorias, como se não tivesses recebido? — 1 Cor 4,7).


Deixando de perceber seu próprio mal, a natureza é levada a abusar dos bens que lhe foram dados, empregando-os como arma contra Deus; e, assim, produz em si própria novas chagas.

 

Ela possui razão, liberdade e os sentidos, mas de tudo abusa. Sua revolta insolente contra Deus precipitou-a no naturalismo; e por uma série de conseqüências inevitáveis, a razão caiu no racionalismo, a liberdade no liberalismo e os sentidos no sensualismo.

 

Depois de todas essas incursões espantosas no domínio do mal, a natureza, ainda insatisfeita, voltou-se contra o próprio Salvador, negando Sua divindade e negando Sua humanidade. Negou Sua graça. Negou Sua Igreja. Negou tudo. E depois disse de si própria, tal como a Babilônia de outrora: Ego sum, et nom est praeter me amplius (Eu sou, e somente eu sou — Is 47,8).

 

O mal não é tão grave assim em todas almas; mas nos próprios fiéis as verdades foram singularmente diminuídas. Há para eles um naturalismo atenuado que não pretende ser erigido em dogma, mas que se contenta perfeitamente em ser aceito como doutrina prática. Há um racionalismo mitigado que não condena a fé, mas que comumente se reserva o direito de julgá-la; há também um liberalismo católico; e se ainda não se ousou falar em sensualismo católico, somos entretanto obrigados a convir que o sensualismo se instalou em muitas almas católicas de tal sorte que a vida sensual chegou a extinguir nelas o conhecimento da mortificação cristã, sem a qual porém, segundo o testemunho do Apóstolo, não se vive na presença de Deus: Si secundum carnem vixeritis moriemini; si autem spiritu facta carnis mortificaveritis, vivetis (Se viverdes segundo a carne, morrereis; mas se, pelo espírito, fizerdes morrer as obras da carne, vivereis — Rom 8,13).

 

Deve-se notar aqui um ponto capital a respeito do qual o naturalismo falseou singularmente as idéias, mesmo dos bons. Estudando os Autores que até os séculos XV ou XVI trataram da graça e cotejando-os com os autores modernos, pode-se notar entre eles uma diferença considerável.

Os primeiros reconhecem a graça salvífica do Redentor, sua gratuidade, sua eficácia.

 

Hoje, a eficácia da graça é freqüentemente atribuída à vontade da criatura; outrora, ela era considerada como um dom da própria graça.

 

É de se afirmar que os homens de nossos dias, mesmo os cristãos, não estão aptos para ler o tratado de São Bernardo - De gratia et libero arbitrio - sem se pasmar ou mesmo talvez sem se escandalizar. Pois não é que o padre Rohrbacher chegou a escrever que São Bernardo não soube estabelecer distinção entre a natureza e a graça? Ó pigmeu do século XIX, dissestes isso de São Bernardo; e até de Santo Agostinho dissestes coisa semelhante!
 

Como os homens sem grandeza dos tempos presentes não possuem sobre a graça os sentimentos que lhe devotaram os antigos, conseqüentemente não consideram mais necessário rezar para pedi-la, obtê-la e conservá-la. O que é hoje a oração? Onde estão as almas que rezam? Não é verdade que a oração da maioria dos cristãos consiste apenas na recitação de fórmulas? Como estão longe do cristianismo de Nosso Senhor e de seus Apóstolos, o qual é espírito e vida!
 

CAPÍTULO IV

 

Como Pode Ser Curado o Mal Presente
 

Nosso Senhor é o único Salvador dos homens, portanto, fora Dele não se poderá encontrar remédio para os males que nos afligem: Non est in alio aliquo salus, nec enim aliud nomen est sub coelo datum hominibus in quo aporteat nos salvos fieri (Não há salvação em nenhum outro, porque, sob o céu, nenhum outro nome foi dado aos homens, pelo qual devamos ser salvos — At 4,12).

 

Se, portanto, a natureza está enferma desse mal chamado naturalismo, para ser curada, ela deverá submeter-se a Jesus; se não, conservará seu mal, que a perderá fatalmente e para sempre.

 

E note-se que a submissão necessária para a cura deve ser completa, total e do fundo do coração. É preciso entregar-se ao médico celeste para receber toda a virtude de seus remédios divinos e qualquer reserva na submissão não somente compromete a cura, mas geralmente a torna impossível. “Quero ser batizado”, dizia o eunuco da rainha da Etiópia. — “Sim, diz-lhe São Felipe, se tu crês de todo teu coração” (si credes ex toto cordo licet — se crês de todo teu coração, é possível — At 8,37). A salvação depende dessa condição.

 

A razão tem seu mal que é o racionalismo. Ela, também, para ser curada, deve submeter-se a fé. Nada mais justo! A razão criada deve-se inteiramente à razão incriada; a razão humana deve-se à razão divina. Se a razão humana julga que cresce ostentando independência, engana-se e tão completamente como o filho pródigo ao deixar a casa paterna. Que encontrou ele quando longe de seu pai? Só indigência e vergonha. A razão que se afasta da fé não tem outra coisa a esperar. Sua salvação está nesta palavra do filho desgarrado: Surgam et ibo ad Patrem meum (Levantar-me-ei e irei para meu Pai — Lc 15,18).

 

Cabe assinalar aqui uma ilusão extremamente funesta em que caíram muitos homens apesar de estimáveis. Como é necessário que a razão humana não se desvie da fé, esses homens julgaram ser bom procedimento rebaixar a fé perante a razão, atenuando as divinas exigências da fé, diminuindo seus direitos imprescritíveis, a fim, segundo dizem, de torná-la mais facilmente aceitável.

 

Mas por que querem fazer com as almas aquilo que jamais fariam, com os corpos, os médicos dignos desse nome? Estes sabem qual a dose necessária para que um medicamento seja eficaz; será que prescreverão uma dose mais fraca, a pretexto de tornar o remédio fácil de tomar? Eles sabem, porém, que por esse preço não haveria cura, e então não farão tal coisa. Por que nós, médicos das almas, haveremos de ser menos sábios do que os médicos do corpo? Filii hujus saeculo prudentiores filiis lucis in generatione sua sun (Os filhos deste mundo são mais hábeis no trato com os seus semelhantes que os filhos da luz — Lc16,8).
 

A liberdade tem sua doença, que é o liberalismo. A liberdade é uma bela e digna faculdade da alma. O liberalismo é um estado anormal dessa liberdade: estado falso e forçado. Pois a liberdade nos é dada para o bem e para o mérito, enquanto que o liberalismo é o estado de uma liberdade descomprometida com o bem e com o mérito. Assim como o racionalismo é um abuso da razão, o liberalismo é um abuso da liberdade: abuso que consiste em fazer da própria liberdade a regra da liberdade. Mas somente Deus é sua própria regra, e toda criatura que nisso quer imitar Deus não faz senão imitar Satanás, pioneiro dos revoltados. A razão tem por regra a razão de Deus, isto é, a fé. E a liberdade tem por regra a vontade de Deus, que é a caridade.

 

A caridade ilumina, dirige, contém, sustenta, fortifica a liberdade e a torna capaz de progressos maravilhosos, pois, quanto mais o homem progride no bem e no mérito, mais livre se torna. Ouçamos a grande voz da Igreja na Oração da segunda-feira de Páscoa: Populum tuum, quaesumus Domine, coelésti dono proséquere; ut et perféctam libertátem cónsequi mereátur et ad vitam proficiat sempitérnam (Nós vos pedimos, Senhor, que continueis a cumular de dons celestes o vosso povo, para que ele mereça alcançar a liberdade perfeita e progrida no caminho da vida eterna).
 

Isto nos faz compreender melhor a sublime expressão de Santo Agostinho, já citada: Libertas est charitas.
 

Prosseguindo o estudo do mal presente, encontra-se o sensualismo, o amor do bem-estar material, o amor da satisfação dos sentidos, como o movimento de Eva em direção ao fruto que lhe parecia belo de ser visto e saboroso para comer.


O remédio para esse mal tão comum, tão profundamente enraizado na natureza, é a penitência.

 

Fazei penitência, eram as primeiras palavras de Nosso Senhor em suas pregações; pois a penitência é tão necessária que Ele um dia disse: Nisi poenitentiam habueritis omnes similiter peribitis (Se não fizerdes penitência, perecereis todos do mesmo modo — Lc 13,3).

 

A palavra penitência tornou-se desagradável de ouvir; há uma espécie de constrangimento de novo tipo em pronunciá-la. Nesse caminho já se chega a ir longe, tanto assim que um homem religioso do novo tipo saiu-se gravemente com esta sentença:

 

“O jejum não está mais no espírito da Igreja; hoje é a oração, é a oração”.

 

Sim, a pretexto de espiritualidade faz-se tábua rasa de uma boa parte do Evangelho e com isso ganhou, evidentemente, o sensualismo.

 

CAPÍTULO V
 

O Verdadeiro Estado das Almas
 

A Humanidade passou por três estados sucessivos: o primeiro, desde a queda de Adão até Moisés, chamado estado da lei da natureza; o segundo, desde Moisés até Nosso Senhor, é o estado da lei escrita; o terceiro, desde Nosso Senhor até nós, é o estado da lei da graça, que durará até o fim dos tempos.

 

Santo Agostinho resume todo o estado do mundo nessas épocas sucessivas em três itens: Ante legem, sub lege, sub gratia (antes da lei, sob a lei, sob a graça).

 

· Uma alma se acha ante legem quando se encontra na ignorância, seja porque não lhe foi ministrada instrução, seja por tê-la negligenciado não sabendo seu valor.

 

· Uma alma está sub lege quando tem conhecimento do bem a praticar e do mal a evitar; não obstante, seja por ainda não ter recebido a fé, seja por negligenciar viver segundo a fé, ela permanece em pecado que sabe ser pecado.

 

· Uma alma esta sub gratia quando, junto com o conhecimento, ela recebeu também o dom da fé e a graça de viver segundo essa fé que opera a caridade: Fides quae per dilectionem operatur (a fé que opera pelo amor — Gal 5,6). Nesse feliz estado, a alma caminha em paz na via dos santos mandamentos; ela ama as leis de Deus, e Deus acima de tudo; ela é livre no bem que ama e caminha com confiança em direção à recompensa prometida por Deus.

 

É necessário fazer-se esse discernimento das almas a fim de proporcionar as instruções às suas particulares necessidades e não exigir delas o que seria superior a suas forças. Assim:

 

· uma alma que se encontra ainda ante legem tem muito mais necessidade de receber do que aptidão para dar. Para ela a boa vontade consiste em receber a luz à medida que esta lhe é apresentada, e não se lhe deve pedir mais, porque mais não é possível;

 

· uma alma que está sub lege precisa ser esclarecida sobre a natureza da fé, sobre os mistérios da Encarnação e da Redenção; ela tem necessidade de ser encaminhada à oração e sobretudo ao desejo de uma graça maior e mais abundante;

 

· uma alma que está sub gratia requer ser bem instruída sobre a natureza da graça, sobre sua gratuidade, sobre sua necessidade, sobre suas operações maravilhosas, a fim de que, a elas se entregando com amor, caminhe na trilha de todas as boas obras. Essa alma tem também necessidade de ser instruída sobre a humildade e de nela firmar-se, a fim de não se expor ao pecado: Quid se existimat stare videat ne cadat (quem se presume estar firme tenha cuidado para não cair — 1 Cor 10,12). Tu autem fides stas: Noli altum sapere, sed time (Se estás firme é por causa da fé. Mas não te sintas superior, antes teme — Rom 11.20).
 

Importa, por isso, necessariamente, que a instrução seja adequada ao estado da alma, e que, por sua vez, esta venha a agir de acordo com a instrução recebida. Seria desastroso exigir-se de uma alma mais do que lhe é possível perante Deus, como, por exemplo, pretender-se levar à comunhão uma alma que nem mesmo esteja ainda sub lege, uma alma que ainda se encontre talvez ante legem, em estado de deplorável ignorância.
 

O mal que se tem feito e que ainda se faz procedendo de tal forma, é incalculável. Especialmente lastimável nessa circunstância é fazer-se uso dos sacramentos, porque então eles são recebidos sem conhecimento, sem preparação, e, portanto, sem fruto e sem o desejo de serem novamente recebidos; em muitos casos o são por uma única e última vez.
 

CAPÍTULO VI

 

Ainda o Verdadeiro Estado das Almas
 

Na França, o ministério é exercido exclusivamente perante pessoas batizadas (assim se podia dizer em 1863, época em que estas palavras foram originalmente escritas), as quais poderiam então supor que deveriam ser consideradas como estando sub gratia ou ao menos sub lege. Tal suposição seria, porém, um grosseiro equívoco.

 

Pois existem muitíssimas almas que perderam a graça, que muitas vezes chegaram até a perder a fé. A estas seria prejudicial tratá-las como fiéis, procurando-se de imediato levá-las às práticas religiosas antes de fazer-se com que a fé nasça ou renasça nelas. Tal proceder poderia induzir a crer que a religião consiste puramente em regras e cerimônias; e, então, as faríamos cair em um estado pior que o anterior.

 

O Padre Faber dizia que os ingleses devem ser tratados com os mesmos cuidados que os Padres outrora empregavam para os pagãos. Entretanto, esses ingleses são batizados; e, embora protestantes, são muitas vezes mais religiosos do que os católicos franceses. Não teríamos dúvida em pedir para estes o que o Padre Faber pedia para seus compatriotas. Certamente lhes prestaríamos um grande serviço ensinando-lhes a fé, se a ensinarmos de tal modo que nunca sejam levados a crer que Deus se satisfaz com formalidades, e que a religião é apenas um conjunto de cerimônias.
 

O que está acima se aplica às almas desviadas.

 

Mas há outras. As que servem a Deus nem sempre dispõem dos socorros espirituais de que necessitam. Precisariam de luzes, precisariam ser ajudadas no discernimento de seus caminhos, nas operações de Deus nelas próprias; estas almas, porém, raramente encontram o que necessitam. Por falta de socorro, muitas almas, por exemplo, se afogam em escrúpulos, muitas perdem a coragem diante das dificuldades, muitas se estiolam por falta de instrução baseada na fé. Bem poderiam elas dizer, como o paralítico do Evangelho: Hominem non habes! (Não tenho quem me valha! — Jo 5,7).

 

Os padres facilmente imaginam que estão sempre suficientemente preparados para confessar os homens do campo. Enganam-se, porém; as almas dessa gente humilde se equivalem às almas dos que habitam nas cidades, e não são necessárias menos luzes e menos discernimento para ajudar uma alma de aldeão que a de um cidadão de grande metrópole. Uma alma é sempre uma alma em qualquer lugar que seja; as necessidades das almas são grandes em toda parte, e o Espírito Santo tanto opera nas maiores cidades quanto nos mais humildes rincões.

 

Muitas vezes, tivemos ocasião de constatar o abatimento de que padecem as almas carentes de auxílio, de luzes, de direção segura.

 

Há padres que julgam dar remédio a tudo isso assumindo sobre as almas um tom de autoridade: “Faça isto, eu ordeno; obedeça...”. Tais meios, porém, não constituem a luz, nem a produzem. A autocracia do sacerdote não tem cabimento quando o Espírito Santo quer ter a palavra.

 

Excetuado o caso, que é bastante raro, de escrúpulo proveniente de timidez, a autoridade não é um meio salutar de direção. Non dominamur fidei vestrae (Não somos donos de vossa fé — 2 Cor 1,24).

 

O verdadeiro meio consiste antes no cuidado de aclarar o caminho, de instruir solidamente a fé sobre as operações do Espírito de Deus, do espírito próprio e do espírito do maligno.
 

CAPÍTULO VII
 

Adoração em Espírito e em Verdade
 

Como já dissemos, há um imenso perigo em fazer-se consistir a religião em apenas observâncias e atos exteriores. Se a isso se reduzisse, a religião dos cristãos pouco se diferenciaria do antigo paganismo, pois seria então mero exercício corporal em vez de empenho da alma.

 

Nosso Senhor, tendo ensinado aos homens que Deus é espírito, quer que Ele seja adorado pelo espírito ou em espírito, e chama isso de adorar Deus em verdade.

 

Portanto, se o culto que prestamos a Deus não lhe for prestado em espírito ou pelo espírito, também não lhe será prestado em verdade.

 

Considerado desse ponto de vista, o mal atual é muito grande; e entre os cristãos de hoje é o fruto lastimável de uma funesta ignorância.

Os cristãos já não conhecem mais, ou ao menos suficientemente, três coisas que constituem o culto de Deus pelo espírito, a saber: a fé, a graça de Deus, e o grande mandamento.

 

Embora conhecendo o objeto da fé, não sabem o que é a fé. Ainda lhes resta algum conhecimento a respeito das verdades da fé, mas não têm noção do que seja o próprio dom da fé: dom gratuito de Deus pelo qual nosso espírito adere à verdade revelada por Deus e é então posto no caminho da vida sobrenatural. Há muitíssimo que fazer para restabelecer a fé, a fé completa, entre os cristãos de nosso tempo.

 

Eles também não conhecem o que é a graça de Deus. Essa é para eles uma palavra muito vaga sem significação precisa, sem sentido determinado. Têm necessidade de serem instruídos sobre a natureza da graça e sobre sua gratuidade (freqüentemente imaginam que Deus seria injusto se não a distribuísse indiscriminadamente a todos). Aliás, tem-se que reconhecer que grandes doutores em Israel tinham necessidade, também eles, de aprender o que é a graça de Deus. E se com os mestres é assim, o que será então com os discípulos?

 

Os cristãos da época atual têm ainda a premente necessidade de serem instruídos sobre o grande mandamento de amar a Deus. Há hoje a tendência de substituir-se a fé pelo sentimento religioso (muitas vezes nossos doutores, quando deveriam mencionar a palavra fé, dizem ou escrevem “sentimento religioso”), embora haja entre esse e aquela uma distância incomensurável, pois o sentimento religioso é uma disposição natural enquanto que a fé é um dom sobrenatural.

 

Equívoco não menor cometem os que crêem ter encontrado um meio de praticar o amor de Deus no exercício de uma certa sensibilidade ou pieguice devota, que nos faria acreditar que verdadeiramente ainda temos alguma coisa para o “bom Deus”. Há, porém, uma grande distância entre tal disposição e o amor de Deus como Deus o entende: amor que faz com que todos os nossos afetos se desliguem das coisas do mundo para se dedicarem integralmente a Deus, amor que liberta a alma das três concupiscências, amor que governa inteiramente a vida e a ordena integralmente segundo o propósito único de agradar a Deus.

 

Ó! Como há tanto que fazer para ensinar aos cristãos a fé, a graça e o amor de Deus!

 

 

TRATADO DO MINISTÉRIO ECLESIÁSTICO

 

DAS VIRTUDES NECESSÁRIAS PARA O EXERCÍCIO DO MINISTÉRIO

 

CAPÍTULO I

 

A Grandeza do Ministério é a Medida das Virtudes que Ele Requer
 

O ministério é uma obra divina: Hoc est opus Dei ut credatis in eum quem misit ille (A obra de Deus é esta: que creiais nAquele que Ele enviou — Jo 6,29). São Paulo o denomina obra do Senhor: Opus Domini.

 

Com efeito, Deus é o primeiro autor da salvação dos homens; o primeiro que a quis, determinando-lhe as condições e instituindo-lhe os meios; e o primeiro que por ela se empenhou em Jesus Cristo Nosso Senhor: Deus erat in Christo mundum reconcilians sibi (Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo — 2 Cor 5,19).

 

Tendo convocado homens para seus colaboradores na obra da salvação dos homens, Deus, entretanto, não deixa de ser o principal agente na execução da obra divina: Possuit in nobis verbum reconciliationis; pro Christo ergo legatione fungimur, tanquam Deo exhortante per nos (Deus nos confiou a palavra de reconciliação. Desempenhamos, pois, o encargo de representantes de Cristo, como se fosse Deus a exortar por nosso intermédio —2 Cor 5,19-20).

 

Daí se segue que o padre é verdadeiramente o embaixador, o encarregado de negócios, o ministro de Deus, e, como diz São Paulo: o homem de Deus, homo Dei (1 Tim 6,11).

 

São Paulo deduz em conseqüência disso que o homem de Deus deve ser perfeito: Perfectus sit homo Dei (2 Tim 3,17). Essa perfeição deve tornar o homem de Deus preparado, disposto e, quase diríamos, equipado para toda boa obra: Perfectus sit homo Dei ad omne opus bonum instructus (que o homem de Deus seja perfeito e adestrado para toda boa obra — Ib.).

 

Em outros termos, o homem de Deus, que de certa forma vem a tornar-se homem-Deus em razão dos poderes divinos que exerce, deve ser ornado de todas as virtudes. Deve ser perfeito, como o Pai celeste é perfeito (Mt 5,48).

 

Assim, temos muito que nos esforçar antes de poder dizer como São Paulo: Idoneos nos fecit ministros novi Testamenti (Ele nos tornou capazes de ser ministros da Nova Aliança — 2 Cor 3,6).
 

Dentre todas as virtudes necessárias ao padre, ao ministro da salvação das almas, ao pastor, São Gregório Magno nos aponta principalmente dez. E a respeito delas falou admiravelmente bem na segunda parte de sua Pastoral. Perdoe-nos ele se, depois do que nos ensinou, ousamos também escrever alguma coisa sobre essas belas virtudes que ele possuía e que nós não possuímos.
 

CAPÍTULO II

 

A Castidade

 

Deus é santo, é a própria santidade. E por causa disso pede a seus ministros que sejam santos. O caráter marcante da santidade do padre é a castidade.

 

O Bispo ao ordenar os diáconos diz-lhes: Estote assumptis a carnalibus desideriis, a terrenis concupiscentiis; estote nitidi, mundi, puri, casti, sicut decet ministros Christi et dispensatores mysteriorum Dei (Sede libertos dos desejos carnais e das concupiscências terrenas; sede limpos, imaculados, puros, castos, como convém a ministros de Cristo e dispensadores dos mistérios de Deus (Pontifical romano).

 

Se tal mistério de sublimação se deve realizar no diácono, mais resplendente terá ele de ser no padre. O homem de Deus não poderia ser homem carnal, pois Deus é só espírito.

 

Se o padre meditar sobre si próprio perante Deus, perante Nosso Senhor, há de ver que deve a Deus, a Nosso Senhor, a homenagem da mais perfeita castidade. Para com os fiéis, tem a obrigação de ser casto a fim de nunca deixar de ser para eles o homem de Deus, pronto para administrar os sacramentos, pronto a trabalhar para a cura da ferida das almas.

 

A castidade do padre deve ser uma excelsa castidade. Do contrário ele estará em culpa perante Deus por causa da celebração cotidiana do santo sacrifício e da comunhão cotidiana; e em culpa perante os fiéis, para os quais não poderia ser um médico capaz, se se tornasse um homem culpado.

 

A pureza do padre exige dele uma vida séria, regular, mortificada, alheia às dissipações mundanas; exige uma vida de oração, de recolhimento, de estudo. Só a esse preço, o padre conseguirá ser homem de Deus e manter-se acima das contingências terrenas, no estado de sublimação que o Bispo lhe propôs ao fazê-lo diácono; assim poderá ouvir a voz de Deus na oração; assim poderá ver do alto e com nitidez o estado das almas peregrinantes na terra; e poderá trabalhar para curá-las sem se expor a contaminar-se.

 

Em suma, a castidade é uma virtude tão indispensável ao padre que se pode seguramente afirmar o seguinte: à força do padre está em razão direta com sua castidade.

 

Isto bem se percebe confrontando-se de um lado os santos e do outro lado um padre decaído ou em vias de decair. Aos santos é dado poder in opere et sermone. Os decaídos ou em via de decair para nada mais têm poder, e a si próprios são testemunho de que nada podem fazer e de que não têm direito de dizer coisa alguma.
 

CAPÍTULO III

 

O Bom Exemplo
 

Exemplo esto fidelium (sê um exemplo para os fiéis — 1 Tim 4,12), diz São Paulo a seu estimado Timóteo. In omnibus te ipsum praebe exemplum (em todas as coisas dá um bom exemplo — Tito 2,7), diz ele a Tito.

 

A alma do padre, diz São João Crisóstomo, deve ser mais pura do que os raios do sol [1]. E diz ainda que os vícios de um padre não têm possibilidade de permanecerem escondidos, mas, por pequenos que sejam, depressa se tornam conhecidos: Neutiquam possunt sacerdotum vitia latere, sed etiam exigua cito conspicua sun (De modo algum podem permanecer escondidos os vícios dos padres e mesmo pequenos logo se tornam manifestos [2].

 

Sem o bom exemplo, o padre nem pode agir nem falar com utilidade para as almas. Pois deve praticar o bem para que mereça ser considerado pelas almas um homem de Deus; e só praticando o bem terá autoridade para ensiná-lo aos outros.

 

São Gregório de Nazianzo não pensava diferentemente dizendo:

“Antes de purificar é preciso estar puro; antes de ensinar a sabedoria é preciso tê-la adquirido; antes de iluminar é preciso tornar-se luminoso; antes de encaminhar os outros a Deus é preciso aproximar-se a si próprio d’Ele; e antes de santificar é preciso que se seja santo” [3].

 

Um padre jamais poderá ensinar uma virtude que não possua ou levar alguém à prática de um bem que ele nunca tenha praticado. O exemplo é a primeira das pregações; sem ele de nada servirá toda a eloqüência do mundo: Aes sonans, cymbalum tinniens (Um bronze que soa, um címbalo que tine).

 

São Jerônimo faz a hipótese de um padre que tivesse em torno de si fiéis virtuosos sem que ele próprio o fosse ou que o fosse menos do que aqueles a quem devesse ensinar a virtude. Um tal estado de coisas causaria funesta ruína na Igreja, segundo este incisivo pronunciamento do santo: Vehementer enim Ecclesiam Dei destruit meliores esse laicos quam clericos (quando os leigos são melhores do que os clérigos, advém veemente ruína na Igreja de Deus)

 

A razão dessa sentença é fácil de perceber. Os fiéis, não encontrando em seu pastor o que lhes é necessário para progredir na virtude ou mesmo para nela se manterem, irão decaindo, e a queda será tanto mais rápida quanto menos esteja o pastor em estado de sustentá-los no estágio em que já se encontravam. Portanto, é necessário o exemplo, que tanto mais perfeito deverá ser quanto mais perfeitas forem as almas a instruir.
 

CAPÍTULO IV

 

A Discrição no Silêncio

 

O padre deve saber guardar um silêncio discreto. O respeito que ele deve ter a Deus e a Nosso Senhor no Santíssimo Sacramento bem como às almas de que ele é pastor fazem desse silêncio discreto uma lei indispensável.

 

Uma palavra de mais que saia de seus lábios poderá comprometer seu ministério, e causar prejuízo à própria palavra de Deus quando for por ele anunciada.

 

O padre não deveria falar senão quando tendo ordem de Deus para fazê-lo, pois faz parte das obrigações de um ministro só abrir a boca de conformidade com as intenções do soberano que o envia.

 

Sendo homem de oração, o padre não terá dificuldade em observar esta lei da discrição e do silêncio. Quando se tem a honra de privar habitualmente com Deus na oração, com Nosso Senhor no Santo Sacrifício, não se tem tendência para ir conversar com os homens.

 

O padre muito falador nunca será julgado pelas almas como um homem de Deus, pois nisso as almas jamais se enganam.
 

CAPÍTULO V

 

A Utilidade no Uso da Palavra

 

Há tempo para calar e tempo para falar, diz o Espírito Santo. O homem de Deus deve saber discernir esses tempos. E, quando chegar o tempo de falar, é preciso que cuide de dizer o que Deus quer que ele diga, ou o que as almas têm direito de esperar de um enviado de Deus.

 

 São Pedro, ensinando a todos os cristãos, dizia: Si quis loquitur, quase sermones Dei (Se alguém falar, que seja como palavra de Deus — 1 Ped 4,11). Mas, se tivesse escrito especialmente para os padres, ele certamente teria dito: Si sacerdos loquitur, sermones Dei (Se o padre falar, que sejam palavras de Deus). Excluiria o termo quase (como).

 

No púlpito, o padre deve falar como o próprio Deus. Fora dele, como um homem de Deus. É conhecido o dito de São Bernardo a respeito de palavras jocosas: In ore saecularium nugae, nugae sunt; in ore sacerdotum, blasphemiae (na boca de homens do mundo, os gracejos são gracejos; na boca de sacerdotes, são blasfêmias).

 

A palavra do padre deve ser sempre digna sem afetação, afável sem trivialidade, doce sem lisonja, grave sem dureza, de forma que lembre às almas o pensamento de Nosso Senhor do qual foi dito: Nunquam sic locutus est homo, sicut hic homo (Nunca homem algum falou como este homem — Jo 7,46).
 

CAPÍTULO VI

 

A Caridade Compassiva para com Todo Mundo

 

O padre deve dedicar-se a Deus e ao próximo; a Deus pela oração; ao próximo por uma terna e compassiva caridade.

 

Nosso Senhor, — que nos deu, no Evangelho, tantas divinas lições de ternura para com os pecadores, que nos contou as parábolas tão tocantes do filho pródigo e da ovelha desgarrada, e a história da mulher adúltera —, é Ele próprio o modelo dessa terna caridade de um pastor de almas.

 

“Que o pastor — diz São Gregório — seja unido a todos os fiéis pela compaixão; que pelas entranhas de sua misericórdia atraia a si e tome a si, para carregá-las, as enfermidades de todos. Que um pastor se mostre de forma tal que os fiéis não sintam vergonha alguma de lhe revelar o que tenham de mais secreto, e, quando agitados pelas ondas das tentações, que encontrem acolhida na alma do pastor como em um seio materno. Quase ad matris sinum! (como em um seio de mãe)”.

 

CAPÍTULO VII
 

A União a Deus na Oração
 

Da mesma forma que a caridade compassiva, a ternura paternal e mesmo maternal devem aproximar o pastor dos seus fiéis, assim também a constância na oração deve mantê-lo unido a Deus.

 

O pastor é homem de Deus, sem cuja graça nada pode; é de Deus que deve receber instruções; é a Deus que deve solicitar as graças necessárias seja para si seja para seu rebanho. Como poderá ele então haver-se, se antes que tudo não for homem de oração?

 

São Paulo diz: Nós somos os embaixadores de Jesus Cristo - Pro Christo legatione fungimur (Somos embaixadores de Cristo — 2 Cor 5,20). Ora, todo embaixador deve receber instruções daquele que o envia, a fim de trabalhar por seus interesses. Como poderá então o padre trabalhar pelos interesses de Deus junto aos fiéis se não tiver recebido orientação de Deus? E como poderá ser orientado por Deus não sendo pela oração?
 

Cabe aqui novamente a palavra de São Pedro, que tantas vezes já recordamos: Nos vero orationi et ministerio Verbi instantes erimus (At 6,4). Por onde se vê que o Apóstolo põe em primeiro lugar a oração, na qual receberá as luzes de Deus que transmitirá aos fiéis pela pregação: Orationi et ministerio Verbi. A palavra que não provém da oração não é senão um som vazio, pois será impotente, infecunda; e, em vez de ser palavra de Deus, não passará de palavra de homem.

 

Portanto, antes de tudo e acima de tudo, é necessário rezar.
 

CAPÍTULO VIII

 

A Humildade

 

O padre tem duplamente necessidade da graça de Deus, pois tem necessidade dela para si mesmo e tem necessidade dela para seu rebanho. E como Deus, segundo a muito sábia lei de sua misericórdia e de sua justiça, resiste aos soberbos e dá sua graça aos humildes, segue-se então que o padre tem uma necessidade dupla, quer dizer, uma necessidade mais imperiosa que seus fiéis de ser verdadeiramente humilde.
 

Ele tem necessidade de conhecer os caminhos de Deus e seus planos; ele tem necessidade de atrair para si a graça do alto e de granjeá-la também para as almas de que é pastor. Como poderá ele ser um mediador aceito por Deus se não for humilde? Deus confiará no homem que quer entrar em seus segredos para arrebatar sua glória e atribuí-la a si próprio? Tornará canal de sua graça o homem que, por orgulho, se comporta como inimigo da graça? Como poderá tratar perante Deus da reconciliação das almas culpadas, aquele que por seu orgulho procede como revoltado contra Deus?
 

Sem humildade não é possível ministério. Deus quer dar-nos sua graça, mas não quer que lhe tomemos sua glória. E quando um padre quer para si mesmo a glória, deixa de ser o mediador da graça. Deus superbis resistit et gratiam praestat humilibus (Deus se opõe aos orgulhosos e dá a sua graça aos humildes — Tg 4,6).
 

CAPÍTULO IX

 

Zelo pela Justiça
 

O zelo pela justiça é o devotamento perfeito aos interesses de Deus. Nos interesses de Deus estão necessariamente compreendidos os interesses das almas. Pois Deus quer a salvação da alma, e o quer com particular interesse, por ser isto a sua maior glória.
 

Os interesses de Deus são freqüentemente comprometidos pelos homens. Colocado entre Deus e os homens, vê-se então o pastor muitas vezes em luta com os homens por causa dos interesses de Deus.
 

Essa luta não deixa de apresentar dificuldades, pois se o pastor sendo homem de Deus deve servi-lo, também deve servir às almas das quais é pastor, e pastor responsável. Se vir os interesses de Deus por um olho só, por assim dizer, trabalhará por eles provavelmente de maneira imperfeita, comprometendo as almas. Por outro lado, se pretender não melindrar as almas, poderá desatender aos interesses de Deus.
 

A dificuldade é grande e às vezes chega a ser extrema. Há perigo de ambos os lados, e o pastor tem que temer de um lado vir a ficar em falta com Deus, de outro lado a ficar em falta com as almas.
 

Em tal estado de coisas, o zelo não é conselheiro suficiente, e poderá, por si só, levar a excessos e até a comprometer o próprio bem almejado. Ao lado do zelo é necessária a ciência; e com esta a humildade, a pureza de vistas e de intenção, isto é, coisas que o pastor jamais encontrará se antes de tudo não for homem de oração: Orationi ... instantes erimus.
 

CAPÍTULO X

 

O Padre Deve Ser Homem Interior
 

A multiplicidade de ocupações que se propõem à solicitude de um pastor é muito grande. As pessoas e as coisas, os corpos e as almas, os interesses espirituais dos fiéis e os interesses temporais da Igreja, tudo recai ao mesmo tempo sobre o pastor.

 

Todo acontecimento pode ter alguma influência sobre os interesses das almas, e, portanto, o pastor deve necessariamente estar um pouco atento a tudo. Todas as idades, todas as condições, todos os bons e todos os demais devem ser para ele objeto de incessante solicitude.

 

Há, por causa disso, um verdadeiro perigo de deixar-se absorver por solicitudes exteriores, por preocupações com pessoas e coisas. A caridade que o pastor deve a seu rebanho corre o risco de tornar-se ela própria uma causa, um pretexto, uma ocasião para ele de deixar-se absorver no cuidado das coisas exteriores, da saúde, dos interesses temporais, de quaisquer negócios.
 

Um pastor deve pensar um pouco em tudo, levar em conta tudo, estender sua caridade a tudo, mas, entretanto, esse tudo não o deve absorver. Acima de tudo o que concerne ao rebanho há o infinito que é Deus; e o padre se deve a Deus mais que a tudo e não poderá ser realmente útil em tudo senão sendo todo de Deus.

 

É em Deus que o pastor encontrará a luz, a medida, o verdadeiro zelo, a discrição, todas as virtudes necessárias para poder passar por entre as solicitudes exteriores do ministério, sendo útil ao rebanho sem diminuição de sua vida interior, prestando-se a cuidados materiais sem neles se absorver, sendo devotado ao próximo sem cessar de estar unido a Deus.
 

CAPÍTULO XI

 

O Padre Deve Ser Desinteressado

 

Avaro nihil est celestus (nada há mais perverso do que o avarento — Eclo 10,9), diz o Espírito Santo. Pode-se também dizer que nada é mais contrário ao espírito do Evangelho do que o amor ao dinheiro. Deus não é ouro nem prata; e o homem de dinheiro não poderá ser homem de Deus.
 

O padre, se possível fosse, não deveria pousar na terra, quia Angelus Domini exercitum est (pois ele é o Anjo do Senhor dos exércitos — Mal 2,7). Mensageiro celeste, embaixador de Deus, o pastor não deve aspirar senão o Céu, não desejar senão Deus, herança que escolheu quando se ordenou: Dominus pars haereditatis meae (O Senhor é o quinhão da minha herança — Sl 15,5).
 

Um pastor ocupado com Deus e com as almas não deve ter solicitude com o beber e o comer: Nollite solliciti esse dicentes: Quid manducabimus aut quid bibemus (Não vos inquieteis, dizendo: Que comeremos ou que beberemos? — Mt 6,31). Ao pastor que para tais coisas se confiasse pura e simplesmente aos cuidados da Providência nada de necessário lhe faltaria.

 

É o que vemos muito claramente pelo que sucedeu aos Apóstolos. Nosso Senhor os enviou a pregar; enviou-os sem nada, mas nada lhes faltou. Quando misi vos sine sacculo et pera et calceamentis, nunquid aliquid defuit vobis? At illi dixerunt: Nihil! (Quando vos mandei sem bolsa, sem alforje, sem sandálias, faltou-vos alguma coisa? Eles disseram: Nada! — Lc 22,35-36).

 

O pastor receberá de Deus seu pão de cada dia, mas não só para si como também para seus pobres. Receberá em uma das mãos e dará com a outra; e tanto mais terá para dar quanto mais somente de Deus espere o que lhe for necessário. Esse é o testemunho de São Vicente de Paulo, o homem que mais deu neste mundo.

[1] - De Sacerdotio, Livro VI, cap.2.
[2] - Obra citada, Livro III, cap.14.
[3] - Oratio 1 e 2.

 

Fonte: Tratado sobre a vida sacerdotal - Dom Emmanuel M André.