Primeiras Moradas
Capítulo 1
Trata da beleza e dignidade das nossas almas. Faz uma comparação para mostrar isso. Diz o quanto importa compreender as graças que recebemos de Deus. Explica que a porta desse castelo é a oração. (João 14, 2).
1. Estava suplicando a Nosso Senhor que falasse por mim, porque não sabia o que dizer nem como começar a cumprir esta obediência, e foi-me dado o que direi agora para iniciar com algum fundamento.
Consideremos nossa alma como um castelo, feito de um só diamante ou de um cristal claríssimo, onde há muitos aposentos, à semelhança das muitas moradas que há no céu.
Pensando bem, irmãs, a alma do justo é um paraíso onde o Senhor se deleita, como ele mesmo disse (Provérbios 8, 31). Mas como será o aposento onde se rejubila um Rei tão poderoso, tão sábio, tão puro e tão rico? Nada se compara à beleza da alma e ao seu imenso potencial. Na verdade, o nosso intelecto, por mais agudo que seja, não chega a compreendê-la realmente, do mesmo modo que não pode compreender a Deus. Ele disse que nos criou à sua imagem e semelhança (Gênesis 1, 26-27). Sendo assim, não nos cansemos, tentando descrever a beleza desse castelo. Entre ele e Deus, há tanta diferença como há entre a criatura e o Criador. No entanto, basta Sua Majestade dizer que ela é feita à sua imagem para que possamos avaliar a imensa dignidade e beleza da alma.
2. É lamentável que, por nossa culpa, não conheçamos a nós mesmas nem saibamos quem somos. Não seria muita ignorância, minhas filhas, se perguntassem a uma pessoa quem ela é, e não soubesse responder nem dizer quem foi seu pai e sua mãe ou onde nasceu? Pois, se isso seria grande estupidez, incomparavelmente maior é a nossa quando não procuramos saber quem somos e só nos ocupamos destes corpos.
Sabemos que temos alma apenas porque ouvimos dizer, porque é isso que a fé nos ensina. Mas poucas vezes pensamos nas riquezas que ela pode encerrar, ou em Quem habita dentro dela, ou no seu imenso valor. E assim não fazemos quase nada para conservar a sua formosura. Toda a nossa atenção está voltada para o grosseiro engaste onde esse diamante precioso está fixado, e não para o próprio diamante. Dizendo de outra maneira, admiramos a beleza da muralha desse castelo (que são os nossos corpos), mas nunca penetramos os seus riquíssimos aposentos.
3. Consideremos agora que esse castelo tem muitas moradas: umas em cima, outras embaixo, outras nos lados. No centro, cercada por todas as demais, está a morada principal, onde se passam as coisas mais secretas entre Deus e a alma. É imprescindível que vocês entendam bem essa comparação. Talvez seja vontade de Deus que eu possa por meio dela mostrar-lhes algo das graças que ele faz às almas e das diferenças que há entre essas mercês, até onde eu compreendo. São tantas graças que ninguém poderá conhecer todas, menos ainda quem é tão ruim como eu. Quando o Senhor lhes conceder esses favores, vocês serão tomadas de grande alegria vendo o que ele é capaz de fazer. E quem não os receber louve ainda assim a Sua imensa bondade.
Do mesmo modo que não faz mal pensar na glória do céu e na felicidade dos bem-aventurados, mas antes alegramo-nos e procuramos alcançar a mesma sorte, tampouco nos fará mal ver que é possível, ainda neste desterro, comunicar-se tão grande Deus com uns vermes cheios de mau odor e amá-los com bondade e misericórdia infinitas.
Quem se escandaliza ao saber que Deus pode conceder tais graças neste desterro está por certo muito carente de humildade e de amor ao próximo. Como não sentir alegria ao ver que o Senhor favorece um irmão? Sua Majestade revela suas grandezas a quem quer. E isso não impede que o faça também a nós. Algumas vezes, será só para mostrá-las, como explicou aos apóstolos quando Lhe perguntaram se o cego a quem curou era cego por causa de seus pecados ou pelos de seus pais (João 9, 2-3). Desse modo, acontece de o Senhor conceder graças a uns, não porque sejam mais santos do que outros que não as recebem, mas para que se conheça a Sua grandeza, como vemos em São Paulo e Santa Madalena, e para que o louvemos em suas criaturas.
4. Alguém poderá dizer que tais coisas parecem ser impossíveis e que é melhor não escandalizar os fracos. No entanto, a incredulidade de alguns não é motivo para se deixar de beneficiar àqueles a quem Deus escolheu, pois esses se alegrarão e despertarão para amar mais a Quem distribui tantas misericórdias com imenso poder e majestade.
Sei que falo com quem não corre esse perigo, pois vocês sabem e creem que Deus dá provas de amor muito maiores. Quem não crê nisso não O verá por experiência própria, pois ele não gosta que imponham limites a suas obras. Queira Deus, irmãs, que aquelas que o Senhor não levar por esse caminho não caiam nesse erro.
5. Voltando então ao nosso belo e agradável castelo, vejamos como entrar nele. Sei que parece tolice falar assim, porque, se o castelo é a alma, está claro que ela não precisa entrar nele, já que os dois são uma só coisa. Seria absurdo pedir a alguém para entrar num aposento onde já está. Mas notem que há vários estados de alma. Muitas almas ficam em volta do castelo onde estão os que o guardam. Não querem entrar, porque não podem imaginar quantos tesouros há nesse lugar magnífico, ou Quem está dentro dele, ou como são belos os seus aposentos. Vocês já devem ter encontrado alguns livros de oração que aconselham a alma a entrar em si mesma. Pois então, é isso que devemos fazer.
6. Um grande letrado dizia-me há pouco que as almas sem oração são como um corpo paralítico: embora tenha pés e mãos, não pode comandá-los. E são mesmo. Há almas tão doentes e habituadas às coisas exteriores que parecem fadadas a nunca entrar em si mesmas. É tão arraigado o hábito de conviver com os vermes e as feras dos arredores do castelo, que se tornaram quase como eles. Embora sejam de natureza tão rica que poderiam manter conversação com o próprio Deus, vivem totalmente afastadas dele. Se não procuram compreender e remediar sua grande miséria, entrando em si mesmas, transformam-se em estátuas de sal, como a mulher de Ló, que estacou olhando para trás, em vez de seguir em frente (Gênesis 19, 26).
7. Até onde sei, a porta de entrada desse castelo é a oração e a reflexão. Tanto faz que seja oração mental ou vocal. O que realmente importa para ser oração é que haja reflexão. Se não se atenta com Quem se fala, o que se pede, quem pede e a Quem pede, não chamo a isso oração, ainda que os lábios se movam muito. Se for, eventualmente, será porque se teve esses cuidados antes. E se alguém tem o costume de se dirigir à Majestade de Deus como a um criado, sem ao menos reparar no que diz, mas se repete maquinalmente o que decorou depois de recitá-lo muitas vezes, saiba que também não o considero oração. Queira Deus que nenhum cristão reze assim. Espero em Sua Majestade que isso não aconteça entre nós, irmãs. O zelo com que vocês tratam as coisas interiores é muito bom para prevenir semelhante grosseria.
8. Não me dirijo a essas almas entrevadas, como o homem enfermo que passou trinta anos junto à piscina de Betesda (João 5, 2-8). Se o Senhor não manda que se levantem, são muito desventuradas, pois correm grande perigo.
Falo às que enfim entram no castelo. Essas têm boa vontade, apesar de estarem ainda muito ligadas ao mundo. Às vezes, encomendam-se a Nosso Senhor e meditam sobre quem são, mesmo que brevemente.
Rezam uma vez por mês, com o pensamento perdido em mil negócios. Estando muito apegadas a eles, o seu coração volta-se para onde está o seu tesouro, como se diz (Mateus 6, 21). De tempos em tempos, propõem-se desapegar-se do mundo. E já é grande progresso essa disposição de olhar para si mesmas e reconhecer que não estão bem encaminhadas para encontrar a porta do castelo. Por fim, entram nas primeiras salas de baixo. Mas trazem consigo muitos vermes que não lhes deixam sossegar nem ver a beleza do lugar. De qualquer maneira, fazem muito em entrar.
9. Pode parecer, filhas, que eu esteja divagando, já que, por bondade do Senhor, vocês não são dessas. Tenham paciência, porque de outro modo não saberia explicar o que aprendi sobre algumas coisas interiores de oração. Queira Deus que eu acerte em dizer algo, pois é assunto extremamente difícil de entender quando não se tem experiência. Os que a têm sabem que o máximo que se consegue fazer é tocar superficialmente os mistérios do Senhor, se ele não nos toca por sua misericórdia.
Capítulo 2
Mostra como é feia a alma em pecado mortal e como Deus quis revelar algo disso a certa pessoa. Trata da necessidade de a alma se conhecer a si mesma. Explica como estas moradas devem ser entendidas.
1. Antes de passar adiante, quero lhes mostrar que é feito desse castelo tão resplandecente e formoso, dessa pérola oriental, dessa árvore da vida plantada nas águas vivas da vida que é Deus, quando cai em pecado mortal. Não há trevas mais medonhas, nada tão escuro e negro. Basta ver que até o Sol, que lhe dava tanto brilho e formosura, obscurece-se como se já não estivesse no centro da alma, muito embora ela seja ainda perfeitamente capaz de gozar de Sua Majestade, tanto como o cristal é capaz de refletir o sol.
Contudo, nenhum auxílio divino alcança a alma em pecado mortal. Todas as boas obras que faz nesse estado não produzem nenhum fruto para alcançar glória, porque não procedem de Deus, isto é, daquele princípio que faz a nossa virtude ser virtude. E, separados d’Ele, nada do que fazemos pode ser agradável a seus olhos, mesmo porque a intenção de quem pratica um pecado mortal não é contentar a Deus, mas dar prazer ao demônio, que é trevas. E assim, servindo-o, a pobre alma também se faz trevas.
2. Sei de uma pessoa a quem Nosso Senhor quis mostrar como fica a alma em pecado mortal. Diz ela que, se todos pudessem ver o que ela viu, não seria possível que alguém pecasse, mesmo que tivesse de suportar os maiores sofrimentos para fugir das ocasiões de pecado. Desde então, essa pessoa sente grande desejo de que todos compreendam isso. Que Deus lhes dê também, filhas, vontade de rogar pelos que estão nesse estado, todos mergulhados em escuridão, assim como suas obras. De outro lado, a alma que está em graça é límpida como os regatos que brotam de fonte puríssima.
Suas obras são agradáveis aos olhos de Deus e dos homens, porque procedem desse manancial de vida onde a alma está plantada como uma árvore à beira de um rio. Por isso não seca e dá bom fruto. Não teria viço nem daria fruto se não estivesse ali. Mas se a alma, por sua culpa, afasta-se dessa fonte e se transplanta para outro lugar de água negra e fétida, só produz desventura e imundície.
3. É preciso esclarecer que a fonte, ou melhor, o Sol que resplandece no centro da alma nunca perde o brilho e o encanto. Ele está sempre ali, e nada pode lhe tirar a beleza. Mas, se se põe um pano negro sobre um cristal, certamente a luz não produzirá o mesmo efeito, embora continue incidindo nele.
4. Oh, almas resgatadas pelo Sangue de Jesus Cristo, reconheçam a própria miséria e tenham dó de si mesmas! Como é possível que não procurem limpar a mancha desse cristal, uma vez que compreendem a sua situação? Vejam que, se a vida termina assim, jamais tornarão a gozar dessa luz. Oh, Jesus, que triste ver a alma separada dela! Como ficam desolados os aposentos do castelo! Como se perturbam os sentidos (que são a gente que aí vive)! E as faculdades da alma (que são os guardas, mordomos e mestres de cerimônias do castelo), que cegueira, que mau governo. Se a árvore está plantada junto à fonte do demônio, que fruto pode dar?
5. Certa vez, um homem espiritual me disse que não se espantava do que faz quem está em pecado mortal, mas sim daquilo que não faz. Deus nos livre, por sua misericórdia, de tão grande mal. Não há nada nesta vida que mereça ser chamado de mal, senão o pecado mortal, porque acarreta males eternos, sem fim. É isso, filhas, que devemos temer. Peçamos livramento a Deus em nossas orações. Se ele não guarda a cidade, em vão trabalharemos (Salmo 126, 1) , pois somos a própria vaidade.
Aquela pessoa a quem Deus mostrou o estado da alma em pecado mortal dizia que essa graça produziu nela dois efeitos: o primeiro, um imenso temor de ofendê-Lo. Ciente de tão terríveis malefícios, sempre Lhe suplicava que não a deixasse cair. O segundo, ver nisso um espelho para a humildade, compreendendo que todo bem que fazemos não procede de nós mesmas, mas desta fonte onde está plantada a árvore das nossas almas, deste Sol que dá calor às nossas obras. Essa verdade se revelou tão claramente a ela que, fazendo ou vendo alguém fazer uma boa ação, reconhecia que, sem o auxílio divino, nada podemos. E louvava a Deus, sem atribuir a si mesma o mérito do que fizesse.
6. Não será tempo perdido, irmãs, o que gastamos (eu escrevendo e vocês lendo isto), se ao menos nos ficarem esses dois ensinamentos que os letrados e estudiosos conhecem muito bem. Talvez o Senhor queira nos mostrar tais coisas para remediar a nossa extrema ignorância de mulheres. Por sua bondade, ele se alegra em nos conceder essa graça.
7. A vida interior da alma é tão obscura e difícil de entender que, sabendo tão pouco, direi forçosamente muitas coisas supérfluas e até desatinadas antes de acertar em dizer algo de bom. Tenham paciência quando lerem isto, pois eu também tenho para escrever o que não sei.
Às vezes tomo o papel feito boba, sem saber o que dizer nem por onde começar. Mas eu bem sei o quanto importa explicar-lhes, o melhor que puder, certas coisas da vida interior.
Sempre ouvimos falar do bem que a oração nos faz. Tanto que a nossa Constituição nos obriga a rezar várias horas por dia.(Alusão à Constituição das Carmelitas, escrita por Santa Teresa, que prescreve “meditar dia e noite na palavra de Deus”.).
Contudo, só nos dizem o que nós mesmas podemos fazer em oração. Pouco se fala das maravilhas que Deus opera na alma por via sobrenatural. Tentarei explicá-las de muitas maneiras. Meditar sobre esse artifício celestial interior tão pouco compreendido pelos mortais, embora muitos o experimentem, será motivo de grande alegria.
Em outros escritos, o Senhor já tinha me dado alguma luz sobre esses assuntos, mas não como fez de lá para cá, em especial, os mais difíceis. A questão é que, para explicá-los, será preciso repetir coisas que vocês já conhecem, porque o meu rude talento não encontra outro jeito.
8. Voltemos então ao nosso castelo de muitas moradas. Não pensem que essas moradas estejam enfileiradas uma após outra. Fixem os olhos no centro. É aí que está a sala do Rei. Imaginem que o castelo seja como um palmito onde muitas camadas cercam a parte mais saborosa. Aqui também é assim, pois em volta e em cima da sala real há muitas outras.
As coisas da alma devem ser consideradas sempre com plenitude, largueza e grandeza, sem medo de exagerar. A alma tem mais recursos do que nós suspeitamos, e o Sol no palácio a ilumina por inteiro. É de grande interesse para a alma dada à oração, pouca ou muita, que não se lhe impeça nem dificulte a passagem. Deixem-na andar por essas moradas, em cima, em baixo e nos lados. Deus lhe deu enorme dignidade. Não a obriguem a permanecer muito tempo no mesmo aposento.
Oh, e como é absolutamente necessário o conhecimento de si mesmo! Vejam se me entendem. Por mais que a alma tenha se elevado (refiro-me inclusive àquela que o Senhor já acolheu na morada onde ele está), não lhe cumpre fazer outra coisa senão buscar conhecer-se a si mesma. Nem poderia deixar de fazê-lo, se quisesse, porque a humildade sempre fabrica o seu mel, como a abelha na colmeia. Sem isso, está tudo perdido.
Tal é a abelha, que não deixa de sair para colher o néctar das flores, qual é a alma, no que se refere ao conhecimento de si mesma. Creiam-me que ela deve voar algumas vezes para refletir sobre a glória e majestade de Deus. Desse modo, reconhecerá a sua pequenez mais facilmente do que se ficasse o tempo todo olhando para si mesma. E estará mais livre dos vermes que entram nestas primeiras moradas, onde ela dá início à tarefa de se conhecer a si mesma. É grande misericórdia de Deus que a alma comece a se exercitar nisso, pois tanto se peca por falta como por excesso, como se diz. E creiam-me que, com a virtude de Deus, poderemos adquirir virtudes (Salmos 59, 14 e 107). maiores do que se ficarmos muito presas a esta terra.
9. Não sei se expliquei bem. O conhecimento de si mesmo é tão importante que não queria que vocês se descuidassem dele, por mais adiantadas que estejam no caminho dos céus. Enquanto permanecemos neste mundo, nada importa mais que a humildade. E assim volto a dizer que é melhor entrar primeiro no aposento onde se trata disso que voar aos demais. Esse é o caminho. Se podemos ir por estrada segura e plana, para que havemos de querer asas? Procurem empenhar-se ao máximo no conhecimento de si mesmas. A meu ver, jamais nos conheceremos realmente sem antes conhecer a Deus: contemplando a Sua grandeza, enxergamos a nossa baixeza; mirando a Sua pureza, reconhecemos a nossa sujeira; e refletindo sobre a Sua humildade, entendemos como estamos longe de ser humildes.
10. Há duas vantagens nisso. A primeira é que certamente o branco parece muito mais branco ao lado do preto e vice-versa. A segunda é que nosso intelecto e vontade tornam-se mais nobres e mais dispostos para o bem quando mergulhamos em nós mesmas, conservando, porém, os olhos fixos em Deus.
Seria muito prejudicial se nunca saíssemos do atoleiro de nossas misérias. Assim como dizíamos que são negros e de mau cheiro os cursos d’água das pessoas que estão em pecado mortal, assim é aqui (embora não sejam como aqueles, Deus nos livre, já que isso é só comparação). Se ficarmos sempre presas às nossas misérias humanas, esse regato se precipitará num lamaçal de temores, fraqueza e covardia, paralisado por mil dúvidas: se vou receber ou não a atenção dos outros; se há muitos perigos nesse caminho; se ousarei começar aquela obra; se será vaidade querer começá-la; se é bom que uma pessoa tão miserável trate de coisa tão elevada como a oração; se me julgarão presunçosa por não seguir o caminho da maioria, pois não são bons os extremos, mesmo tratando-se de virtude; posto que sou tão pecadora, será maior o risco de cair de mais alto; talvez não consiga progredir na fé; meu mau exemplo fará mal aos bons; uma pessoa simples como eu não precisa de extravagâncias.
11. Valha-me, Deus! Quantas almas devem ter sido desencaminhadas assim pelo demônio. À primeira vista, todas essas, e muitas outras considerações semelhantes, parecem ser movidas pela humildade. Mas, de fato, revelam falta de conhecimento de si mesmo. Se nunca saímos de nós mesmas, negligenciando o conhecimento próprio, não me surpreende que sejamos dominadas por esses e tantos outros medos. Por isso, filhas, fixemos os olhos em Cristo, nosso bem, e em seus santos. Com eles aprenderemos a verdadeira humildade. O intelecto progredirá, e, conhecendo a nós mesmas, não permaneceremos vis e covardes.
Embora esta seja a primeira morada, é muito rica e de grande valor. Quem consegue escapar dos vermes que a infestam, não deixa de passar adiante. Mas, como são terríveis os ardis e as manhas maquinadas pelo demônio para impedir que as almas se conheçam, compreendam-se e entendam o caminho que devem seguir.
12. Destas primeiras moradas posso dar informações muito seguras tiradas da minha experiência. Não pensem que tenham poucos aposentos, mas milhares. As almas entram aqui de muitas maneiras, todas com boa intenção. E o demônio, sempre mal-intencionado, deve colocar em cada aposento muitas legiões de demônios para impedir que passem de uns para outros. Como a pobre alma não se dá conta disso, ele a engana de mil maneiras. Entretanto, não pode fazer tanto mal às que já chegaram mais perto de onde está o Rei.
Aqui, porém, nas primeiras moradas, as pessoas ainda estão iludidas pelo mundo, mergulhadas nos prazeres que ele oferece, envaidecidas pelas vitórias que alcançaram e cheias de ambição. Por isso, os servos da alma – que são os sentidos e as faculdades – perderam a força natural que Deus lhes deu. Assim essas almas são vencidas facilmente, embora desejem não ofender a Deus e façam boas obras. Aquelas que se encontram nesse estado precisam recorrer frequentemente, como puderem, a Sua Majestade. Tomem por intercessora Sua bendita Mãe e peçam a Seus santos que lutem por si, pois os seus criados têm pouca força. Na verdade, em todos os estágios dessa caminhada espiritual, é necessário que a força nos venha de Deus. Que Sua Majestade nos ampare por sua misericórdia, amém.
13. Como é miserável esta vida que vivemos! Em outro lugar já falei bastante, filhas, do mal que nos faz não compreendermos bem o valor da humildade e do conhecimento de nós mesmas. Não vou dizer mais nada aqui, embora seja o que mais importa. Queira Deus que eu tenha dito algo proveitoso.
14. Vocês vão notar que nestas primeiras moradas ainda não chega quase nada da luz que sai do aposento onde o Rei está. Embora a alma não se encontre aqui debaixo daquela escuridão tenebrosa que a envolvia quando estava em pecado, é como se ela estivesse, de alguma maneira, anuviada. Não sei explicar. Não se pode ver Quem está ali. Não por culpa do aposento, e sim porque entraram com a alma muitas criaturas nocivas, tais como cobras, víboras e outros seres peçonhentos, que não a deixam reparar na luz. É como se alguém entrasse numa sala onde há muito sol, mas tivesse terra nos olhos e quase não pudesse abri-los. O lugar está iluminado, mas a pessoa não o vê, impedida por essas feras que lhe fazem desviar os olhos e não enxergar senão a elas. Assim deve ser a alma que, embora não se encontre em mau estado, está mergulhada nas coisas do mundo, em suas ocupações, honras e negócios. Embora queira sinceramente contemplar a beleza desse aposento, não consegue vencer tantos obstáculos.
Para entrar nas segundas moradas, convém abrir mão das coisas e negócios desnecessários, cada um conforme o seu estado de vida. Isso é tão importante que, se a pessoa não começa a fazê-lo desde já, torna-se impossível chegar à morada principal e até mesmo permanecer sem grande perigo nestes primeiros aposentos do castelo, onde as criaturas peçonhentas não deixarão de mordê-la uma vez ou outra.
15. Que seria, filhas, das almas que, como nós, já venceram esses tropeços iniciais e adentraram muitas outras moradas secretas do castelo, se tornassem a sair para essa confusão por conta de seus pecados? Deve haver muitas pessoas a quem Deus concede imensas graças e que depois lançam-se novamente nessa miséria, por culpa delas mesmas.
Aqui no Carmelo estamos livres dos perigos do mundo lá fora. Mas o Senhor quer igualmente nos proteger dos perigos que há dentro de nossas almas. Evitem, minhas filhas, cuidar da vida alheia. Em poucas moradas desse castelo os demônios deixam de combater. É verdade que em algumas os guardas, isto é, as faculdades da alma, têm força para resistir. Mas será necessário prestar muita atenção aos ardis do demônio para que ele não nos engane, transfigurando-se em anjo de luz (2 Coríntios 11, 14). Ele pode nos prejudicar de inúmeras maneiras, pouco a pouco. E, até que seja tarde demais, não nos damos conta.
16. Já lhes disse que ele é como uma lima surda (O sentido dessa comparação é dado em 5as Moradas, cap. 4, § 8: “O demônio, com muita sutileza e sob a aparência do bem, começa por separá-la [a alma] da vontade divina em coisinhas de nada e envolvê-la em outras que faz parecer inofensivas. E, pouco a pouco, vai lhe obscurecendo o entendimento, enfraquecendo a vontade e avivando nela o amor próprio. Assim lentamente afasta-a da vontade de Deus e a aproxima da sua”.) e que precisamos aprender a reconhecer as suas artimanhas assim que começa a agir.
Vou dar alguns exemplos para me fazer entender. Por sugestão do demônio, uma irmã tem frequentes ímpetos de fazer penitência. E não sossega senão quando está se atormentando. Isso é bom, a menos que a prioresa tenha proibido fazê-la sem licença. Mas, se ele a convence de que coisa tão boa pode fazer escondida, e ela vem a perder a saúde, e já não consegue cumprir a Regra de nossos mosteiros, vê-se logo aonde leva o que parecia ser um bem. A outra, o demônio dá uma ânsia de perfeição incomum. Isso é ótimo, a menos que a menor falta das irmãs lhe pareça uma grande indisciplina, passe a vigiá-las e apelar à prioresa. Muitas vezes, porém, ela poderá nem notar as próprias faltas que comete sem querer, por conta do zelo com que vigia as irmãs. E essas, se não compreenderem suas boas intenções, poderão julgá-la mal.
17. Desse jeito o demônio pretende esfriar a caridade e o amor de umas para com as outras. Seria imenso lucro para ele e grande perda para nós. Precisamos entender, minhas filhas, que a perfeição verdadeira é amar a Deus e ao próximo. Quanto mais nos empenharmos em guardar esses dois mandamentos, mais perfeitas seremos. Toda a nossa Regra e Constituição não servem para outra coisa senão ajudar-nos a cumprir plenamente esses mandamentos.
Deixemos de lado as indiscrições que podem nos fazer muito mal. Que cada uma olhe apenas para si mesma. Em outra parte, já lhes falei bastante sobre isso e não vou me alongar mais aqui.
18. Gostaria que vocês nunca se esquecessem de como é importante o amor de umas pelas outras.
E não prestem atenção se notarem em alguma irmã umas ninharias que às vezes nem são imperfeições. Como sabemos pouco, arriscamo-nos a julgá-la injustamente. Por isso, quem julga pode perder a paz e ainda inquietar as outras. Vejam como a perfeição custaria caro se tomássemos esse caminho. Seria perigo maior ainda se o demônio tentasse uma irmã contra a prioresa. Nesse caso, convém ter muita discrição. Se a prioresa cometer uma falta contra a Regra ou a Constituição, avisem primeiro a ela mesma, pois nem sempre é fácil interpretá-las. Se ela não se emendar, notifique-se ao prelado(Prelado é o provincial ou o bispo; prioresa é a superiora da comunidade em cada Carmelo). É gesto de caridade. O mesmo vale para as demais irmãs.
Sendo algo realmente grave, não caiam na tentação de deixar passar, com receio de estarem enganadas. Mas pensem bem antes de agir. E só tratem desses assuntos com quem pode ser ajudado. Evitem mexericos, pois o demônio é capaz de tirar grande proveito, introduzindo o hábito da murmuração. Aqui no Carmelo, glória a Deus, não há tanta ocasião para isso, já que guardamos contínuo silêncio. Mas é bom ficarmos de sobreaviso.