A Lembrança de Deus.
...«lembrança de Deus», frequente despertador da «memória do coração». «Devemos lembrar-nos de Deus com mais frequência do que respiramos». (Catecismo da Igreja Católica N° 2697.)
"...Assim fez, para que buscassem a Deus e, talvez às apalpadelas, O encontrassem, a Ele que na realidade não está longe de cada um de nós; de fato, nEle vivemos, nos movemos e existimos,..." (Atos 17, 27-28)
Salmo 138, 1-24.
Ao mestre de canto. Salmo de Davi.
Senhor, vós me perscrutais e me conheceis, sabeis tudo de mim, quando me sento ou me levanto. De longe penetrais meus pensamentos. Quando ando e quando repouso, vós me vedes, observais todos os meus passos. A palavra ainda não me chegou à língua, e já, Senhor, a conheceis toda. Vós me cercais por trás e pela frente, e estendeis sobre mim a vossa mão. Conhecimento assim maravilhoso me ultrapassa, ele é tão sublime que não posso atingi-lo. Para onde irei, longe de vosso Espírito? Para onde fugir, apartado de vosso olhar? Se subir até os céus, ali estareis; se descer à região dos mortos, lá vos encontrareis também. Se tomar as asas da aurora, se me fixar nos confins do mar, é ainda vossa mão que lá me levará, e vossa destra que me sustentará. Se eu dissesse: “Pelo menos as trevas me ocultarão, e a noite, como se fora luz, me há de envolver”. As próprias trevas não são escuras para vós, a noite vos é transparente como o dia e a escuridão, clara como a luz. Fostes vós que plasmastes as entranhas de meu corpo, vós me tecestes no seio de minha mãe. Sede bendito por me haverdes feito de modo tão maravilhoso. Pelas vossas obras tão extraordinárias, conheceis até o fundo a minha alma. Nada de minha substância vos é oculto, quando fui formado ocultamente, quando fui tecido nas entranhas subterrâneas. Cada uma de minhas ações vossos olhos viram, e todas elas foram escritas em vosso livro; cada dia de minha vida foi prefixado, desde antes que um só deles existisse. Ó Deus, como são insondáveis para mim vossos desígnios! E quão imenso é o número deles! Como contá-los? São mais numerosos que a areia do mar; se pudesse chegar ao fim, seria ainda com vossa ajuda. Oxalá extermineis os ímpios, ó Deus, e que se apartem de mim os sanguinários! Eles se revoltam insidiosamente contra vós, perfidamente se insurgem vossos inimigos. Pois não hei de odiar, Senhor, aos que vos odeiam? Aos que se levantam contra vós, não hei de abominá-los? Eu os odeio com ódio mortal, eu os tenho em conta de meus próprios inimigos. Perscrutai-me, Senhor, para conhecer meu coração; provai-me e conhecei meus pensamentos. Vede se ando no caminho do mal, e conduzi-me pelo caminho da eternidade. (Salmo 138, 1-24.)
Do Recolhimento: A Solidão do Coração
Parte II
Capítulo XII
Neste ponto, (Filotéia), desejo que sejas mais dócil ainda em seguir os meus conselhos; porque penso que daí muito depende para o teu adiantamento.
Lembra-te, as mais vezes que puderdes durante o dia, da presença de Deus, servindo-te de um dos quatro meios de que tenho falado. Considera o que Deus fez e o que tu fazes, e verás que Deus tem continuamente os olhos pregados em ti com um amor inefável. Ó meu Deus, hás de exclamar, por que não emprego sempre os meus olhos para contemplar-Vos, assim como Vós estais sempre olhando para mim com tanta bondade? Por que pensais tanto em mim, Senhor? E por que eu penso tão raras vezes em Vós? Onde é que estamos nós, minha alma? A nossa verdadeira habitação é em Deus, e onde é que nos achamos?
Os passarinhos tem seus ninhos, onde se refugiam; os veados tem os matos e moitas para se esconderem ao abrigo dos caçadores e dos raios ardentes do sol; nosso coração deve escolher para si também, todos os dias, um lugar ou no Calvário ou nas chagas de Jesus Cristo ou em algum outro lugar perto dEle, para se retirar, de tempos em tempos, para repousar do bulício e calor dos negócios exteriores e para se defender dos ataques do inimigo.
Sim, três vezes feliz é a alma que em verdade pode dizer a Nosso Senhor: Vós sois o meu lugar de refúgio, a minha fortaleza contra os inimigos, a sombra de vossas asas respiro um ar dulcíssimo e estou seguro, ao abrigo das intempéries do tempo.
Lembra-te, Filotéia, de retirar-te muitas vezes a solidão do teu coração, ao passo que as tuas tarefas e conversas o ocupam exteriormente, para estares a sós com teu Deus. Tudo o que te cerca não lhe pode fechar a entrada, porque tudo isso está fora de si mesma. Este era o exercício ordinário de David no meio ele suas múltiplas e importantes ocupações, como vemos muitas vezes nos salmos:
Ó Senhor, estou sempre convosco; sempre vos estou vendo, meu Deus, diante de mim; levantarei os meus olhos para vós, ó meu Deus, que habitais no céu; meus olhos estarão sempre em Deus. Com efeito, tão sérias não são de ordinário as nossas conversas, nem exigem tanta aplicação as nossas ocupações, que não possamos subtrair-lhe um pouco de atenção para nos retirarmos a querida solidão.
Como os pais de Santa Catarina de Sena não lhe deixassem tempo nem lugar algum para suas orações e meditações, Nosso Senhor inspirou-lhe o pensamento de erigir um oratório no fundo do coração, onde pudesse refugiar-se em espírito, no meio das ocupações penosas que seus pais lhe impunham. Ela assim fez e com facilidade pode suportar todas as contrariedades do mundo, porque, como costumava dizer, se encerrava neste aposento interior, onde se consolava com seu Esposo celeste. Tornou-se esta a sua prática ordinária e desde então muito a recomendava aos outros.
Recolhe-te, as vezes, a solidão interior do teu coração, e aí, num completo desapego das criaturas, trata dos negócios de salvação e perfeição com Deus, como dois amigos que cuidam familiarmente de seus negócios; dize-lhe como David: Tornei-me semelhante ao pelicano do deserto, cheguei a ser como a coruja no seu albergue. Vigiei e estou como pássaro solitário no telhado.
Tomando estas palavras no sentido literal, elas querem dizer que este grande rei acostumara seu coração a solidão e passava cada dia algumas horas entregue a contemplação das coisas espirituais; interpretando-as, porém, num sentido místico, elas nos descerram três belíssimas solidões, para onde nos podemos retirar com o nosso amantíssimo Jesus.
A comparação da coruja escondida nas ruínas mostra-nos o estado brilhante do divino Salvador, deitado sobre as palhas da manjedoura, num estábulo, escondido e desconhecido de todo o mundo, de que deplorava os pecados.
A comparação do pelicano, que tira o sangue de suas veias para alimentar os seus filhotes, ou, melhor, para lhes dar a vida, nos lembra o estado do Salvador no Calvário, onde o seu amor o levou a derramar todo o seu sangue para nossa salvação.
A terceira comparação nos aponta o estado do Salvador em sua gloriosa ascensão, quando, tendo aparecido no mundo tão pequenino e desprezível, se elevou ao céu dum modo tão brilhante. Retiremo-nos muitas vezes para perto de Jesus, num destes três estados.
Estando o bem-aventurado Elzeário, conde de Ariano, na Provença, ausente desde muito, a sua esposa, a piedosa e casta Delfina, enviou-lhe um mensageiro expressamente para informar-se do estado de sua saúde e ele respondeu do modo seguinte: “Vou indo bem, minha querida esposa, e, se me queres ver, procura-me na chaga do lado do nosso amantíssimo Jesus; é lá que eu moro e aí me acharás; querer procurar-me noutra parte é um trabalho perdido” Isso é, na verdade, ser um cavalheiro cristão as direitas.
(SALES, São Francisco de. Filoteia ou a Introdução à Vida Devota. Editora Vozes, 8ª ed., 1958, p. 101-104)
Pôr-se e manter-se na presença de Deus
O vosso modo de oração é bom; somente, sede bem fiel em ficar ao pé de Deus nessa suave e tranquila atenção de coração, e nesse doce adormecimento nos braços da sua providência, e nessa meiga aquiescência à sua santa vontade, pois agradável lhe é tudo isto.
Conservar-se na presença de Deus e colocar-se na presença de Deus são, a meu ver, duas coisas; porquanto, para se lhe pôr na presença importa tirar a alma de qualquer outro objeto e torná-la atenta a essa presença atualmente, assim como o digo no livro (“Vida devota”) .
Mas, depois de nos havermos colocado nessa presença, nela sempre nos mantemos enquanto, ou pelo intelecto, ou pela vontade, fazemos atos para com Deus, seja visando a ele mesmo, seja visando qualquer outra coisa por amor dele; ou nada visando, mas falando-lhe; ou não o visando nem lhe falando, mas simplesmente ficando onde ele nos pôs, qual estátua no seu nicho. E, quando a essa simples permanência se junta algum sentimento de sermos de Deus e de ser ele o nosso Tudo, bem devemos dar graças à sua bondade.
Se uma estátua, que soubéssemos colocada no seu nicho no meio de uma sala, falasse e lhe perguntássemos: Porque aí estás?, ela diria: Porque meu amo o estatuário aqui me pôs. – E por que não te mexes? – Porque ele quer que eu fique imóvel. – E de que serves aí? Que proveito tiras de estar assim? – Não é para meu serviço que aqui estou, é para servir e obedecer à vontade de meu amo. – Mas não o vês? – Não, diria ela, porém ele me vê e gosta de que eu esteja onde ele me pôs. – Mas não quererias ter movimento para ires mais para perto dele? – Não, a não ser que ele mo ordenasse. – Então nada desejas? – Não, pois estou onde meu amo me pôs, e o gosto dele é o único contentamento de meu coração.
Meu Deus, que boa oração e que bom modo de se manter na presença de Deus é mantermo-nos na sua vontade e beneplácito! Parece-me que Madalena era uma estátua no seu nicho quando, sem tugir nem mugir, sem se mexer, e quiçá sem o olhar, escutava o que Nosso Senhor dizia, sentada a seus pés. Quando ele falava, ela escutava; quando ele deixava de falar, ela deixava de escutar, e no entanto lá estava sempre. Uma criancinha que está dormindo no seio de sua mãe está verdadeiramente no seu bom e desejável lugar, posto que a mãe não lhe diga palavra, nem a criança a ela.
Ó Deus verdadeiro, que boa maneira de se conservar na presença de Deus é estar e querer sempre e para sempre estar no seu beneplácito! Porquanto assim, conforme penso, em todas as ocorrências, até mesmo dormindo profundamente, ainda mais profundamente estamos na santíssima presença de Deus.
Sim, certamente, porque, se o amamos, adormecemos não só na sua vista mas a seu agrado, e não só pela sua vontade, senão segundo a sua vontade; e parece que ele próprio, nosso Criador e Escultor celeste, é quem nos deita lá nos nossos leitos, quais estátuas nos seus nichos, a fim de que nos aninhemos nos nossos leitos como as aves se deitam nos seus ninhos; depois, no nosso despertar, se pensarmos bem nisso, achamos que Deus nos esteve sempre presente, e que nós também não nos afastamos nem separamos dele. Estivemos, pois, lá, na presença do seu beneplácito, posto que sem o vermos e sem repararmos; de sorte que, à imitação de Jacob, poderíamos dizer: Verdadeiramente eu dormi ao pé de meu Deus e nos braços da sua divina presença e providência, e absolutamente não o sabia.
Em todas as vossas ações estareis na presença de Deus se as fizerdes todas por Deus. Comei, dormi, trabalhai para ele; isso é estar na presença dele. Não está em nosso poder tê-lo atualmente, a não ser por uma graça particular. Fazendo algumas obras em que temos de pôr nossa atenção, de vez em quando devemos repor nosso espirito em Deus; e, quando faltarmos a isso, devemo-nos humilhar, e da humildade ir a Deus, e de Deus à humildade, com confiança, falando-lhe como o filho fala a sua mãe, pois ele bem sabe o que nós somos.
(O Segredo da Salvação, A Lembrança da presença de Deus e as Orações jaculatórias, extraído das Obras de S. Francisco de Sales, por Fernando Millon, Missionário de S. Francisco de Sales, 1952.)
Breve método de Meditação. Primeiro ponto da Preparação: Pôr-se na Presença de Deus
Parte II
Capítulo II
Poderá ser, Filotéia, que não saibas como se faz a oração mental; pois, infelizmente, poucos o sabem nos nossos tempos. Por isso torna-se necessário que resuma aqui em algumas regras um método proveitoso, deixando para os bons livros dedicados a esta matéria e principalmente para a prática a tua instrução mais completa.
A primeira regra tem em vista a preparação, que consiste nestes três pontos: pôr-se na presença de Deus, pedir-lhe o auxílio de suas luzes e inspirações, propor-se o mistério que se quer meditar.
Quanto ao primeiro ponto, ofereço-te quatro meios principais, que poderão ajudar teu nascente ardor.
O primeiro consiste em atender vivamente a imensidade de Deus, que perfeita e essencialmente está presente em todas as coisas e lugares, de maneira que, como os passarinhos, para qualquer região que voem, estão sempre envoltos no ar, assim também nós, em toda parte a que nos dirigimos ou em que estamos, sempre encontramos a Deus presente em nós mesmos e em todas as coisas. Esta verdade é conhecida de todos, mas bem poucos lhe consagram a devida atenção.
Os cegos que sabem achar-se na presença de um príncipe, embora não o vejam, conservam-se numa posição respeitosa; mas; porque não o veem, facilmente esquecem a sua presença e, uma vez esquecida, ainda com maior facilidade perdem o respeito que lhe é devido. Ah! Filotéia, não podemos ver a Deus, que está presente em nós; e embora a fé e a razão nos digam que Ele está presente, bem depressa nos esquecemos disso e então agimos como se Ele estivesse longe de nós: pois, conquanto saibamos que Ele está presente em todas as coisas, a falta de atenção produz em nós os mesmos efeitos que se O ignorássemos de todo.
Eis ai a razão por que no começo de nossas orações devemos refletir intensamente sobre a presença de Deus. Profundamente compenetrado desta verdade estava David, quando dizia: Se subir ao céu, tu ali te achas; se descer ao inferno, presente nele estás.
Igualmente, sirvamo-nos das palavras de Jacob, que, depois de ter visto a misteriosa escada a que já me referi, exclamou: Quão terrível é este lugar; em verdade Deus está aqui e eu não o sabia. Queria dizer que não tinha refletido bastante, porque não podia ignorar que Deus estivesse presente em toda parte. Eia, pois, Filotéia! Ao te preparares para a oração, dize de todo o coração a ti mesma: Oh! Minha alma, Deus está verdadeiramente aqui presente.
O segundo meio de te pores na presença de Deus é pensar que Deus não somente está no lugar onde te achas, mas também que Ele está presente em ti mesma, no âmago de tua alma: que Ele a vivifica, anima e sustenta por Sua divina presença; pois como a alma, estando presente em todo o corpo, reside contudo dum modo especial no coração, assim Deus, estando presente em todas as coisas, O está muito mais em nossa alma, podendo-se até dizer, em certo sentido, que Deus mesmo é a alma. Por isso David chamava a Deus o Deus do seu coração. E São Paulo, neste mesmo sentido, nos diz que em Deus vivemos, nos movemos e somos. E deste modo também este pensamento incitará no teu coração um respeito profundo por Deus, que está em ti tão intimamente presente.
O terceiro meio, que te poderá ajudar, é considerar que o Filho de Deus, como homem, no céu olha para todas as pessoas do mundo, mas mui particularmente para os cristãos, que são seus filhos e ainda mais para os que estão atualmente em oração, notando se rezam bem ou mal. Nem é isso uma pura imaginação, mas um fato muitíssimo real; pois, conquanto não O possamos ver, corno Santo Estevão em seu martírio, Nosso Senhor tem, entretanto, os Seus olhos em nós, como os tinha nele, e podemos dizer-Lhe alguma coisa semelhante ao que a Esposa dos Cantares disse a seu Esposo: Ele está lá, ei-lo, é ele mesmo; ele está escondido e não o posso ver, mas ele me vê, ele me está olhando.
O quarto meio consiste em nos representarmos Jesus Cristo neste mesmo lugar onde estamos, mais ou menos como costumamos representar-nos os nossos amigos, e dizer: estou imaginando vê-Lo fazendo isso ou aquilo; parece-me vê-Lo, ouvi-Lo. Estando, porém, na igreja, ante o altar do Santíssimo Sacramento, esta presença de Jesus Cristo, Filotéia, não será meramente imaginária, mas muitíssimo real; as espécies ou aparências do pão são como um véu que O esconde a nossos olhos; Ele nos vê e considera realmente, embora a nós O não vejamos em Sua própria forma.
Dum destes quatro meios, pois, te poderás servir para te pores na presença de Deus e não dos quatro duma vez, e isso mesmo deves fazer brevemente e com simplicidade.
(SALES, São Francisco de. Filoteia ou a Introdução à Vida Devota. Editora Vozes, 8ª ed., 1958, p. 85-88)
Ó meu Deus, que eu possa encontrar-Vos em mim, no pequeno céu da minha alma.
1 – Sta Teresa de Jesus aconselha vivamente às almas interiores uma outra espécie de oração, muito simples e proveitosa: a oração de recolhimento, O fundamento desta oração é a presença divina nas nossas almas; presença de imensidade, pela qual Deus está em nós como Criador e Conservador, de um modo de tal forma real e essencial que “nEle temos a vida, nos movemos e existimos” (Atos. 17, 28); de maneira que, se Ele deixasse de estar presente em nós, deixaríamos de existir; presença de amizade, pela qual Deus está também presente na alma em graça como Pai, como Amigo, como doce Hóspede que a convida a viver em companhia das três Pessoas divinas: com o Pai, com o Filho e com o Espírito Santo. É esta a consoladora promessa de Jesus à alma que O ama: “Se alguém me ama… meu Pai o amará e nós viremos a ele e faremos nele morada” (Jo, 14, 23).
A oração de recolhimento consiste em tomar consciência desta grande realidade: Deus está em mim, a minha alma é o Seu templo, na intimidade deste templo recolho-me para O adorar, para O amar, para me unir a Ele. “Ó alma formosíssima entre todas as criaturas – exclama S. João da Cruz – que tanto desejas saber o lugar onde está o teu Amado, a fim de O buscares e de te unires a Ele… é coisa de grande contentamento e alegria ver que… está tão perto de ti que está em ti”. (C. 1. 7 e 8).
A alma que tem o sentido desta presença de Deus em si, possui um dos meios mais eficazes para fazer oração. “Pensais que importa pouco a uma alma distraída entender esta verdade [ou seja, que Deus está nela] e ver que para falar a seu eterno Pai não precisa de ir ao céu, nem para se consolar com Ele é mister falar em voz alta? Por muito baixo que fale, está tão perto que a ouvirá; nem é preciso asas para ir em busca dEle, basta pôr-se em solidão e olhá-lO dentro de si mesma” (Cam. 28, 2).
2 – Se bem que a oração de recolhimento seja a mais elevada entre as orações ativas, Sta Teresa faz notar que depende de nós alcançá-la, “porque isto não é uma coisa sobrenatural, [ou seja, um recolhimento passivo que é unicamente fruto da moção divina], senão que está no nosso querer e podemos fazê-lo com o favor de Deus” (ib. 29, 4).
É pois importante saber o que a alma tem a fazer para chegar a tal oração, e isto reduz-se a duas coisas: “recolher todas as suas potências e entrar dentro de si com o seu Deus” (ib. 28, 4). Os sentidos, a imaginação, a inteligência, tendem espontaneamente para as coisas externas em que muitas vezes se dispersam; a alma deverá, com um ato de vontade decidido e prolongado, retirar-se do mundo exterior para se concentrar dentro de si, no pequeno céu onde habita a Santíssima Trindade. Este exercício, sobretudo nos começos, requer esforço, e energia e não será logo suave; “a alma, porém – ensina a Santa – procure acostumar-se, embora a princípio tenha trabalho porque o corpo reclama os seus direitos”. Mas depois, pouco a pouco, “se se esforça, ver-se-á claramente o ganho…” (ib. 7), o recolhimento tornar-se-á fácil e gostoso, os sentidos obedecerão prontamente e, se não ficar totalmente livre das distrações, ser-lhe-á menos fatigante vencê-las.
Deste modo a alma pode concentrar-se toda em Deus presente nela, e ali, aos Seus pés, poderá entreter-se conforme for do agrado do seu coração. Não será difícil conseguir passar todo o tempo da oração em atos de fé, de amor, de adoração, não se saciando nunca de admirar, de contemplar o grande mistério da inabitação da Santíssima Trindade no seu pobre coração e de apresentar às três Pessoas divinas as suas humildes homenagens.
Mas se isto não lhe bastar, poderá aplicar-se ainda a outros exercícios: “Recolhida em si mesma – diz a Santa – a alma pode pensar na Paixão e representar ali o Filho e oferecê-lO ao Pai e não cansar o entendimento andado a buscá-lO no monte Calvário, no Horto ou atado à coluna”; ou ainda, mais simplesmente, entretenha-se com o Hóspede divino “como com um Pai, com um Irmão, com um Mestre, com um Esposo, umas vezes de uma maneira, outras vezes de outra… Conte-lhe os seus trabalhos e peça-Lhe remédio para eles, reconhecendo que não é digna de ser Sua filha” (Cam. 28, 4, 3 e 2). “Quem – conclui a Santa – puder encerrar-se deste modo no pequeno céu da alma, onde habita Aquele que o fez… creia que leva excelente caminho e não deixará de beber da água da fonte” (ib. 5).
Colóquio – “Ó Senhor, concedei-me a graça de me saber recolher no pequeno céu da minha alma, onde pusestes a Vossa morada. Aqui, ó Mestre divino, Vós deixais encontrar e fazeis-Vos sentir mais perto que noutro lugar e preparais a alma pra entrar mais rapidamente na Vossa intimidade. A alma entende então que todas as coisas criadas não são senão um jogo e parece que subitamente se ergue acima de todas elas e deixa tudo como faz aquele que se esconde numa fortaleza para fugir aos golpes do inimigo. Ó meu Deus, se eu procurasse lembrar-me muitas vezes de que Vós habitais na minha alma, creio que seria impossível entregar-me com paixão às coisas do mundo, porque comparadas com Aquele que trago em mim, me apareceriam em toda a sua baixeza.
“Ajudai-me, ó Senhor, a retirar os meus sentidos das coisas exteriores, tornai-os dóceis às ordens da minha vontade para que, quando desejo estar conVosco, eles se recolham espontaneamente, semelhantes às abelhas que se abrigam na colmeia para fabricarem o mel” (cfr. T.J. Cam. 28, 4-10).
“Eis, Senhor, que dizeis à minha alma: ‘o meu reino está dentro de ti’. Grande contentamento é para mim saber que não Vos afastais nunca de mim e que eu não posso viver sem Vós. Que mais desejas, ó minha alma, que mais procuras fora de ti mesma, quando dentro de ti possuis as tuas riquezas, os teus deleites, a tua satisfação, a tua fatura e o teu reino, isto é, o Amado que tu desejas e buscas?” (cfr. J.C. C. 1, 7 e 8).
“Ó meu Deus, Vós estais em mim e eu em Vós. Encontrei o meu céu na terra, porque o céu sóis Vós, Senhor, e Vós estais na minha alma. Aqui Vos encontro sempre, mesmo quando o sentimento não adverte a Vossa presença. Mas Vós mesmo estais aqui e aqui me agrada tanto procurar-Vos, Oh! que eu nunca Vos deixe só” (cfr. I.T. Cart.).
(Intimidade Divina, Meditações Sobre a Vida Interior Para Todos os Dias do Ano, P. Gabriel de Sta M. Madalena O.C.D. 1952.)