LEMBRANÇA DA PRESENÇA DE DEUS
I. Presença de Deus em toda parte
II. Utilidade da lembrança da presença de Deus
III. Sentimento que o pensamento de Deus naturalmente excita nos nossos corações
IV. Meios de nos colocarmos na presença de Deus
V. Principais razões pelas quais nos colocamos na presença de Deus
VI. Diferença entre pôr-se e manter-se na presença de Deus
VII. A lembrança da presença de Deus e o sentimento dessa Divina presença
VIII. Felicidade de nos lembrarmos da presença de Deus
IX. Retiro espiritual
ORAÇÕES JACULATÓRIAS
I. A oração jaculatória
II. Grande utilidade das orações jaculatórias
III. Fonte das orações jaculatórias
IV. Modo de fazer as orações jaculatórias
V. " Vindimas espirituais "
VI. Facilidade da prática das orações jaculatórias
VII. Convite das criaturas a nos elevarmos a Deus
VIII. As orações jaculatórias durante as doenças
IX. Exortação a fazer com frequência orações jaculatórias
X. O mesmo assunto
Oração de S. Francisco de Sales à SS. Virgem
I
Presença de Deus em toda parte.
O primeiro, principal e fundamental artigo de fé é crermos que há um só e verdadeiro Deus. O segundo artigo principal é que esse Deus único e verdadeiro é Pai, Filho e Espirita Santo, sendo o Pai a primeira Pessoa da SS. Trindade, o Filho a segunda e o Espírito Santo a terceira; de sorte que as três Pessoas não são vários deuses, mas sim um único Deus verdadeiro, se bem que uma das Pessoas não seja a outra; porquanto o Pai não é o Filho, e o Filho não é o Espírito Santo, sendo cada um uma Pessoa distinta. Cumpre, ainda, saber que o Pai, o Filho e o Espírito Santo, um só Deus verdadeiro, estão em toda parte, e totalmente pelo mundo todo, como a vossa alma está no vosso corpo todo; mas, por isto que no céu a sua divina Majestade se manifesta mais claramente, mais claramente imaginamos a sua presença no céu.
Deus é um espirito infinito, causa e movimento de todas as coisas, no qual e pelo qual tudo existe, tudo subsiste e tudo tem o seu movimento. Por conseguinte, ele é invisível por si mesmo, só podendo ser visto na humanidade de Nosso Senhor, que ele uniu à sua divindade. E' infinito, está em toda parte, sustenta tudo pelo seu poder; nada o contém para abrangê-lo ; assim, ele abrange e contém tudo, sem ser contido por coisa alguma.
Em suma, assim como a nossa alma está no nosso corpo sem que a vejamos, assim também Deus está no mundo sem que o vejamos; assim como nossa alma mantém em vida todo o nosso corpo enquanto está nele, assim também Deus mantém em ser todo o mundo enquanto está nele; e, se o mundo deixasse de estar em Deus, deixaria imediatamente de existir; e como, de certo modo, nossa alma está em nosso corpo de tal sorte que o deixa de estar fora dele, não estando contida nela, já que vê, ouve, faz suas operações fora do nosso corpo e para além deste, assim também Deus está no mundo de tal arte, que não deixa de estar fora do mundo, e além do mundo e de tudo o que podemos pensar: e, por fim, Deus é o soberano ser, principio e causa das coisas que são boas, isto é, que não são pecado.
E' um abismo: é o espirito que tudo vivifica, que causa tudo, que conserva tudo, do qual todas as coisas precisam para existir; e ele não precisa de coisa alguma, jamais tendo sido senão infinito em tudo o que é, e beatíssimo, não podendo nem começar a ser nem acabar, porque é eterno, e eterno não pode deixar de ser. Só a ele seja dada honra e glória. Amém.
Ainda que, tanto no céu como na terra, Deus esteja sempre, por uma presença perfeita, em todo lugar, como diz, por Jeremias, "Encho o céu e a terra" (23, 24), e, por S. Paulo, "que não está longe de cada um de nós, porque nele nós vivemos, nos movemos e subsistimos" (At 17, 28), não obstante sempre sucede haver certos lugares que, sendo-lhe consagrados, são chamados casa de Deus, habitação, lugar, templo, tabernáculo, não porque ele esteja neles mais do que alhures ( falando de Deus na sua Divindade) , mas porque neles confere de modo particular as suas graças e bênçãos, e faz neles mais demonstrações da sua glória.
II
Utilidade da lembrança da presença de Deus.
Pela presença de Deus principiai toda espécie de oração, quer mental, quer vocal, e mantende esta regra sem exceção, e em pouco tempo vereis quão proveitosa vos será.
Bem certo é que vossas consolações me consolam grandemente, mas sobretudo quando são fundadas em pedra tão firme como é a do exercício da presença de Deus. Andai, pois, sempre assim perto de Deus, pois a sua sombra é mais salutar que o sol.
Não é mau tremer, às vezes, diante daquele em cuja presença os Anjos tremem quando o miram na sua majestade ; contanto, todavia, que o santo amor, que predomina em todas as suas obras, predomine também sempre como começo e fim das vossas considerações.
A modéstia por excelência é o decoro do nosso porte exterior. E' ela extremamente recomendável por várias razões, e primeiramente porque nos sujeita muito; não há virtude em que se faça mister atenção tão particular; e em nos sujeitar consiste o seu grande valor, pois tudo quanto nos sujeita por Deus é de grande mérito e maravilhosamente agradável a Deus. A segunda razão é que ela não nos sujeita só por um tempo, senão sempre e em todo lugar, tanto estando sós como acompanhados, e em todo tempo, até mesmo dormindo. Um grande santo escreveu a um discípulo seu dizendo-lhe que se deitasse modestamente na presença de Deus, tal como faria alguém a quem Nosso Senhor, estando ainda em vida, mandasse dormir e deitar-se na sua presença; e, diz o santo, embora não o vejas e não ouças a ordem que ele te dá, não deixes de fazer isso tal como se o viras, porque de fato ele te está presente e te guarda enquanto dormes. O' meu Deus, como nos deitaríamos modesta e devotamente se vos víssemos! Sem dúvida, cruzaríamos os braços sobre o peito com grande devoção. A modéstia, pois, sujeitamos sempre e todo o tempo da nossa vida, pelo fato de nos estarem sempre presentes os Anjos, e o próprio Deus, ante cujas vistas nos mantemos em modéstia.
Quando estivermos na presença de Deus, devemos ter duas atenções: uma nele e outra no que estivermos fazendo.
A maioria das faltas que cometem no cumprimento do seu dever as pessoas piedosas vêm do fato de se não conservarem elas bastante na presença de Deus.
O exercício da presença de Deus é o guarda da pureza e da inocência.
Não me digais que nada fazeis na oração. E que quereríeis fazer nela senão o que fazeis, que é apresentar e representar a Deus o vosso nada e a vossa miséria? A mais bela fala que nos dirigem os mendigos é exporem à nossa vista as suas úlceras e necessidades. Mas, às vezes ainda, conforme dizeis, não fazeis nada de tudo isso, mas ficais, na oração, como um fantasma e uma estátua. Pois bem, não é pouco isso. Nos palácios dos príncipes e dos reis colocam-se estátuas que só servem para recrear a vista do príncipe: contentai-vos, pois, com servir disso na presença de Deus, e, quando lhe aprouver, ele animará essa estátua.
As árvores só frutificam pela presença do sol, umas mais cedo, outras mais tarde, umas todos os anos, outras de três em três, e nem sempre igualmente. Bem felizes somos nós de podermos ficar na presença de Deus, e contentemo-nos de que ele nos faça dar o fruto cedo ou tarde, ou todos os dias ou às vezes, conforme o seu beneplácito, a que plenamente nos devemos resignar.
Conservai sempre vossa alma sentada e em repouso diante de Deus durante os exercícios exteriores, e erguida e movediça durante os interiores, como fazem as abelhas, que não voam nas colmeias e ao fazerem o seu serviço doméstico, porém só à saída. Enquanto estivermos no meio dos afazeres, devemos forcejar por conseguir a tranquilidade do coração, e por manter nossa alma sossegada na oração; se ela quiser voar, que voe; se quiser mexer-se, que se mexa; se bem que a tranquilidade e o simples repouso da alma em ver a Deus, em querer a Deus e em saborear a Deus ainda seja extremamente excelente.
Como fazeis bem em achardes Deus bom e meigo, e em lhe saboreardes a paternal solicitude para convosco, de modo que, estando vós agora num lugar onde não podeis dispor de tempo para vos exercitardes na meditação, em compensação ele se apresente mais frequentemente ao vosso coração para fortificá-lo por sua sagrada presença! Sede fiel a esse divino Esposo de vossa alma, e cada vez mais vereis que, por mil meios, ele vos fará aparecer o caro amor que vos tem.
Não me espanto, pois, se, dando-vos o gosto da sua presença, Deus vos vai desgostando aos poucos do mundo. Sem dúvida, nada faz achar o azevre tão amargo quanto alimentar-se de mel. Quando saborearmos as coisas divinas, já não será possível nos venham as coisas mundanas dar apetite. E seria possível que, depois de considerarmos a bondade, a firmeza, a eternidade de Deus, amássemos esta misera vaidade do mundo? Ora, temos que suportar e tolerar essa vaidade do mundo; mas só devemos amar e apreciar a verdade do nosso bom Deus, que para sempre seja louvado por vos conduzir a esse santo desprezo das loucuras terrenas.
III
Sentimento que o pensamento de Deus naturalmente excita nos nossos corações.
Logo que o homem pensa um pouco atentamente na Divindade, sente certa suave emoção de coração, que testemunha que Deus é Deus do coração humano ; e nunca o nosso intelecto tem mais prazer do que nesse pensamento da Divindade, cujo menor conhecimento, como diz o Príncipe dos filósofos, vale mais do que o maior conhecimento das outras coisas, assim como o menor raio de sol é mais claro do que o maior raio da lua ou das estrelas, sendo até mais luminoso do que a lua e as estrelas juntas. Se algum acidente nos assusta o coração, logo recorre este à Divindade, confessando que, quando tudo lhe é mau, só ela lhe é boa, e que, quando ele está em perigo, só ela, como seu sumo bem, pode salvá-lo e garanti-lo.
Este prazer, esta confiança que o coração humano tem naturalmente em Deus, certamente só pode provir da conveniência existente entre essa divina bondade e nossa alma : conveniência grande, mas secreta; conveniência que cada um conhece e pouca gente entende ; conveniência que se não pode negar, mas que bem se pode apreender. Somos criados à imagem e semelhança de Deus: que quer isto dizer senão que temos uma extrema conveniência com a sua divina Majestade? Nossa alma é espiritual, indivisível, imortal; entende, quer, e quer livremente; é capaz de julgar, discursar, saber e ter virtudes; e nisto se assemelha a Deus. Reside toda no corpo todo, e toda em cada uma das partes deste, assim como a Divindade está toda em todo o mundo,. e toda em cada parte do mundo. O homem se conhece e se ama a si próprio por atos produzidos e expressos pelo seu intelecto, os quais, procedendo do intelecto e da vontade distintos um do outro, não obstante ficam e permanecem inseparavelmente unidos na alma e nas faculdades de que procedem. Assim o Filho procede do Pai, como o seu conhecimento expresso, e o Espirito Santo procede de ambos, como o amor expirado e produzido do Pai e do Filho; Pessoas estas ambas, Filho e Espirito Santo, distintas entre si e distintas do Pai, e, não obstante, inseparáveis e unidas, ou, muito antes, uma mesma, única, simples e indivisível Trindade.
Mas, além dessa conveniência de similitude, há uma correspondência ímpar entre Deus e o homem para sua reciproca perfeição; não que Deus possa receber do homem alguma perfeição, mas porque, como o homem só pode ser aperfeiçoado pela divina Bondade, assim também a divina Bondade não pode simplesmente exercer tão bem a sua perfeição fora de si como em relação à nossa humanidade: uma tem grande necessidade e grande capacidade de receber o bem, e a outra tem grande abundância e grande inclinação para dá-lo. Para a indigência nada é tão oportuno como uma liberal afluência, e a uma liberal afluência nada é tão agradável como uma necessitada indigência; e, quanto mais afluência tem o bem, quanto mais forte é a inclinação de se expandir e comunicar, tanto mais necessitado é o indigente, tanto mais ávido de receber, como um vácuo de se encher. Doce e desejável encontro é, pois, esse da afluência com a indigência, e quase não poderíamos dizer quem é que tem mais contentamento, se o bem abundante em se expandir e comunicar, se o bem faltante e indigente em receber e tirar, se Nosso Senhor não tivesse dito que coisa mais ditosa é dar do que receber. Ora, onde há mais felicidade há mais satisfação: mais prazer tem, pois, a divina Bondade em dar suas graças do que nós em recebê-las.
Considerando, pois, que nada a contenta perfeitamente, e que a sua capacidade não pode' ser preenchida por coisa alguma que esteja no mundo, vendo que o seu intelecto tem uma inclinação infinita para saber sempre mais e a sua vontade um apetite insaciável para amar e achar o bem, não tem nossa alma razão de exclamar: Ah! logo, não sou feita para este mundo! Há algum sumo bem de que eu dependo, e algum obreiro infinito que imprimiu em mim esse intérmino desejo de saber e esse apetite que não pode ser saciado: eis por que é preciso que eu tenda e me estenda para ele, para me unir e juntar à sua bondade, a que pertenço e de quem sou.
Já que esta vida é cheia de misérias, nela não podemos ter nenhum consolo mais sólido do que estarmos certos de se ir ela dissipando para dar lugar a essa santa eternidade que nos é preparada na abundância da misericórdia de Deus, e à qual nossa alma aspira incessantemente pelos contínuos pensamentos que a sua própria natureza lhe sugere, posto que não a possa esperar senão por outros pensamentos mais elevados que o Autor da natureza infunde nela.
De certo, eu nunca sou atento à eternidade senão com multa suavidade; porquanto, digo, como poderia minha alma estender seu pensamento a essa infinidade, se não tivesse alguma espécie de proporção com ela? Certamente, sempre é de mister que a faculdade que atinge um objeto tenha com esse objeto alguma sorte de conveniência. Mas, quando sinto que o meu desejo corre atrás do meu pensamento sobre essa mesma eternidade, o meu contentamento toma um incremento inigualado; pois sei que nunca desejamos com verdadeiro desejo senão as coisas possíveis: que mais me resta então senão esperar que o hei de ter? E isto me é dado pelo conhecimento da infinita bondade d'Aquele que não teria criado uma alma capaz de pensar e de temer para a eternidade, se lhe não tivesse querido dar os meios de alcançá-la. Assim, achamo-nos ao pé do Crucifixo, escada pela qual, destes anos temporais, passamos aos anos eternos.
IV
Meios de nos colocarmos na presença de Deus.
Ora, para vos colocardes na presença de Deus, proponho-vos quatro meios principais.
O primeiro reside numa viva e atenta compenetração da onipresença de Deus, isto é, de estar Deus em tudo e em toda parte, e de não haver lugar nem coisa neste mundo em que ele não esteja com presença mui verdadeira; de sorte que, assim como as aves, onde quer que voem, encontram sempre o ar, assim também, onde quer que vamos, onde quer que estejamos, achamos Deus presente. Cada um sabe esta verdade, mas cada um não é atento em apreendê-la. Por não verem um príncipe que lhes está presente, nem por isso deixam os cegos de conservar-se em respeito se são avisados da presença dele; a verdade, porém, é que, por não o verem, facilmente se esquecem de estar ele presente, e, esquecendo-o, ainda mais facilmente perdem o respeito e a reverência. Ai! nós não vamos a Deus que nos está presente; e, posto que a fé nos advirta da sua presença, todavia, não o vendo com os nossos olhos, muitíssimas vezes o esquecemos, e nos comportamos como se Deus estivesse bem longe de nós ; porquanto ainda, embora saibamos estar ele presente a todas as coisas, não obstante, não pensando nisso, é exatamente como se o não soubéssemos. Eis por que sempre, antes da oração, devemos provocar nossa alma a um atento pensamento e consideração dessa presença de Deus. Foi essa a compreensão de David, quando exclamava: "Se subo ao céu, ó meu Deus, lá estais; se desço aos infernos, lá estais"; e, assim, devemos usar das palavras de Jacó, o qual, tendo visto a escada sagrada, disse: “Oh! que temível é este lugar! Verdadeiramente Deus está aqui, e eu não sabia”. Quer ele dizer que não pensava nisso; porque, de resto, ele não podia ignorar que Deus estivesse em tudo e em toda parte. Vindo, pois, à oração, deveis dizer-vos, de todo coração ao vosso coração : Ó meu coração, meu coração, verdadeiramente Deus está aqui".
O segundo meio de vos pordes na sua sagrada presença é pensardes que Deus não só está no lugar em que estais, mas está mui particularmente no vosso coração, e no fundo do vosso espírito, que ele vivifica e anima por sua divina presença, estando ai como o coração do vosso coração e como o espírito do vosso espírito; porquanto, assim como a alma, estando presente por todo o corpo, presente se acha em todas as partes deste, e, não obstante, reside no coração com especial residência, assim também Deus, estando mui presente em todas as coisas, todavia está presente de modo especial no nosso espírito: e por isso Davi chamava a Deus "Deus do seu coração", e S. Paulo dizia que "nós vivemos, nos movemos e existimos em Deus". Na consideração, pois, desta verdade, excitareis em vosso coração uma grande reverência para com Deus, que lhe está tão intimamente presente.
O terceiro meio é considerardes o nosso Salvador, que na sua humanidade olha, do céu, todas as pessoas do mundo, mas particularmente os cristãos, que são seus filhos, e mais especialmente os que estão em oração, cujas ações e comportamento ele nota. Ora, isto não é simples imaginação, senão uma verdade verdadeira; porquanto, ainda que o não vejamos, todavia lá de cima ele nos considera : assim o viu Santo Estêvão no tempo do seu martírio. De sorte que bem podemos dizer com a Esposa dos Cânticos: "Ei-lo que está por trás da parede vendo pelas janelas, olhando pelas grades".
O quarto meio consiste em nos servirmos da imaginação, representando-nos o Salvador na sua humanidade, como se estivesse perto de nós, tal como nos acostumamos a representar os nossos amigos, e dizermos: imagino estar vendo fulano que faz isto e aquilo, parece-me que o estou vendo, ou coisa semelhante. Mas, se estivesse presente o SS. Sacramento do altar, então essa presença seria real, e não puramente imaginária; porque as espécies e aparências do pão seriam como que uma tapeçaria por trás da qual Nosso Senhor realmente presente nos vê e considera, posto não o vejamos na sua própria forma.
V
Principais razões pelas quais nos colocamos na presença de Deus.
A pressa é um dos maiores traidores que a devoção e verdadeira virtude possa encontrar. Simula aquecer-nos no bem, mas é só para nos arrefecer, e não nos faz correr senão para nos fazer tropeçar. E' por isto que nos devemos resguardar dela em todas as ocasiões, e particularmente na oração.
E, para vos auxiliar nisso, lembrai-vos de que as graças e bens da oração não são águas da terra, mas do céu, e que portanto todos os nossos esforços não as podem adquirir. Devemos ter o coração aberto para o céu e aguardar o santo orvalho. E nunca vos esqueçais de trazer à oração esta consideração: nela é que nós nos aproximamos de Deus e nos colocamos na sua presença, por duas razões principais.
A primeira é para prestarmos a Deus a honra e a homenagem que lhe devemos, e isto pode fazer-se sem que ele nos fale, nem nós a ele; pois esse dever se cumpre reconhecendo que ele é nosso Deus e nós suas vis criaturas, e permanecendo diante dele prostrados em espirita, aguardando as suas ordens. Quantos cortesãos não há que vão cem vezes à presença do Rei, não para lhe falar, nem para ouvi-lo, mas simplesmente a fim de serem por ele vistos e testemunharem, por essa assiduidade, que são seus servos? E esse intuito de nos prostrarmos diante de Deus só para testemunharmos e protestarmos a nossa vontade e reconhecimento no seu serviço é muito excelente, muito santo e muito puro, e, por conseguinte, de grandíssima perfeição.
A segunda causa pela qual nos apresentamos diante de Deus é para falar com ele e ouvi-lo falar-nos por suas inspirações e movimentos interiores; e ordinariamente isto se faz com prazer mui delicioso, por isto que grande bem nos é falar a tão grande Senhor, e, quando ele responde, derrama mil bálsamos e unguentos preciosos, que dão grande suavidade.
Ora, um desses dois bens nunca nos pode faltar na oração. Se pudermos falar a Nosso Senhor, falemos; louvemo-lo, roguemo-lo. Se não pudermos falar, por estarmos roucos, fiquemos contudo no quarto e façamos-lhe reverência; ele nos verá lá, aceitará a nossa paciência e favorecerá o nosso silêncio. De outra vez, ficaremos tão deslumbrados, que ele nos tomará pela mão, e conversará conosco, e dará cem voltas conosco pelas aléias do seu jardim de oração; e, quando nunca o fizesse, contentemo-nos com que seja nosso dever andar atrás dele, e que grande graça e honra extrema nos seja o sofrer-nos ele em sua presença. Destarte, não nos apressaremos para lhe falar, visto que a outra ocasião de estarmos ao pé dele não nos é menos útil, e talvez seja até muito mais, conquanto um pouco menos agradável ao nosso gosto.
Quando, pois, vierdes ao pé de Nosso Senhor, falai-lhe se puderdes; se não puderdes, ficai ai, fazei-vos ver e não vos deis pressa de outra coisa.
VI
Diferença entre pôr-se e manter-se na presença de Deus.
O vosso modo de oração é bom; somente, sede bem fiel em ficar ao pé de Deus nessa suave e tranquila atenção de coração, e nesse doce adormecimento nos braços da sua providência, e nessa meiga aquiescência à sua santa vontade, pois agradável lhe é tudo isto.
Conservar-se na presença de Deus e colocar-se na presença de Deus são, a meu ver, duas coisas; porquanto, para se lhe pôr na presença importa tirar a alma de qualquer outro objeto e torná-la atenta a essa presença atualmente, assim como o digo no livro ("Vida devota") .
Mas, depois de nos havermos colocado nessa presença, nela sempre nos mantemos enquanto, ou pelo intelecto, ou pela vontade, fazemos atos para com Deus, seja visando a ele mesmo, seja visando qualquer outra coisa por amor dele; ou nada visando, mas falando-lhe; ou não o visando nem lhe falando, mas simplesmente ficando onde ele nos pôs, qual estátua no seu nicho. E, quando a essa simples permanência se j unta algum sentimento de sermos de Deus e de ser ele o nosso Tudo, bem devemos dar graças à sua bondade.
Se uma estátua, que soubéssemos colocada no seu nicho no meio de uma sala, falasse e lhe perguntássemos: Porque ai estás?, ela diria: Porque meu amo o estatuário aqui me pôs. - E por que não te mexes? - Porque ele quer que eu fique imóvel. - E de que serves ai? Que proveito tiras de estar assim? - Não é para meu serviço que aqui estou, é para servir e obedecer à vontade de meu amo. - Mas não o vês? - Não, diria ela, porém ele me vê e gosta de que eu esteja onde ele me pôs. - Mas não quererias ter movimento para ires mais para perto dele? - Não, a não ser que ele me ordenasse. - Então nada desejas? - Não, pois estou onde meu amo me pôs, e o gosto dele é o único contentamento de meu coração.
Meu Deus, que boa oração e que bom modo de se manter na presença de Deus é mantermo-nos na sua vontade e beneplácito! Parece-me que Madalena era uma estátua no seu nicho quando, sem tugir nem mugir, sem se mexer, e quiçá sem o olhar, escutava o que Nosso Senhor dizia, sentada a seus pés. Quando ele falava, ela escutava; quando ele deixava de falar, ela deixava de escutar, e no entanto 'lá estava sempre. Uma criancinha que está dormindo no seio de sua mãe está verdadeiramente no seu bom e desejável lugar, posto que a mãe não lhe diga palavra, nem a criança a ela.
O' Deus verdadeiro, que boa maneira de se conservar na presença de Deus é estar e querer sempre e para sempre estar no seu beneplácito! Porquanto assim, conforme penso, em todas as ocorrências, até mesmo dormindo profundamente, ainda mais profundamente estamos na santíssima presença de Deus. Sim, certamente, porque, se o amamos, adormecemos não só na sua vista mas a seu agrado, e não só pela sua vontade, senão segundo a sua vontade ; e parece que ele próprio, nosso Criador e Escultor celeste, é quem nos deita lá nos nossos leitos, quais estátuas nos seus nichos, a fim de que nos aninhemos nos nossos leitos como as aves se deitam nos seus ninhos ; depois, no nosso despertar, se pensarmos bem nisso, achamos que Deus nos esteve sempre presente, e que nós também não nos afastamos nem separamos dele. Estivemos, pois, lá, na presença do seu beneplácito, posto que sem o vermos e sem repararmos; de sorte que, à imitação de Jacob, poderíamos dizer: Verdadeiramente eu dormi ao pé de meu Deus e nos braços da sua divina presença e providência, e absolutamente não o sabia.
Em todas as vossas ações estareis na presença de Deus se as fizerdes todas por Deus. Comei, dormi, trabalhai para ele; isso é estar na presença dele. Não está em nosso poder tê-lo atualmente, a não ser por uma graça particular. Fazendo algumas obras em que temos de pôr nossa atenção, de vez em quando devemos repor nosso espirito em Deus; e, quando faltarmos a isso, devemo-nos humilhar, e da humildade ir a Deus, e de Deus à humildade, com confiança, falando-lhe como o filho fala a sua mãe, pois ele bem sabe o que nós somos.
VII
A lembrança da presença de Deus e o sentimento dessa divina presença.
Perguntais como poderíeis fazer para levar vossa mente direito a Deus, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda. Muito agradável me é a vossa proposição, tanto mais quanto traz consigo a resposta: há que fazer isso que dizeis, isto é, ir a Deus sem olhar nem para a direita nem para a esquerda. Não é isto o que perguntais, bem o vejo; mas perguntais como poderíeis fazer para firmar de tal modo a vossa mente em Deus, que nada possa desprendê-la nem retirá-la dele. Duas coisas são necessárias: morrer e ser salvo, porquanto depois disso nunca haverá separação, e o vosso espirito estará indissoluvelmente preso e unido a seu Deus.
Dizeis que não é ainda isso o que perguntais, mas sim o que poderíeis fazer para impedir que a menor mosca retire de Deus a vossa mente, assim como faz; quereis dizer a menor distração. Perdoai-me, mas a menor mosca de distração não retira de Deus a vossa mente, tal como dizeis, pois nada nos retira realmente de Deus senão o pecado; e a resolução que tomamos pela manhã, de mantermos nosso espírito unido a Deus e atento à sua presença, faz que fiquemos sempre nessa presença, até mesmo quando dormimos, já que dormimos em nome de Deus e segundo a sua Santíssima vontade. Parece mesmo que a sua divina Bondade nos diz: Dormi e repousai, e entrementes eu terei os olhos sobre vós para vos guardar e defender do leão rugidor que anda sempre em torno de vós para vos poder destruir. Vede, pois, se não temos razão para nos deitarmos modestamente, assim como havemos dito. O meio de fazermos bem tudo quanto fazemos é sermos bem atentos à presença de Deus; pois nenhum de nós o ofenderá vendo que ele nos olha. Os próprios pecados veniais não são capazes de nos desviar da trilha que conduz a Deus; sem dúvida, eles nos sustam um pouco no nosso caminho, mas toda via não nos desviam dele, e muito menos as simples distrações; e isto disse-o eu na Introdução ("Introd. à vida devota") .
No que concerne à oração, não nos é ela menos útil, nem menos agradável a Deus, do que se tivéssemos nela muita consolação, porque nela há mais trabalho, contanto todavia que tenhamos a fidelidade de nos retirarmos dessas distrações e não deixemos a mente deter-se nelas voluntariamente.
O mesmo sucede com o custo que temos, ao longo do dia, de determos nosso esp1- rito em Deus e nas coisas celestes, contanto que tenhamos o cuidado de retirar o nosso espírito para impedi-lo de correr atrás dessas moscas e borboletas, como uma mãe faz com seu filho. Ela vê que esse pobre pequeno gosta de correr atrás das borboletas, cuidando apanhá-las ; ela o retira e o retém incontinenti pala braço, dizendo-lhe: Meu filho, tu te consumirás a correr atrás dessas borboletas, ao sol; melhor é que fiques ao pé de mim. Esse pobre filho ai fica até a tempo de ver outra borboleta, atrás da qual estaria igualmente pronto a correr, se a mãe o não retirasse como antes. E que fazer ai senão termos paciência e não nos cansarmos do nosso trabalho, já que ele é tomado por amor de Deus?
Mas, se me não engano, quando dizemos que não podemos achar a Deus, e que nos parece estar ele muito longe de nós, que remos dizer que não podemos ter o sentimento da sua presença. Tenho notado que muitas pessoas não fazem diferença entre Deus e o sentimento de Deus, entre a fé e o sentimento de fé; o que constitui um grandíssimo defeito. Quando elas não sentem Deus, parece-lhes que não estão na presença dele, e isto é uma ignorância; porquanto uma pessoa que vai sofrer o martírio por Deus, e que não obstante não pensa em Deus durante esse tempo, senão na sua pena, por não ter o sentimento da fé nem por isso deixa de merecer em favor da sua primeira resolução, e de fazer um ato de grande amor. Muito há que dizer do ter a presença de Deus (entendo o estar em sua presença), e do ter o sentimento da sua presença; só Deus nos pode fazer esta graça; porque, dar-vos os meios de adquirir esse sentimento, isto não me é possível.
Perguntais como devemos fazer para nos mantermos com grande respeito diante de Deus, como sendo indignos desta graça. Não há outro meio de fazê-lo senão como dizeis: considerar que ele é nosso Deus e que nós somos suas fracas criaturas, indignas dessa honra; como fazia S. Francisco (de Assis), que passou uma noite toda interrogando a Deus nestes termos: "Quem sois vós, e quem sou eu?"
Requer-se, contudo, mantermo-nos em grande reverência em falando à divina Majestade, já que os Anjos, tão puros, tremem na presença dela. Porém, meu Deus, dirão algumas pessoas, nem sempre eu posso ter esse sentimento da presença de Deus que causa tamanha humilhação à alma, nem essa reverência sensível que me faz aniquilar-me tão doce e agradavelmente diante de Deus. Ora, também não é dessa presença que eu entendo falar, mas daquela que faz que a parte suprema e a ponta do nosso espirito se conserve baixa e em humildade perante Deus, em reconhecimento da sua infinita grandeza e da nossa profunda pequenez e indignidade.
VIII
Felicidade de nos lembrarmos da presença de Deus.
Não podemos ter uma continua presença de Deus, isto só aos Anjos pertence; basta nos mantermos nela tanto quanto nos for possível, e elevarmos amiúde nossa mente a Deus; não entendo termos sempre a mente atada. Que, se aquilo que estivermos fazendo nos puxar para fora da nossa atenção em Deus, e se for coisa necessária, não nos devemos afligir. Basta fazerdes todas as vossas ações por Deus, mui simplesmente; e, ainda quando não tivésseis pensado em retificar a vossa intenção antes de fazer e principiar a vossa ação, basta fazê-lo depois, e não concebais nenhum escrúpulo: a intenção geral que fazemos pela manhã basta. Quando fazemos alguma coisa por Deus, é isso estarmos na sua presença; o desejo que temos de nos conservarmos na sua presença serve-nos de atenção à presença da sua Bondade. Não nos devemos admirar quando não nos conservarmos nessa santa presença como desejaríamos. Bem felizes somos de ter esse santo afeto de servir a Deus, e não devemos fazer caso de não ter o sentimento que desejáramos ter no seu serviço.
O exercício da presença de Deus é o caro exercício dos Bem-aventurados, ou, antes, o continuo exercício da sua bem-aventurança, consoante o que Nosso Senhor diz no Evangelho, que os Anjos veem continuamente, sem interrupção nem intermissão, a face do Pai celeste; pois não é a vida eterna o ver a Deus e estar sempre na sua presença, à feição dos Anjos, que são chamados assistentes ao sólio de Deus? Se a Rainha de Sabá reputava bem-aventurados os servos e os cortesãos de Salomão que estavam sempre na presença deste e que escutavam as palavras de sabedoria que lhe saiam da boca, quão mais venturosos aqueles que, estando neste mundo em estado de graça, estão continuamente atentos à santa presença d'Aquele que os Anjos desejam ver, posto o vejam incessantemente !
Andai sempre diante de Deus e diante de vós. Deus acha prazer em vos ver dar os vossos passinhos, e, como um bom Pai que segura o filho pela mão, acomodará os seus passos aos vossos e se contentará de não andar mais depressa do que vós. Com que vos preocupais? Com ir para um lado ou para outro, com ir depressa ou devagar? Contanto que ele esteja convosco e vós com ele, andai alegremente, com extrema confiança na misericórdia do vosso Esposo, e crede que ele vos conduzirá bem; deixai-o, porém, fazer.
Oh! Que feliz é a alma que, na tranquilidade do seu coração, conserva amorosamente o sagrado sentimento da presença de Deus! Porque a sua união com a divina Bondade lhe embeberá o espírito todo da infinita suavidade. . . E porque haveria de inquietar-se a alma recolhida em Deus? Não tem ela toda razão para ficar em repouso? Porquanto, que procuraria ela, já que achou aquele a quem buscava? Resta-lhe só exclamar: Achei aquele que meu coração ama, e não o largarei.
Oh! Como são felizes essas almas que, desde esta estância mortal, escolheram essa ótima parte de Maria que lhes não será tirada eternamente!
IX
Retiro espiritual.
E' aqui onde eu vos quero muito afeiçoado a seguir o meu conselho; porque neste artigo consiste um dos mais seguros meios do vosso adiantamento espiritual. Assim como as aves têm ninhos nas árvores para fazerem seu retiro quando precisam, e os veados têm as suas moitas e os seus fortes onde se escondem e se põem a coberto, tomando a frescura da sombra no estio, assim também os nossos corações devem tomar e escolher algum lugar cada dia, ou no monte do Calvário, ou nas chagas de Nosso Senhor, ou em qualquer outro lugar próximo a ele, para ai fazer o seu retiro em toda sorte de ocasiões, e para ai se aliviar e recrear no meio dos negócios exteriores, e ai estar como num forte, a fim de se defender das tentações. Ditosa a alma que puder dizer em verdade a Nosso Senhor: Sois a minha mansão de refúgio, o meu baluarte seguro, o meu teto contra a chuva e a minha sombra contra o calor.
Lembrai-vos, pois, de fazer sempre vários retiros na solidão do vosso coração, enquanto corporalmente estiverdes entre as conversações e os afazeres; e essa solidão mental absolutamente não pode ser impedida pela multidão daqueles que vos estão em volta, pois eles não estão em volta do vosso coração, senão em volta do vosso corpo, de sorte que o vosso coração permanece sozinho na presença de Deus. Era esse o exercício que o rei David fazia no melo de tantas ocupações que tinha, tal como ele mesmo testemunha por mil passos dos seus salmos, como quando diz: O' Senhor, estou sempre convosco. Vejo meu Deus sempre diante de mim.
Elevei meus olhos a vós, ó meu Deus, que habitais no céu. Meus olhos estão sempre em Deus. E também as conversações não são geralmente tão sérias que se não possa, de vez em quando, retirar delas o coração para repô-lo nessa divina solidão.
Havendo o pai e a mãe de Santa Catarina de Sena tirado a esta toda comodidade do lugar e o vagar para rezar e meditar, inspirou-a Nosso Senhor a fazer um pequeno oratório interior no seu espirita, dentro do qual retirando-se mentalmente, pudesse, entre os afazeres exteriores, cuidar dessa santa solidão cordial. E depois, quando o mundo a atacava, ela não sofria nenhum vexame com isso, porque, dizia ela, se fechava no seu gabinete interior, onde se consolava com seu celeste Esposo. Por isto, desde então aconselhava ela a seus filhos espirituais fazerem um quarto no coração e ficarem nele.
Em suma, ide estabelecendo cada vez mais os vossos bons propósitos, as vossas santas resoluções: aprofundai cada vez mais a vossa consideração nas chagas de Nosso Senhor, onde achareis um abismo de razões que vos confirmarão na vossa generosa empresa e vos farão sentir o quanto é vil e vão o coração que faz alhures a sua morada, que se aninha noutra árvore que não na da Cruz. O' meu Deus, que felizes seremos se vivermos nesse santo Tabernáculo! Não: nada, nada no mundo é digno do nosso amor; deve ele ser todo desse Salvador que nos deu todo o seu.
Entrai cada dia da semana, devotamente, numa das chagas sagradas do nosso doloroso e amoroso Salvador. No domingo, entrai na chaga do lado; na segunda, na do pé esquerdo; na terça, na do pé direito; na quarta, na da mão esquerda; na quinta, na da mão direita; na sexta, nas cicatrizes da sua adorável Cabeça; no sábado, volvei ao seu lado sagrado, a fim de por ele começardes e acabardes a vossa semana.
X
Urgentes recomendações do santo Doutor.
Desejais saber como se entende que se deva meditar dia e noite na lei de Deus. E' fazendo todas as nossas ações para sua maior glória, e mantermos nosso coração atento a ele; e nem por isto penseis que seja preciso estarmos sempre de joelhos.
Tomai por hábito colocar-vos na presença de Deus à noite antes do vosso repouso, agradecendo-lhe o haver-vos conservado; pela manhã fazei assim também, preparando-vos para servir a Deus durante o dia, oferecendo-vos ao seu amor.
Conservai-vos bem na presença de Deus pelos meios que tiverdes.
Amais realmente a Deus? Se o amais, comprazer-vos-eis em considerá-lo a miúde, em falar com frequência a ele e dele, em unir-vos muitas vezes a ele no SS. Sacramento.
E' bom representarmos a Deus as nossas necessidades por um simples olhar, e invocá-lo no começo de todas as nossas ações. Pensai que o meigo Salvador está sentado no vosso coração como em seu trono, e olhai-o amiudadamente, humilhando-vos muito diante dele.
Chamai o mais frequentemente que puderdes, no correr do dia, vosso espirito à presença de· Deus, por um dos quatro modos que vos assinalei; olhai o que Deus faz e o que vós fazeis: ver-lhe-eis os olhos voltados para o vosso lado e perpetuamente fitos em vós por um amor incomparável. O' Deus, direis vós, por que não vos olho eu sempre como vós me olhais? Por que pensais em mim tantas vezes, meu Senhor, e por que penso eu tão pouco em vós? Onde estamos, ó minh'alma? O nosso verdadeiro lugar é Deus, e onde é que nos achamos?
Devemos ter Deus diante dos olhos sempre e em todo lugar, tanto estando sós como acompanhados, em todo tempo, até mesmo dormindo, deitando-nos modestamente na presença de Deus, como faria aquele a quem Nosso Senhor, estando ainda em vida, mandasse deitar-se e dormir na sua presença. O' meu Deus, quão modesta e devotamente nos deitaríamos se vos víssemos! Sem dúvida cruzaríamos os braços sobre o peito, com grande devoção.
No correr do dia, e entre os afazeres, o mais frequentemente que puderdes, examinai e vosso amor não se meteu muito adiante, se não está desordenado, e se não vos sustendes sempre por uma das mãos de Nosso Senhor. Se vos achardes embaraçado além de medida, acalmai vossa alma, tornai a pô-la em repouso. Imaginai como Nossa Senhora empregava calmamente uma das mãos enquanto segurava Nosso Senhor com a outra, ou no braço, na infância dele. Pois era com grande consideração.
Vivei, vivei todo em Deus, e não temais a morte: o bom Jesus é todo nosso; sejamos totalmente seus. Deu-no-lo nossa muito honrada Senhora: guardemo-lo bem, e coragem!
SEGUNDA PARTE
ORAÇÕES JACUJATÓRIAS
I
Primeiramente devemos saber que todas as coisas foram criadas para a oração, e que, quando Deus criou o Anjo e o homem, o fez a fim de que eles o louvassem eternamente lá no céu, se bem seja essa a última coisa que faremos, se último se pode chamar ao que é eterno. E' certo que os Anjos oram, e isto nos é mostrado em vários lugares da Sagrada Escritura. Mas, quanto aos homens que estão no céu, não temos tantos testemunhos, por isto que, antes de Nosso Senhor morrer, ressuscitar e subir ao céu, não havia homens no Paraiso: estavam todos no seio de Abraão. E', entretanto, coisa claríssima que os Santos e os homens que estão no Paraiso oram, de vez que os Anjos, com quem eles estão, também oram. Todos os homens podem orar, e nem um só pode escusar-se de fazê-lo, nem sequer os hereges. Verdade é que os grandes pecadores têm muita dificuldade em fazer oração. Não obstante, enquanto forem capazes da graça, podem fazer oração. Só o diabo é que não a pode fazer, porque só ele é incapaz de amor.
Os antigos cristãos educados por S. Marcos evangelista eram assíduos na oração, e por isto vários dos antigos Padres os apelidaram de os suplicantes, e outros os chamaram de médicos, porque por meio da oração achavam eles remédio para todos os seus males. Denominaram-nos ainda monges, por serem eles muito unidos, dado que o nome de monge significa único. Os filósofos pagãos diziam que o homem é uma árvore derrubada, donde podemos concluir o quanto a oração é necessária ao homem, visto como, não tendo terra suficiente para lhe cobrir as raízes, não pode a árvore subsistir; assim, o homem que não tem particular atenção para com as coisas celestes, também não pode subsistir.
Ora, consoante a maioria dos Padres, a oração outra coisa não é senão uma elevação da mente às coisas celestes; outros dizem que é um pedido; mas as duas opiniões não se contrariam, porquanto, elevando a nossa mente a Deus, podemos pedir-lhe o que nos parecer necessário.
O principal pedido que devemos fazer a Deus é a união das nossas vontades à sua, e a causa final da oração consiste em só querermos a Deus. Assim, está ai encerrada toda a perfeição, como disse Frei Gil, companheiro de S. Francisco de Assis, quando certo personagem lhe perguntou como poderia fazer para ser logo perfeito: "Dá, respondeu ele, uma a um"; quer dizer: Tens só uma alma e há só um Deus; dá-lhe a tua alma, e ele se dará a ti.
A perseverança é o dom mais desejável que possamos esperar nesta vida, e o qual, como diz o sacro Concilio de Trento, não podemos haver de outro senão de Deus, que é só quem pode firmar aquele que está de pé e levantar aquele que cai. Por isto é que é preciso continuamente pedi-lo, empregando os meios que Deus nos ensinou para obtê-lo: a oração, o jejum, o uso dos sacramentos, a frequentação dos bons, a audição e a leitura das santas Palavras. Ora, por isto que o dom da oração e da devoção é liberalmente concedido a todos os que de bom coração querem consentir nas inspirações celestes, em nosso poder está perseverarmos.
Pensai na grande honra que um coração tem em falar a sós a seu Deus, a esse ser soberano, imenso e infinito. Sim, porque aquilo que o coração diz a Deus, ninguém o sabe senão o próprio Deus primeiramente, e depois aqueles a quem Deus o faz saber. Não é esse um maravilhoso segredo? Penso ser isto o que as Doutores dizem, a saber, que, para fazer oração, é bom pensar que há só Deus no mundo; pois, sem dúvida, isso retrai multo as potências da alma, e a aplicação delas se faz bem mais forte.
II Grande utilidade das orações jaculatórias.
Quando as pavoas chocam em lugares bem brancos, os filhotes também saem branquinhos; e, quando as nossas intenções estão no amor de Deus ao projetarmos alguma obra boa, ou ao nos lançarmos em alguma vocação, todas as ações que se seguem tomam o seu valor e tiram a sua nobreza do amor onde têm a sua origem; porquanto, quem não vê que as ações que são próprias para a minha vocação, ou requeridas para o meu desígnio, dependem dessa primeira eleição e resolução que fiz?
Mas não se deve parar ai; porém, para fazer excelente progresso na devoção, é mister não só, no começo da nossa conversão e depois todos os anos, destinar a nossa vida e todas as nossas ações a Deus, mas também oferecê-las a Deus todos os dias, pois nesta renovação diária da nossa oblação difundimos nas nossas ações o vigor e a virtude da dileção, por uma nova aplicação do nosso coração à glória divina, sendo ele, por esse meio, cada vez mais santificado.
Além disso, apliquemos cem e cem vezes ao dia a nossa vida ao divino amor pela prática das orações jaculatórias, elevações de coração e retiros espirituais ; pois estes santos exercícios, lançando e atirando continuamente nossas mentes em Deus, a ele levam em seguida todas as nossas ações, e dizei-me, como poderia ser que uma alma que a todo momento se lança na divina Bondade e suspira incessantemente palavras de amor, para manter sempre o coração no seio do Pai Celeste, não fosse julgada como fazendo todas as suas boas ações em Deus e por Deus? Aquela que diz: Oh, Senhor, sou vossa, meu Bem-amado é todo meu e eu sou toda sua; meu Deus, sois o meu tudo; ó Jesus, sois a minha vida; ah ! quem me fará a graça de morrer a mim mesma a fim de só viver para vós ! " O' amar ! O' encaminhar-se ! O' morrer a si mesmo! O' viver para Deus ! " O' estar em Deus! O' Deus ! aquilo que não é vós. mesmo não é nada para mim! - essa alma, digo, não dedica continuamente suas ações ao celeste Esposo? Oh! que bem-aventurada é a alma que fez uma vez bem a destituição e a perfeita resignação de si mesma nas mãos de Deus, como falamos acima ! Porque, ao depois, ela só tem que fazer um pequeno suspiro e olhar para Deus para renovar e confirmar a sua destituição, resignação e oblação, com o protesto de nada querer senão a Deus e por Deus, e de não amar a si nem coisa alguma no mundo, senão em Deus e pelo amor de Deus.
Este exercício das continuas aspirações é, pois, mui próprio para aplicar todas as nossas obras ao amor, mas principalmente basta muito abundantemente para as ações diminutas e comuns da nossa vida.
Ora, neste exercício do retiro espiritual e das orações jaculatórias está a grande obra da devoção: ele pode suprir a falta de todas as demais orações, mas a ânsia dele quase não pode ser reparada por nenhum outro meio. Sem ele não se pode fazer bem a vida contemplativa, e só mal se poderia fazer a vida ativa; sem ele, o repouso não passa do ócio, e o trabalho de embaraço; eis por que vos suplico abraçá-lo de todo o vosso coração, sem jamais vos apartardes dele.
III
Fonte das orações Jaculatórias
Retiramo-nos em Deus porque aspiramos a ele, e aspiramos a ele para nos retirarmos nele ; de sorte que a aspiração a Deus e o retiro espiritual são ligados entre si, e ambos provêm e nascem dos bons pensamentos.
Aspirai, pois, muitíssimas vezes a Deus, por curtos mas ardentes transportes do vosso coração: admirai-lhe a beleza, invocai-lhe o auxilio; lançai-vos em espírito ao pé da Cruz, adorai-lhe a bondade, interrogai-o com frequência a respeito da vossa salvação, dai-lhe mil vezes ao dia vossa alma, fitai vossos olhos interiores na sua doçura, estendei-lhe a mão como uma criancinha a seu Pai, a fim de que ele vos conduza ; ponde-o no peito como um ramalhete delicioso, plantai-o em vossa alma como uni estandarte, e fazei mil sortes de diversos movimentos do vosso coração para vos dardes amor de Deus e vos exercitardes numa apaixonada e terna dileção desse divino Esposo. Assim se fazem as orações jaculatórias que o grande Santo Agostinho cuidadosamente aconselha à devota senhora Proba. Dando-se à frequentação, privança e familiaridade de seu Deus, o nosso espírito se perfumará todo das perfeições dele.
Vários têm coligido muitas aspirações vocais, que verdadeiramente são utilíssimas; mas, a conselho meu, não vos adstringireis a nenhuma sorte de palavras, mas pronunciareis, ou de coração ou de boca, as que o amor vos sugerir imediatamente, pois ele vo-las fornecerá quantas quiserdes. Verdade é que há certas palavras que têm uma força particular para contentar o c oração a esse respeito, como são os transportes semeados tão abundantemente d entro dos Salmos de David, as invocações diversas do nome de Jesus, e os rasgos de amor que são impressos ao Cântico dos Cânticos. As cantigas espirituais ainda servem à mesma intenção, contanto que sejam cantadas com atenção.
Enfim, assim como os que são amorosos de um amor humano e natural têm quase sempre os pensamentos voltados para o lado da coisa amada, o coração cheio de afeto a ela, a boca cheia dos louvores dela, e assim como na ausência dela não perdem ocasião de testemunhar por missivas as suas paixões e não acham árvore em cuja casca não escrevam o nome daquilo que amam, assim também aqueles que amam a Deus não podem deixar de pensar nele, respirar por ele, aspirar a ele e falar a ele, e, se possível, quereriam gravar no peito de todas as pessoas do mundo o santo e sagrado Nome de Jesus.
IV
Modo de fazer as orações jaculatórias
Tende o uso das orações jaculatórias, que são suspiros de amor que soltamos diante de Deus para solicitar a sua ajuda e socorro . Para o que, muito vos servirá guardardes na vossa imaginação o ponto da meditação de que mais tiverdes gostado, para remastigá-lo durante o dia, como se faz com as pastilhas para o corpo. Para isso vos servirá mesmo uma cruz, ou uma imagem devota pendurada ao pescoço ou ao vosso terço, manuseando-a e beijando-a multas vezes em honra daquele que ela representa; e, quando o relógio bater, dizer uma palavrinha de coração ou de boca, como seja: Viva Jesus ! ou então : Eis a hora de acordar! ou então : Aproxima-se a minha hora ; e semelhantes.
Lançai amiudadamente o vosso coração nas mãos de Deus, descansai a vossa alma na sua bondade, e ponde o vosso cuidado debaixo da sua proteção. Fazei bem o que puderdes; e o resto deixai-o a Deus, que o fará mais cedo ou mais tarde, segundo a disposição da sua providência.
Representai na vossa· imaginação Jesus Cristo crucificado nos vossos braços e no vosso peito, e dizei cem vezes, beijando-lhe o lado : E' aqui a minha esperança, é esta a fonte viva da minha felicidade, é o coração de minh'alma, é a alma de meu coração ; j amais coisa alguma me desprenderá dos seus amores ; seguro-o e não o largarei enquanto ele não me puser em lugar de segurança. Dizei-lhe a miúdo: Que posso eu ter na terra e que pretendo eu no céu senão a vós, ó meu Jesus? Sois o Deus do meu coração, e a herança que desejo eternamente.
O exercício da união com Deus pode-se mesmo praticar por curtos e passageiros, mas frequentes, surtos do nosso coração para Deus, por modo de orações jaculatórias feitas nesta intenção : Ah Jesus ! quem me dará a graça de ser um só espírito convosco ! Enfim, Senhor, rejeitando a multiplicidade das criaturas, só quero a vossa unidade ! O' Deus, sois o só uno e a unidade única necessária à minha alma! )U! caro amigo do meu coração, uni a minha pobre única alma à vossa muito única bondade ! Oh ! sois todo meu, quando serei todo vosso? O imã puxa o ferro e aperta-o: O' Senhor Jesus, meu imã, meu puxa-coração, cerrai, apertai e uni para sempre meu espírito ao vosso peito paterno! Oh, já que sou feito para vós, por que não estou em vós? Abismai esta gota de espírito, que me destes, dentro do mar da vossa bondade, da qual ela procede. Ah, Senhor, já que vosso coração me ama, por que não me arrebata a si, já que eu bem o quero? Atrai-me, e correrei atrás dos vossos atrativos, para me lançar nos vossos braços paternos e nunca sair deles pelos séculos dos séculos. Amém.
Elas poderão (as Freiras da Visitação) sair da oração pela manhã considerando Nosso Senhor no mistério em que o me ditaram, e se deterão sobre alguns dos pontos de que mais tiverem gostado. Por exemplo, se meditarem o mistério da Flagelação, e se o olhar meigo e amoroso que o divino Salvador lançava uma vez por outra sobre aqueles que o flagelavam, lhes tiver tocado o coração, devem elas recordá-lo amiudadas vezes, fazendo em seguida esta elevação : O' doce Jesus ! olhai-me com os olhos da vossa misericórdia. - De outra vez : Oh, Senhor, tirai de mim tudo aquilo que pode desagradar aos vossos olhos!
Poderão também ficar docemente aos pés de Nosso Senhor, como Madalena, escutando o que ele lhes disser ao coração, considerando-lhe a bondade e o amor, e falando-lhe de vez em quando por estes transportes de coração e orações jaculatórias, tais ou semelhantes : O' Deus ! sois meu Pai, recebei-me nos braços da vossa divina providência ! - Meu Deus, tende compaixão da minha miséria ! - Oh, Senhor, viva eu só para vós ! - Ai, minha salvação! dai-me o vosso amor !
Minha cara Senhora, saúdo-vos e venero-vos de todo meu coração. - Mãe de misericórdia, rogai por mim. - Rainha do céu, recomendo-vos minh'alma. - Minha doce Mãe, alcançai-me o amor de vosso Filho ...
Anjo glorioso, que me tendes em guarda, rogai por mim. - Meu caro guardião, dai-me a vossa bênção. - Bem-aventurado Espírito, defendei-me do inimigo. - Meu caro Protetor, dai-me uma grande fidelidade às vossas inspirações.
O mesmo farão elas para com os Santos e Santas a quem tiverem particular devoção, como S. José, Santo Agostinho, S. João Batista; os príncipes da Igreja S. Pedro e S. Paulo, S. João Evangelista, padroeiro das virgens, S. Bernardo, s. Francisco de Assis, Sant'Ana, Santa Maria Madalena, as três Santas Catarinas e outros gloriosos Santos.
Quando o relógio bater, suspirem elas as horas inutilmente passadas; - pensem que deverão dar contas dessa hora e de todos os momentos da sua vida; - que se aproximam da eternidade; - que as horas são séculos para os infelizes condenados; - que nós corremos para a morte; - que a nossa hora derradeira soará talvez breve.
Façam, pois, as Irmãs, de tais pensamentos, alguma devota aspiração, a fim de que Deus lhes seja propicio nessa hora derradeira, o que sucederá infalivelmente às que se tornarem mui cuidadosas desse exercício, que devem praticar em todo tempo e em qualquer ocasião, e por meio do qual crescerão e aproveitarão todos os dias de virtude em virtude, até à perfeição do amor divino.
V
"Vindimas espirituais"
Senhora, disseram-me que estáveis bem adiantada nas vossas vindimas : louvado seja Deus. Cumpre que meu coração vos diga esta palavra que eu disse outro dia a outra vindimadora que é bem das vossas mais caras primas.
No Cântico dos Cânticos, a Esposa sagrada, falando a seu divino Esposo, diz que seus "peitos são melhores que o vinho, odoríferos em unguentos preciosos". Que peitos tem, porém, esse Esposo? São a sua graça e a sua promessa ; pois ele tem o seu peito amoroso da nossa salvação, cheio de graças, que ele destila de hora em hora, mesmo de momentos em momentos, nos nossos espíritos ; e se quisermos pensar bem nisso, acharemos que assim é. E, por outro lado, tem ele a promessa da vida eterna, com a qual, como com um santo e amável leite, alimenta a nossa esperança, como com sua graça sacia o nosso amor. Esse licor precioso é bem mais delicioso que o vinho.
Ora, assim como se fazem as vindimas espremendo as uvas, vindima-se espiritualmente espremendo as graças de Deus e as suas promessas. E, para espremer a graça de Deus, há que multiplicar a oração pelos curtos mas vivos transportes de nossos corações ; e, para espremer lhe a promessa, há que multiplicar as obras de caridade, pois a elas é que Deus dará o efeito das suas promessas : "Estive doente, e me visitastes", dirá ele. "Todas as coisas têm a sua estação"; há que espremer o vinho numa e noutra espécie de vindima ; mas há que espremer sem se apressar, com cuidado mas sem inquietação.
Ainda pensando, minha cara Filha, que os peitos do Esposo sejam o seu lado traspassado na Cruz, ó Deus, como essa Cruz é uma cepa torcida, mas bem carregada! Não há nela senão uma só uva, mas que vale mais do que mil. Quantos grãos têm achado nelas ·as almas santas, pela consideração de tantas graças e virtudes que nela esse Salvador do mundo mostrou !
Fazei belas e boas vindimas, minha cara filha, e sirvam-vos umas de escada e passagem para outras. S. Francisco amava os cordeiros e os carneiros porque lhe representavam o seu caro Salvador; e eu quero que amemos essas vindimas temporais não só porque são coisas pertinentes ao cuidado correspondente ao pedido que todos os dias fazemos do pão nosso de cada dia, mas também e muito mais porque nos elevam às vindimas espirituais.
Conservai vosso coração cheio de amor, mas de um amor suave, sossegado e tranquilo. Encarai as vossas faltas, como as dos outros, com compaixão antes que com indignação, com mais humildade do que severidade.
A Deus, Senhora; vivei alegre, já que toda vos dedicastes à alegria imortal que é o próprio Deus, que para sempre queira viver e reinar no meio dos nossos corações.
VI
Facilidade da prática das orações jaculatórias.
Venhamos agora à terceira parte da oração mental que se faz por via de transportes. Desta ninguém se pode escusar, porque pode fazer-se indo e vindo nos próprios afazeres. Dizeis-me que não tendes · tempo para fazer duas ou três horas de oração: e quem é que vos fala disto? Recomendai-vos a Deus desde a manhã, protestai que não o quereis ofender, e depois ide-vos para os vossos negócios, resolvido não obstante a fazer várias elevações da vossa mente a Deus, até mesmo entre· as companhias. Quem é que vos impede de lhe falar no fundo do vosso coração, já que não importa lhe faleis mental ou vocalmente? Dizei palavras curtas, mas fervorosas. Aquela que S. Francisco repetia é excelente, se bem que fosse uma palavra de contemplação, porque continuava como um rio que vai sempre correndo. Verdade é que dizer a Deus "Sois o meu tudo", e querer alguma outra coisa que não ele, não ficaria bem, pois é mister que as palavras sejam conformes aos sentimentos do coração. Dizer, porém, a Deus: "Amo-vos", ainda que não tenhamos um grande sentimento de amor, isso não devemos deixar de dizê-lo, porque queremos amá-lo e grande desejo temos de amá-lo.
Um bom meio para nos acostumarmos a fazer essas elevações é tomar de seguida o Padre-Nosso, escolhendo uma sentença para cada dia. Por exemplo, tomastes hoje: Pai Nosso, que estais nos céus; direis, pois, a primeira vez: Meu Pai, que estais no céu; e um quarto d'hora depois direis: Se sois meu Pai, quando é que serei perfeitamente vosso filho? Assim ireis continuando de quarto em quarto d'hora a vossa oração.
Os santos Padres que viviam no deserto, aqueles antigos e verdadeiros Religiosos, eram tão cuidadosos em fazer essas orações e elevações, que S. Jerônimo conta que, quando eles iam visitá-lo, ouvia-se um que dizia: O' meu Deus, sois tudo o que eu desejo; e outro: Quando serei todo vosso, ó meu Deus? E outro repetia: Deus in adjutorium meu intende. Finalmente, ouvia-se uma harmonia muito agradável da diversidade das suas vozes. Dir-me-eis, porém: Se a gente pronuncia essas palavras vocalmente, porque é que lhe chamais oração mental? Porque se faz também mentalmente, e porque parte primeiramente do coração.
No Cântico dos Cânticos, diz o Esposo que sua bem-amada lhe roubou o coração por um dos olhos e por um dos cabelos que lhe pende por cima da gola. Estas palavras são uma aljava cheia de agradabilíssimas e dulcíssimas interpretações; eis aqui uma bem amável. Quando um marido e uma mulher têm no seu lar afazeres que os obrigam a separar-se, se acaso sucede se encontrarem olham-se um pouco passando, mas é só por um dos olhos, por isto que, encontrando-se de lado, naturalmente não se pode fazê-lo com ambos. Assim, quer esse Esposo dizer: Posto que minha bem-amada esteja muito ocupada, ainda assim não deixa de olhar para mim com um olho, protestando-me por esse olhar ser toda minha. Ela roubou-me o coração por um dos cabelos, isto é, por um pensamento que desce do lado do seu coração.
Não é difícil esse exercício, porque pode entrelaçar-se em todos os nossos afazeres e ocupações, sem absolutamente incomodá-los, dado que, ou no retiro espiritual, ou nesses transportes interiores, só se fazem pequenas e curtas diversões que absolutamente não impedem, antes servem muito ao prosseguimento daquilo que estamos fazendo. O peregrino que toma um pouco de vinho para alegrar o coração e refrescar a boca, se bem que pare um pouco para isso, não interrompe entretanto a viagem, mas toma força para mais depressa e facilmente conclui-la, só parando para melhor andar.
Por entre o dia, algumas elevações de espírito a Deus que não ocupam tempo, mas se fazem num momento. Não é preciso usar de palavras, mesmo interiores: basta transportar o coração ou descansá-lo em Nosso Senhor; basta olhar amorosamente para esse divino namorado das nossas almas, pois entre os amantes os olhos falam melhor do que a língua.
Nenhuma companhia, nenhuma sugestão poderá impedir-vos de falar com frequência com Nosso Senhor, com seus Anjos e Santos, nem de ir amiúde por entre as ruas da Jerusalém celeste, nem de escutardes os sermões interiores de Jesus Cristo e do vosso bom Anjo, nem de comungardes todos os dias em espírito. Fazei, pois, com alegria de coração tudo isso.
Oh! como seremos felizes se chegarmos um dia ao céu! Porque lá meditaremos mirando e considerando por miúdo todas as obras de Deus, e as havemos de achar boas; contemplaremos, vendo-as, todas j untas, ótimas, e nos lançaremos eternamente nele. Lá é onde eu vos desejo. Assim seja.
VII
Convite das criaturas a nos elevarmos a Deus.
Tudo convida os que amam a Deus a elevar-se a ele, e não há criatura que lhes não anuncie o louvor do seu Bem Amado, e, como dizia s. Agostinho depois de S. Ambrósio, tudo o que está no mundo lhes fala com linguagem muda, mas muito inteligível, em favor do seu amor; todas as coisas os provocam a bons pensamentos, dos quais ao depois nascem muitos surtos e aspirações para Deus. E eis aqui alguns exemplos.
S. Gregório, bispo de Nazianza, conforme ele próprio contava ao seu povo; passeando à beira-mar considerava como as ondas, avançando na areia, deixavam conchas e pequenos búzios, talos de erva, pequenas ostras e semelhantes bugigangas que o mar rejeitava e, por assim dizer, cuspia na praia ; depois, voltando por outras vagas, tornava a tomar e tragava de novo uma parte daquilo, enquanto os rochedos dos arredores permaneciam firmes e imóveis, posto que as águas viessem bater rudemente contra eles. Ora, sobre isso fez ele este belo pensamento: que os fracos, como conchas, búzios e talos de ervas, se deixam levar ora à aflição ora ao consolo, à mercê das ondas e vagas da fortuna; mas que os grandes ânimos ficam firmes e imóveis em toda sorte de tempestades; e deste pensamento fez nascerem estes transportes de David: O' Senhor, salvai-me, pois as águas me penetraram até à alma! O' Senhor, livrai-me do profundo das águas! Sou levado ao fundo do mar, e a tempestade me submergiu. Porque então S. Gregório estava em aflição pela desgraçada usurpação que Máximo empreendera sobre o Seu bispado.
S. Fulgêncio, bispo de Ruspe, achando .se numa assembleia geral da nobreza romana em que Teodorico, rei dos Godos, discursava, e vendo o esplendor de tantos senhores que estavam em fila, cada qual segundo sua qualidade, disse: O' Deus, como deve ser bela a Jerusalém Celeste, já que neste mundo a gente vê tão pomposa a Roma terrestre ! E, se neste mundo tanto esplendor é concedido aos amadores da vaidade, que glória não deve estar reservada aos contempladores da verdade!
Dizem que Santo Anselmo, arcebispo de Cantuária, cujo nascimento honrou grandemente as nossas montanhas, era admirável nessa prática dos bons pensamentos. Perseguida pelos cães, uma lebrezinha acorreu para debaixo do cavalo desse santo Prelado, que na ocasião viajava, como para um refúgio que o perigo iminente de morte lhe sugeria; e os cães, a ladrarem por toda a volta, não se atreviam a violar a imunidade a que sua presa recorrera; espetáculo, por certo, extraordinário, que fazia rir toda a comitiva, ao passo que o grande Anselmo chorava e gemia, dizendo: Ah! estais rindo, mas o pobre animal não ri; os inimigos da alma perseguida e desencaminhada por diversos desvios a toda sorte de pecados, esperam-na no estreito da morte para arrebatá-la e devorá-la ; e ela, toda assustada, busca por toda parte socorro e refúgio; e, se não o acha, zombam e riem dela os inimigos. Dito o que, foi-se embora Anselmo suspirando.
Constantino Magno escreveu honrosamente a S. Antão; com o que muito se admiraram os religiosos que estavam em volta dele, e Ele lhes disse: Como admirais que um rei escreva a um homem? Admirai, antes, que Deus eterno tenha escrito a sua lei aos mortais, e até lhes haja falado boca a boca na pessoa de seu Filho.
S. Francisco, vendo uma ovelha sozinha no meio de um rebanho de bodes, disse ao companheiro: Vede como essa pobre ovelhinha é mansa entre essas cabras; Nosso Senhor ia assim manso e humilde por entre os fariseus. E, de outra vez vendo um cordeirinho comido por um porco, disse chorando: Oh! cordeirinho, como representas vivamente a morte de meu Salvador!
O grande S. Basílio diz que a rosa entre os espinhos faz esta advertência ·aos homens : O que há de mais agradável neste mundo, ó mortais, é misturado de tristeza; neste mundo nada é puro : o pesar está sempre colado à alegria, a viuvez ao casamento, o cuidado à fertilidade, a ignomínia à glória, o gasto às honrarias, o tédio às delícias e a doença à saúde, Bela flor, diz o santo personagem, a rosa; mas me dá grande tristeza, advertindo-me do meu pecado, pelo qual a terra foi condenada a dar espinhos.
Mirando um córrego e vendo nele o céu representado com as estrelas numa noite serena, disse uma alma devota : O' meu Deus, essas mesmas estrelas me estarão debaixo dos pés quando me houverdes alojado nos vossos santos tabernáculos; e, como as estrelas do céu são representadas na terra, assim os homens da terra são representados no céu na viva fonte da caridade divina. Outra, vendo um rio correr, exclamou assim: Minh'alma jamais terá descanso enquanto não for abismada no mar da Divindade, que é a sua origem. E Santa Francisca, considerando um agradável riacho, à beira do qual se ajoelhara para rezar, foi arrebatada, repetindo várias vezes estas palavras bem de mansinho : A graça de meu Deus corre assim, doce e suavemente como este pequeno regato.
Outro, vendo as árvores floridas, suspirava: Por que é que só eu sou sem flores no jardim da Igreja? Outro, vendo uns pintinhos debaixo da mãe, disse: "O' Senhor, conservai-nos debaixo da sombra das vossas asas. Outro, vendo o girassol, disse: Quando será, meu Deus, que minh'alma seguirá os atrativos da vossa caridade? E, vendo uns amores-perfeitos de jardim, belos para a vista, mas sem odor, disse: Oh! tais são as minhas cogitações, belas de dizer, mas sem efeito nem produção ("Vida devota ") .
Se via belos campos S. Francisco de Sales dizia: Somos o campo do Senhor, devemos cultivá-lo e semear nele o grão da sua palavra. Vendo uma igreja: Somos templos vivos do Espírito Santo, devemos orná-los de virtudes. A vista de uma árvore em flores: Não são só flores, porém frutos, que Deus nos pede. Pinturas belas lhe evocavam que a alma é a imagem de Deus e deve tornar-se semelhante a ele; jardins lhe evocavam que nossa alma, se a Enfeitarmos com os frutos das virtudes, será para Deus um jardim de delicias. A vista duma fonte, suspirava: Ah! Quando beberemos a longos goles nas fontes do Salvador? Em vendo rios: Quando será que iremos a Deus como estas águas ao mar? Um cordeiro representava-lhe a doçura de Jesus Cristo, que se chama o Cordeiro de Deus. Nos pobres ele via os membros queridos do Salvador; nos sacerdotes, seus ministros ; e assim toda a natureza lhe servia como que de degraus para se elevar a Deus e se unir Aquele que era o único amor do seu coração (Hammon, Vida de s. Francisco de Sales, 7, 6) .
VIII
As orações jaculatórias durante as doenças.
Deixemos por um pouco a meditação (é só para melhor saltar que recuamos) , e pratiquemos bem essa santa resignação e esse amor puro de Nosso Senhor que nunca &e pratica tão inteiramente como por entre os tormentos ; porquanto amar a Deus dentro do açúcar, bem o fariam as crianças; mas amá-lo dentro do absinto, este é o rasgo da vossa amorosa fidelidade. De dizer "Viva Jesus!" na montanha do Tabor, S. Pedro, por mais grosseiro que seja, bem tem coragem; mas dizer " Viva Jesus ! " no monte Calvário, isto só pertence à Mãe e ao amoroso fiel que lhe foi deixado por filho.
Ora, como vedes, recomendo-vos a Deus para alcançardes essa sagrada paciência, e em meu poder não está propor-lhe o que quer que seja para vós, senão que inteiramente a seu gosto prepare ele o vosso coração para se alojar nele e nele reinar eternamente; que o prepare, digo, ou com o martelo, ou com o buril, ou com o pincel; quer dizer, que faça a seu gosto. Não é? Não é preciso fazer assim?
Sei que as vossas dores aumentaram há pouco, e, na mesma medida, o desprazer que com isto sinto; se bem que eu louve e bendiga convosco a Nosso Senhor pelo seu beneplácito, que ele exerce em vós fazendo-vos participar da sua santa Cruz e coroando-vos com a sua Coroa' de espinhos.
Mas dizeis-me que, enquanto as dores vos afligem, quase não podeis deter o vosso pensamento nos trabalhos que Nosso Senhor sofreu por vós. Pois bem: também não se requer que o façais, mas que mui simplesmente eleveis, o mais frequentemente que puderdes, o vosso coração a esse Salvador, e façais estas ações : lº, aceitar o trabalho da sua mão, como se vísseis ele próprio vo-lo impondo e vo-lo pondo à cabeça ; 2º, oferecendo-vos para sofrer ainda mais ; 3º, adjurando-o, pelo mérito dos SEUS tormentos, a aceitar esses pequenos incômodos em união com as penas que ele sofreu na Cruz, protestando-lhe quererdes não somente sofrer, mas amar e acarinhar esses males como enviados por mão tão boa e tão meiga; 4º, invocando os mártires e tantos servos e servas de Deus que gozam o céu por muito haverem sido afligidos neste mundo.
Não há perigo nenhum em desejar remédio, é mesmo preciso procurá-lo cuidadosamente ; porque Deus, que voo deu o mal, é também o autor dos remédios. Cumpre, pois, aplicá-los, mas, não obstante, com tal resignação, que, se a divina Majestade quiser que o mal vença, aquiescereis a isso; e, se quiser que o remédio vença, ainda por isto o bendireis.
Viva Jesus! e reine entre ás vossas d ores, já que não podemos reinar nem viver senão pelas dores da sua morte.
Deixemo-nos levar pela providência de Deus, que sabe o que é melhor. Não; persisti em não recitar as vossas Horas nem o Ofício enquanto os médicos v os· disserem que essa recitação vos é prejudicial; certo estou, porém, de que não deixais de fazer exalar do vosso coração mil perfumes de curtas mas ardentes orações aos pés de Jesus Cristo crucificado, que deve ser o objeto usual dos vossos pensamentos nesse santo tempo das vossas tribulações. O fogo, se for aplicado, servirá bem para esse efeito, pois fará os vossos afetos subirem como o incenso se eleva à medida que se consome cá em baixo.
Quanto à meditação, têm razão os médicos: enquanto estiverdes enfermo, deveis privar-vos dela. E, para reparar esta falta, deveis fazer ao dobro orações jaculatórias, e aplicar o todo a Deus por uma aquiescência inteira ao seu beneplácito, que absolutamente não vos separa dele, dando-vos esse impedimento para a meditação; mas é para vos unir mais solidamente a ele pelo exercício da santa e tranquila resignação. Que nos importa estarmos com Deus duma maneira ou doutra? Em verdade, já que a ele só buscamos, e que o não achamos menos na mortificação do que na oração, mormente quando ele nos toca com a doença, tão boa nos deve ser uma coisa como outra; além de que as orações jaculatórias, os transportes da mente, são verdadeiras orações continuas, e o sofrimento dos males é a mais digna oferta que podemos fazer Aquele que nos salvou sofrendo.
Enquanto nossos corpos estão em dor, difícil é elevarmos nossos corações à consideração perfeita da bondade de Nosso Senhor; isto só pertence àqueles que, por longos hábitos, têm a mente inteiramente voltada para a banda do céu. Porém nós, que ainda somos todo tenros, nós temos almas que derivam facilmente para o sentimento dos trabalhos e das dores do corpo; é por isto que não é maravilha se, durante as vossas doenças, haveis interrompido o uso da oração interior. Assim, nesse tempo, basta empregar as orações jaculatórias e sagradas inspirações; porque, já que o mal nos faz suspirar a miúdo, nada custa suspirar em Deus e para Deus e por Deus, antes que suspirar para fazer queixas inúteis. Esteja Deus para sempre no meio do vosso coração para enchê-lo e fazê-lo abundar no seu santo amor.
Meu Deus! Quanto bem minha alma deseja à vossa! Tirai muito proveito dos vossos trabalhos, tornai-os frutuosos por uma aceitação voluntária das cruzes que a necessidade vos impõe. Praticai fielmente as orações jaculatórias. Meu coração vos estremece mui particularmente n'Aquele que por nós teve o seu traspassado na Cruz: Não dizeis sempre " Viva Jesus! "? Pois bem: viva esse grande Jesus e reine nas nossas almas. Amém.
IX
Exortação a fazer com frequência orações jaculatórias.
O santo Bispo "recomendava fazer frequentes retornos a Deus mesmo por entre ações santas, como pregar, confessar, estudar, ler, falar de coisas· espirituais" ( depoimento de S. Joana Francisca de Chantal) .
Continuai a avançar por esse lado (a demanda da verdadeira devoção), onde encontrareis afinal o bem-aventurado repouso da vossa alma. Lembrai-vos de que nosso Deus não é como o resto das coisas: é bom para todos e em todo tempo; em toda parte o achareis para vosso arrimo e consolo; pelo que, não vos canseis à procura de tão grande bem. Aspirai a ele perpetuamente pelos curtos mas vivos transportes da vossa mente ao seu amor, dos quais vos hei falado tantas vezes.
Aprendei a fazer amiudadas orações jaculatórias e elevações do vosso coração a Deus. Quisera eu que essas orações fossem tão frequentes como aspirar e respirar (Cartas).
Se pudésseis provocar um pouco profundamente vossa alma ao amor e à prática da mansidão e da verdadeira humildade, seríeis corajosa, mas é ·preciso pensar nisso amiudadamente. Fazei a preparação de manhã, e em suma tomai a qualquer custo essa tarefa, que Deus vos pagará com mil consolações; e, para isso, não vos esqueçais de elevar repetidas vezes vosso coração a Deus e vossos pensamentos à eternidade. Haverá nada tão doce como quase não ver a terra e ver muito o céu?
Acostumai-vos às preces breves e às orações a que chamamos jaculatórias. Lançai múltiplas vezes ao dia todo o vosso coração, a vossa mente e o vosso cuidado em Deus com grande confiança, e dizei-lhe com David: Vosso sou, Senhor, salvai-me!
Suplico-vos digais muitas vezes a Deus, como o Salmista: Vosso sou, salvai-me; e, como Madalena estando-lhe aos pés: Rabboni! Ah ! meu Mestre ! E depois deixai-o fazer: ele fará de vós, em vós, sem vós e, não obstante, por vós e para vós, a santificação do seu Nome, ao qual seja dada honra e glória.
Fazei frequentemente orações jaculatórias a Nosso Senhor e em todas as horas que puderdes, e em todas as companhias, olhando sempre a Deus no vosso coração e o vosso coração em Deus.
Quer na missa, quer no correr do dia, desejo que o terço se diga todos os dias, o mais afetuosamente que for possível. No correr do dia, muitas orações jaculatórias e particularmente as das horas, quando estas batem: é uma devoção útil. Continuai, entretanto, os vossos exercícios, excitai em vós a vossa coragem, e sobretudo esforçai-vos o mais possível para fazer muitas elevações de coração sobre Jesus-Cristo crucificado.
Reerguei a miúdo o vosso coração por uma santa confiança misturada de profunda humildade para com nosso Redentor; como dizendo: Sou miserável, Senhor, e recebereis minha miséria no seio da vossa misericórdia, e me puxareis com a vossa mão paternal para o gozo da vossa herança. Sou mesquinha e vil, e abjeta; porém vós me amareis nesse dia (da minha morte), porque esperei em vós e desejei ser vosso.
Sobretudo, porém, desejo que a todo propósito, durante o dia, retireis o vosso coração em Deus, dizendo-lhe algumas palavras de fidelidade e amor.
Ficai em paz; dizei muitas vezes a Nosso Senhor que quereis ser o que ele quiser que sejais, e sofrer o que ele quiser que sofrais. Combatei fielmente as vossas impaciências, exercendo não só a todo propósito, mas ainda sem propósito, a santa benignidade e doçura para com aqueles que vos forem mais aborrecidos, e Deus abençoará o vosso intento.
Fazei bem a santa oração; lançai com frequência o vosso coração nas mãos de Deus, descansai vossa alma na sua bondade, e colocai vosso cuidado debaixo da sua proteção. Fazei bem o que puderdes, e o resto deixai-o a Deus, que o fará, mais cedo ou mais tarde, segundo a disposição da sua Providência.
X
Mesmo assunto.
Ficai em paz, caríssima Filha; tirai da imaginação o que vos pode perturbar, e dizei frequentemente a Nosso Senhor : O' Deus, sois o meu Deus e confiarei em vós; assistir-me-eis e sereis o meu refúgio, e nada temerei; pois não somente estais comigo, mas estais em mim, e eu em vós. Que pode a criança temer nos braços de um tal Pai? Sede mesmo uma criança, caríssima Filha: como sabeis, as crianças não pensam em tanta coisa; têm quem nela pense por elas; só são fortes de mais se ficam com seu pai. Fazei, pois, assim, minha caríssima Filha, e ficareis em paz.
Pelo amor de Deus, sede um pouco corajosa: dizei cem vezes ao dia, mas dizei-o de coração: Deus nos ajudará; e vereis que ele o fará.
Imolai a miúde todos os vossos afetos a Deus pela renovação da resolução que fizestes de não querer empregar um só momento de vossa vida senão para o serviço do sagrado amor do Esposo celeste. Continuai a apresentar frequentemente o vosso coração a Deus, e vivei em espírito de doçura e de humildade diante da sua face e por entre os próximos, e absolutamente não duvideis de que ele vos assista e vos conduza aonde aspirais.
Fazei bem a tarefa que tendes agora diante dos olhos, isto é, continuai a fazer bem sossegadamente os vossos exercícios espirituais; entregai o vosso espírito e o vosso coração cem vezes ao dia nas mãos de Deus, recomendando-lhe o vosso trabalho com toda sinceridade.
Servi a Deus com grande coragem e, o mais que puderdes, por exercícios da vossa vocação. Amai todos os próximos, mas, sobretudo a quem Deus mais quer que amais. Rebaixai-vos aos atos cuja casca se afigura menos digna, quando souberdes que Deus o quer; porquanto, qualquer o modo como a santa vontade de Deus se faça, ou por altas ou por baixas operações, não importa. Suspirai a miúdo pela união da vossa vontade com a de Nosso Senhor. Tende paciência convosco nas vossas imperfeições. Não vos apresseis, nem multipliqueis desejos de ações que vos são impossíveis. Caminhai perpetuamente e devagarinho: se nosso bom Deus vos fizer correr, dilatará o vosso coração, mas, por nosso lado, detenhamo-nos nesta única lição: Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração.
Quisera eu que muitas vezes ao dia invocásseis a Deus a fim de vos dar o amor da vossa vocação, e dissésseis como S. Paulo quando foi convertido: Senhor, que quereis que eu faça? Quereis que eu vos sirva no mais vil ministério da vossa casa? Ah ! ainda me reputarei demasiado feliz : contanto que vos sirva, não me preocupo com em que será. E, vindo ao particular daquilo que vos molesta, direis: Quereis que eu faça, tal ou tal coisa, Senhor ? Ai! não sou digno dela; fá-la-ei de muito bom grado. Que, dessarte, vos humilheis muito. O' meu Deus, que tesouro adquiriríeis! Maior, sem dúvida, do que podeis avaliar.
Devemos amar aquilo que Deus ama; ora, ele ama a nossa vocação; amemo-la muito também, e não nos distraiamos a pensar na dos outros. Façamos a nossa tarefa; a cada um não é de mais a sua cruz. Entremeai docemente o oficio de Marta ao de Madalena; fazei diligentemente o ofício da vossa vocação, e volvei com frequência a vós mesma; ponde-vos em espírito aos pés de Nosso Senhor e dizei: Senhor, quer eu corra, quer pare, sou toda vossa, e sois todo meu; sois o meu primeiro Esposo, e tudo o que eu fizer é por amor de vós, e isto e aquilo.
Não posso prometer-me ver-vos antes de quarta-feira, a não ser dessa visão perpétua com que minh'alma olha e contempla a vossa alma caramente no fundo do vosso coração". Ah, meu Deus ! minha cara Madre, como desejo o amor divino a esse coração, quantas bênçãos lhe almejo! Beijemos mil vezes os pés desse Salvador, e digamos-lhe : Meu Deus, meu coração vos protesta, minha face vos deseja! Ah, Senhor ! minha face procura a vossa face. Quer dizer, minha cara Madre, tenhamos olhos em Jesus Cristo para considerá-lo, a boca para louvá-lo, e que enfim todo o nosso semblante só respire agradar ao do nosso caro Jesus: Jesus por quem devemos humilhar-nos, empreender, trabalhar, sofrer e, como diz S. Paulo, tornar-nos como ovelhas levadas à matança, quando bem parecer à divina Majestade fazer-nos desonrados para sua honra e glória.
Viva Jesus, viva seu sangue ! Viva Marta, viva seu flanco, do qual Jesus tomou o seu sangue.
Oração de S. Francisco de Sales à SS. Virgem.
Saúdo-vos, dulcíssima Virgem Maria, Mãe de Deus: sois minha mãe e minha soberana ; portanto, suplico-vos me aceiteis por vosso filho e servo, porque não quero mais ter outra mãe senão vós. Rogo-vos pois, minha boa, graciosa e dulcíssima Mãe, sejais servida consolar-me em todas as minhas angústias e tribulações, tanto espirituais como corporais. Lembrai-vos e recordai-vos, dulcíssima Virgem, de que sois minha mãe e de que eu sou vosso filho; de que sois poderosíssima e de que eu sou um homem pobre, vil e fraco. Por tanto suplico-vos, minha dulcíssima Mãe, me governeis e defendais em todos os meus caminhos e ações. Porque sou um pobre miserável e mendigo, que necessito grandemente da vossa santa proteção. Eia, pois, minha santíssima Virgem, minha doce Mãe, preservai e livrai meu corpo e Minh ‘alma de todos os males e perigos, e, por favor, fazei-me participante dos vossos bens e virtudes, e principalmente da vossa santa humildade, excelente pureza e fervorosa caridade.
Não me digais graciosa Virgem, que não podeis, pois vosso dileto Filho vos deu todo poder, tanto no céu como na terra. Não me digais que não deveis, pois sois a mãe comum de todos os pobres humanos, e singularmente a minha. Se não pudésseis, eu vos desculparia, dizendo: E' verdade que ela é minha mãe e me quer como a seu filho; mas a pobrezinha tem falta de posses e de poder. Se não fôsseis minha mãe, com razão eu pacientaria, dizendo: ela é bastante rica para me assistir ; mas, ai ! não sendo minha mãe, não me ama. Portanto, dulcíssima Virgem, já que sois minha mãe e que sois poderosa, como vos hei de desculpar se não me aliviardes e não me prestardes o vosso socorro e assistência?
Vede minha Mãe, que sois forçada a atender a todos os meus rogos. Sede, pois, exaltada nos céus e na terra, gloriosa Virgem e minha altíssima Mãe Maria: e para honra e glória de vosso Filho, aceitai-me por vosso filho, sem considerardes as minhas misérias e pecados; livrai minha alma e meu corpo de todo mal, e dai-me todas as vossas virtudes, sobretudo a humildade. Fazei-me presente de todos os dons, bens e graças que aprazem à SS. Trindade, Pai, Filho e Espirito Santo. Assim seja.